outubro 12, 2012

Cobrir para Revelar


Há um certo movimento entre os politeístas, especialmente em honra a Héstia, mas também a outras deusas (Hera, Afrodite, Perséfone...), de mulheres cobrindo a cabeça com véus, lenços, bandanas etc. Isso tem raízes históricas e motivos diversos. Ainda assim, é importante lembrar logo no começo deste texto, que o véu não é um requisito (ou seja, não é obrigatório) e que nenhuma das mulheres que o utilizam pregam que outras o usem (apenas apoiam as que o decidem usar por vontade própria).

Para começar, o ato de cobrir os cabelos aparece em várias religiões, como - por exemplo - as desta imagem: 

A ideia de usar véu é muito associada aos islâmicos e aos cristãos extremamente conservadores, como os menonitas. Mas essa prática começou antes do próprio monoteísmo. Existe evidências de que os muçulmanos/islâmicos apenas mantiveram a tradição de várias religiões politeístas da área onde surgiu o islamismo. E o conceito de mulheres cobrindo suas cabeças aparece como norma cultural desde a Assíria:
"Para conseguir distinguir as mulheres livres e honráveis das escravas e concubinas, estabeleceram-se leis. As mulheres respeitáveis foram levadas a usar o véu enquanto aquelas consideradas não-respeitáveis eram forçadas a andar com a cabeça descoberta. Assim, o véu se tornou um símbolo exclusivo de respeito; um privilégio que era negado a escravas, prostitutas e concubinas." (Alexandra Kinias, tradução minha)
No livro "Aphrodite's Tortoise: The Veiled Woman in Ancient Greece", o autor mostra que o véu era uma extensão consciente da casa e era normalmente chamado de 'tegidion', que significa 'pequeno telhado'.

Algumas mulheres das outras religiões mencionadas dirão que cobrem a cabeça em sinal de submissão à vontade de Deus. Mas cobrir a cabeça não significa necessariamente submissão. As mulheres judias costumam dizer que cobrem as cabeças para se lembrarem de que existe algo acima e além delas, no qual elas precisam prestar atenção. 

Às vezes queremos ser mais espiritualizadas e ficamos só na vontade, mas quando você acrescenta um lembrete físico do seu caminho, isso vai te fazer recordar dele e de como você deveria estar se portando nesse caminho que escolheu. Você sente que não está sozinha na vida, tem algo acima de você, há deuses te cercando, te ajudando, e que estão sempre ali porque você pode senti-los. Internamente, é como usar um manto de poder espiritual que nos deixa mais confiantes. Pode até dar uma sensação de status, como uma coroa.

Outra razão para usar o véu, oposta ao status, é a da modéstia. Os dicionários costumam definir modéstia como algo moderado, sem vaidade, simples, e que tem relação com a conduta e com a maneira de se vestir. Como a máxima diz "nada em excesso", isso poderia se incluir na questão de não mostrar a todo mundo suas belas madeixas, só a alguns para quem você escolhe desvelar-se. Se nós encorajamos o direito das pessoas a usarem tatuagem e piercing, porque não lhes damos também o direito a vestir-se com recato e cobrir a cabeça? Se até os naturistas sabem respeitar quem não quer ficar nu? A diversidade humana é muito mais extensa do que conseguimos imaginar, e nossas crenças prezam pelo respeito a esse amplo espectro. 

Esse vestir-se com modéstia traz também um efeito mágico das deusas donzelas-guerreiras. É como se as camadas de roupas te dessem a impressão mental de uma armadura (ou elmo), de um tornar-se intocável. Antigamente, os corseletes e corpetes eram considerados modestos, depois é que virou item sensual, talvez justamente por esse efeito de armadura. Uma vez que eles comprimem o corpo, que são durinhos, podem dar essa sensação armada. O fator sensual fica acrescentado por conta de suas curvas e decotes, e por dar uma vontade extra com a demora que há em desamarrá-los para descortinar o conteúdo. Por isso muitos vêem a modéstia como algo 'sexy'.

Há também a opção de se usar o véu apenas no ritual. É como um sinal para que, se alguém te ver te véu, ele/ela vai saber que você está envolvido em um trabalho sagrado. Quando você coloca sua roupa branca, seu peplos, seu chiton, sua roupa limpa, para participar de um ritual, você está enviando ao cérebro um sinal de que não está num espaço comum, que algo especial vai acontecer.

Da mesma forma que há tal efeito no ritual, se você passa o dia de véu, isso vai te lembrar que o seu cotidiano é especial, que o seu caminho é sagrado. Mas a dificuldade em usar o véu fora do espaço do nosso 'temenos' é que vivemos em uma cultura que não apóia essa prática, e que frequentemente pode achar que você é muçulmana, em vez de reconhecer sua crença real.

Outro efeito dado pelo véu, segundo observação de relatos de politeístas, é que a maioria delas se sentia mais madura, mais adulta - mais mulher, menos menina -, com todos os poderes e responsabilidades inerentes a isso. E, quando escolhemos o sinal de nossa maturidade (colocar o véu), isso tira o estigma biológico de marcar a idade adulta com a menstruação. Hoje, em que podemos escolher não menstruar, não faz sentido deixar de participar de ritos de passagem e de rituais relacionados à lua só por não estarmos 'sangrando'. Não somos menos mulheres por isso. Se nos seus pensamentos, no seu discurso, na sua abordagem com a vida, você se vê mais como mulher do que menina, o véu ajudaria a personificar esse sentimento. 

Nessa mesma pesquisa/observação, notou-se que quase todas as politeístas que cobriam a cabeça eram reconstrucionistas de algum tipo. E algumas helenas usam o véu quando estão fazendo trabalhos domésticos, como sinal de devoção a Héstia. Além de ser mais higiênico cozinhar com os cabelos cobertos.

Hoje a nossa forma de cobrir os cabelos pode ser por véu, bandana, lenço, echarpe, entre outros. Na Grécia Antiga, usava-se uma túnica chamada chiton (χιτών) e, por cima dela, o himation (ἱμάτιον), que podia ser puxado para cima da cabeça, cobrindo várias partes, como na figura:


Com todas essas considerações, acredito que o que podemos concluir como benefício de se usar o véu é que isso encoraja outras mulheres politeístas a re-examinar nossos valores, no que acreditamos, se nossas convicções são fortes e importantes o suficiente para trazer questionamentos ao mundo de fora, se respeitamos a escolha do modo de vestir de cada pessoa.

Nós crescemos sem muitas das habilidades que nossos antepassados tinham. Nós não tecemos mais, não saímos pra caçar, não duelamos com espadas, nem navegamos mais (na água, não na Internet). Não dominamos mais todas essas artes, perdemos parte dessa herança. E não é culpa do feminismo que deixou de dividir as tarefas, e sim da industrialização que tirou a necessidade de caçarmos pra comer, de tecermos pra nos vestir, de combatermos por um pedaço de terra, de conduzirmos um barco pra