Continuando o post de 16.12.09 - Coisas que me dão raiva (parte 1).
Dia desses me pediram para ver um blog comunitário e li nele uma postagem que se baseava em autores (entre aqueles que eu já não recomendo) falando coisas que não é a primeira vez que vejo dizerem sobre os helênicos. Para muitas pessoas (ditas pagãs), como para quem escreveu no blog a que me refiro, os mitos gregos são 'uma maneira tosca' de desviar a atenção do culto à "Grande Mãe". Elas acreditam que os gregos - como uma espécie de 'ataque amedrontado para se defender' - tornaram as mulheres e deusas da mitologia helênica submissas às figuras masculinas e reduzidas a figuras relacionadas com a fertilidade.
Ora, para começar, a própria ideia de que os cultos que celebravam colheitas e partos eram uma "redução" feita ao feminino já é um preconceito de colocar a fertilidade como algo inferior, quando na verdade é ela quem cria a vida, sendo tão importante quanto os outros aspectos da existência natural e humana. Segundo que os escritos dessas pessoas, como observa uma amiga minha, sempre nos dão a impressão de que "era uma vez a 'Deusa Fofa', aí veio Zeus e acabou com tudo". Como se o fato de Zeus ser masculino representasse um patriarcado nocivo, opressor e misógino, que não é necessariamente o caso.
Depois essas pessoas citam Atena, que uma das maiores mulheres da mitologia é colocada nascendo da cabeça do pai, e não como uma suposta deidade sem pai ('filha da mãe'?) anterior, como se isso reforçasse o tom machista com que eles cantam a visão de mitologia grega que têm. O que aparenta é que elas não leram a história toda, ou que leram uma história diferente da que lemos. Zeus engoliu Métis por causa da profecia de que o rebento que ele teria com ela tomaria seu trono, mas de nada adiantou, pois Atena saiu da cabeça de Zeus já adulta e armada, quando Hefesto abriu o crânio do cronida. Veja: não foi um homem, mas uma mulher que veio com o poder suficiente para destronar o pai; uma mulher forte e guerreira e que nunca se casou, não uma semeadora fértil (o que já mostra que a teoria desse pessoal da "Deusa Fofa" se contradiz). Além disso, há na mitologia deidades sem pai aparente, por partenogênese da mãe, que é como Hera teria gerado Tífon, Ares e o próprio Hefesto. Mas os poucos deuses que saem do corpo de Zeus (Atena e Dionísio), ambos tinham uma mãe (Métis e Semele).
Somariam-se a isso outras evidências que poderiam nos levar é justamente ao contrário, a ver o poder que as mulheres tinham nos relatos mitológicos. E tudo sem contar o fato de os autores-fontes de onde essas pessoas bebem se referirem à mitologia grega falando sempre e apenas da dinastia de Zeus, desconsiderando todas as outras anteriores.
É claro que tudo acabaria sendo questão de como você lê; afinal, já dizem que "o diabo pode converter toda a bíblia a seu favor". Porém, aproveitando os recentes comentários feitos sobre o julgamento do caso Isabella: testemunhas podem mentir, evidências não. E é por essas e outras que no helenismo enfatizamos que mais valem os ritos e a práxis do que os mitos. Já que elas gostam de autores, que tal um dos nossos maiores estudiosos da religião grega? Ele diz que os ritos são mais importantes e mais instrutivos para a compreensão das religiões antigas do que os mitos que mudam tanto: “rituals are more important and more instructive for the understanding of ancient religions than are changeable myths” (Walter Burkert, ‘Greek Religion’, 54).
Então, antes de ouvir/ler as impressões que um autor (neopagão-novaera-autoajuda-etc) tem a dizer de algo, por que esse povo não lê artigos de arqueologia e de filologia, por que não se intera das descobertas relativas às práticas de culto? Sabe, acabamos caindo naquela questão de leitura crítica, de saber que nem tudo o que está escrito e impresso é verdadeiro, buscar mais coisas, mais pesquisas que corroborem o que você entendeu, e que no final faça sentido com todo o intertexto que carregamos de visões que se complementam entre si.
(E não vou nem entrar na questão de essas pessoas andarem precisando fazer as pazes com o masculino. Aliás, aproveito para indicar um blog ótimo que fala dessa questão das masculinidades, escrito por uma amigona minha: o Curiosa Identidade.)
Enfim, e só pra lembrar: se não fosse por Zeus, as pessoas provavelmente sequer teriam um mundo organizado no qual buscar esses livros que lêem...
Dia desses me pediram para ver um blog comunitário e li nele uma postagem que se baseava em autores (entre aqueles que eu já não recomendo) falando coisas que não é a primeira vez que vejo dizerem sobre os helênicos. Para muitas pessoas (ditas pagãs), como para quem escreveu no blog a que me refiro, os mitos gregos são 'uma maneira tosca' de desviar a atenção do culto à "Grande Mãe". Elas acreditam que os gregos - como uma espécie de 'ataque amedrontado para se defender' - tornaram as mulheres e deusas da mitologia helênica submissas às figuras masculinas e reduzidas a figuras relacionadas com a fertilidade.
Ora, para começar, a própria ideia de que os cultos que celebravam colheitas e partos eram uma "redução" feita ao feminino já é um preconceito de colocar a fertilidade como algo inferior, quando na verdade é ela quem cria a vida, sendo tão importante quanto os outros aspectos da existência natural e humana. Segundo que os escritos dessas pessoas, como observa uma amiga minha, sempre nos dão a impressão de que "era uma vez a 'Deusa Fofa', aí veio Zeus e acabou com tudo". Como se o fato de Zeus ser masculino representasse um patriarcado nocivo, opressor e misógino, que não é necessariamente o caso.
Depois essas pessoas citam Atena, que uma das maiores mulheres da mitologia é colocada nascendo da cabeça do pai, e não como uma suposta deidade sem pai ('filha da mãe'?) anterior, como se isso reforçasse o tom machista com que eles cantam a visão de mitologia grega que têm. O que aparenta é que elas não leram a história toda, ou que leram uma história diferente da que lemos. Zeus engoliu Métis por causa da profecia de que o rebento que ele teria com ela tomaria seu trono, mas de nada adiantou, pois Atena saiu da cabeça de Zeus já adulta e armada, quando Hefesto abriu o crânio do cronida. Veja: não foi um homem, mas uma mulher que veio com o poder suficiente para destronar o pai; uma mulher forte e guerreira e que nunca se casou, não uma semeadora fértil (o que já mostra que a teoria desse pessoal da "Deusa Fofa" se contradiz). Além disso, há na mitologia deidades sem pai aparente, por partenogênese da mãe, que é como Hera teria gerado Tífon, Ares e o próprio Hefesto. Mas os poucos deuses que saem do corpo de Zeus (Atena e Dionísio), ambos tinham uma mãe (Métis e Semele).
Somariam-se a isso outras evidências que poderiam nos levar é justamente ao contrário, a ver o poder que as mulheres tinham nos relatos mitológicos. E tudo sem contar o fato de os autores-fontes de onde essas pessoas bebem se referirem à mitologia grega falando sempre e apenas da dinastia de Zeus, desconsiderando todas as outras anteriores.
É claro que tudo acabaria sendo questão de como você lê; afinal, já dizem que "o diabo pode converter toda a bíblia a seu favor". Porém, aproveitando os recentes comentários feitos sobre o julgamento do caso Isabella: testemunhas podem mentir, evidências não. E é por essas e outras que no helenismo enfatizamos que mais valem os ritos e a práxis do que os mitos. Já que elas gostam de autores, que tal um dos nossos maiores estudiosos da religião grega? Ele diz que os ritos são mais importantes e mais instrutivos para a compreensão das religiões antigas do que os mitos que mudam tanto: “rituals are more important and more instructive for the understanding of ancient religions than are changeable myths” (Walter Burkert, ‘Greek Religion’, 54).
Então, antes de ouvir/ler as impressões que um autor (neopagão-novaera-autoajuda-etc) tem a dizer de algo, por que esse povo não lê artigos de arqueologia e de filologia, por que não se intera das descobertas relativas às práticas de culto? Sabe, acabamos caindo naquela questão de leitura crítica, de saber que nem tudo o que está escrito e impresso é verdadeiro, buscar mais coisas, mais pesquisas que corroborem o que você entendeu, e que no final faça sentido com todo o intertexto que carregamos de visões que se complementam entre si.
(E não vou nem entrar na questão de essas pessoas andarem precisando fazer as pazes com o masculino. Aliás, aproveito para indicar um blog ótimo que fala dessa questão das masculinidades, escrito por uma amigona minha: o Curiosa Identidade.)
Enfim, e só pra lembrar: se não fosse por Zeus, as pessoas provavelmente sequer teriam um mundo organizado no qual buscar esses livros que lêem...
Ah amada, esse povo dá raiva mesmo.
ResponderExcluirAlém da cara de "ué" quando vêem uma mulher pagã devota de um deus masculino... como se não fossemos bem resolvidas na nossa feminilidade ou como se faltasse algo a nosso culto.
Eu já li imbecil dizendo que Dionísio é um deus machista. Porque parece que tem gente que tem medo de um falo... nem preciso dizer o quanto fiquei furiosa com a burrice dessa afirmação.
vc como sempre coloca em palavras o que eu penso, mas com mais decência e sem baixo calão, hihihi.
compartilho sua raiva e que Zeus tenha piedade dessas pobres almas.
Eu acho que Hera tem tanto poder quanto Zeus.
ResponderExcluirVocê não tem raiva de quem acha Hera uma esposa ciumenta, Ela a Grande Senhora do Olimpo? Exemplo de Deusas poderosas não nos falta, mas vejo muita critica, até de outros pagões.
Eu admito, tive problemas com Zeus e já fui um desses chatos que via a Deusa Fofa suplantada por Zeus, mas evolução de pensamento é bom.
Qual o problema de ser feminista e helenista?
Pois é, meninas, e - já que é para citar coisas que lemos - tenho um livro que diz que um dos primeiros sinais de evolução da espécie humana é acabar com a guerra dos sexos.
ResponderExcluirNão posso deixar de concordar :)
ResponderExcluire não tem problema nenhum em ser feminista e helenista. O problema é ser revisionista histórico e mal informado e helenista.
ResponderExcluirEu, na minha época Wiccan, ouvia muito de uma certa Sacerdotisa de que a Deusa da criação do universo era Eurynome, plena em si que gerou Ophion e bla bla bla... E que Zeus é o simbolo do patriarcado e tals (OBS: obviamente isso vinha de um circulo de tradição diânica). Curiosamente, 2 anos depois esse símbolo do patriarcado fez contato e "disse": Se vc me acha tão ruim, venha me conhecer? Pimba... 6 meses depois tava lá eu, apaixonado por esse "machista" maravilhoso, que põe ordem no barraco universal e pára com a guerra inútil.
ResponderExcluirSabe... esse maniqueísmo, essa dicotomia fazem mal pra nós. Porra... caralho... somos feitos de X e Y... qual a dificuldade de lidar com os dois lado a lado, cada qual com seu valor?
Eu aprendi muito em 2 anos de algo que chamo neo-helenismo. Os deuses são tão plenos que eles tem a potencialidade de se complementarem... isso é magnífico. Poderia citar N exemplos. Mas enfim... Que a Deusa Pink Barbie hermafrodita seja capaz de cuidar dos seus. (Brincadeirinha, com todo respeito ;).
Tava pensando aqui...
ResponderExcluirSabe o que eu acho também? Que falta um pouco de compreensão crônica no processo de estudo da mitologia e culto. Quando se fala em culto a deusa-mãe, a Terra, pura e fértil doadora, estamos falando de um período sedentário ou semi-sedentário onde tribos identificavam as manifestação da natureza como vindas da Grande-Mãe... só que ao longo da história e do desenvolvimento humano a divindade Grande-Mãe passou a dar origem e gerar "frutos", novos deuses... que definitivamente NÃO são ELA. Afrodite NÃO é Gaia, Hera NÃO é Gaia... alias... temos deusas com aspectos completamente diferentes ao da Grande-Mãe geradora e nutridora. E aí beleza... estamos falando muito da Grande-Mãe e do Pai? Antigamente a Deusa era a Terra e a Lua. O Deus, a príncipio, era o Sol. Galeraaa... qq Zeus tem de solar? Qq Hades tem de solar? Por todos os deuses do mundo... os arquétipos mudaram (OBS: não estou dizendo que os deuses são arquétipos) a manifestação e a interação entre homem + natureza mudaram. O sedentarismo trouxe um conceito de sociedade de interação humana, interação esta que faz parte da interação entre diversos deuses que definitivamente não são a Grande-Mãe. Trazem aspectos desta? Obviamente, pois são suas "crias".
J.A.A. Torrano, em seu estudo da Teogonia menciona que os deuses que nascem de outros deuses são explicitações do gerador, mas não eles próprios (os geradores).
Hello... o mundo é mais que Sol, Lua, Bem e Mal. Homem, Mulher. Acordemos...
Então, Jota, quanto a isso de deusa-mãe e deus-solar ou deusa-trina e deus-fertilizador é que se diz que esse povo é muito mais duoteísta do que politeísta, pois consideram todas as deusas aspectos de uma só deusa e todos os deuses aspectos de um único deus.
ResponderExcluirEssa redução é mais incômoda de alguém que se diz politeísta do que aquelas reduções de "Zeus é o deus do trovão", "Hera é a deusa do casamento" etc, porque eles não são só isso mas também são isso, enquanto que as reduções a dois deuses acabam não só com os aspectos como também com as personalidades individuais deles.
Por isso que nem estremeci tanto quando - semana passada - ouvi uma palestrante dizer que Hermes era o deus da sabedoria e Atenéia era a deusa da justiça, porque de certa forma eles são deuses disso 'também'. Ao menos a mulher foi criativa e fez sentido (e era filósofa, adoro!). Já os devotos da "Deusa Fofa" falam coisas totalmente nonsense dos helenistas...
E é por essa redução incômoda pra nós, mas super comum pra eles que os deuses são USADOS em feitiços. Pobre Afrodite, plena em beleza! rss
ResponderExcluirSó pra complementar meu post com algo que falamos pelo MSN, além da relação homem + natureza , citei a questão da sociedade, com a criação da sociedade inicia-se a criação das pólis (cidades) com isso tem inicio os processos políticos, lideranças e interesses pessoais X coletivos, que são expressados pelos mitos, que são representação da prática, como a Alex menciona na citação a W. Burket.
Enfim... ado ado ado... tá todo mundo ferrado kkk (só pra descontrair ;)
PS2: Apesar de todos os rebates e citações que faço aqui, não sou nem um pouco contra o culto a Deusa e ao Deus, só não apoio a degradação de uma cultura diferente como meio de afirmação de outra.
ResponderExcluirNós pagãos já sofremos muito com isso por parte da cultura judaico-cristã, acho que, definitivamente, não precisamos nos degladiar dentro de um mesmo ramo, enfim.
Se existe uma coisa insuportável é "crente" radial e fundamentalista, crente ateu, crente marxista, crente cristão, crente budista, crente seja lá o que for, - sou a verdade e você tem que se submeter a mim.
ResponderExcluirA fé é um dom pessoal e intransferível.
E assim como o homem ter que se conciliar coma mulher que a em si para ser feliz, as mulheres o terão que fazer com o homem que há em si.
Abraxas
O que eu penso é que falta seriedade nessas pessoas..parece que empurram tudo pela barriga,lê no google alguma coisa sobre os Deuses e acham que sabem tudo e acabam viajando na maionese..falta de compromisso, não querem realmente estabelecer um culto sério, so querem andar por ai dizendo que seguem "a religião mais antiga do mundo" como eles dizem.Claro que eu não falo de TODOS que seguem a Wicca ou segmentos similares, mas de pessoas que tão por ai só por modinha, pra aparecer ou porque não tinha nada pra ver na tv...
ResponderExcluirDepois de alguns anos observando estas questões e fatos, eu só consigo pensar que essa gente barraqueira quer mais é se auto-promover com a imagem de cabo eleitoral de uma divindade idealizada.
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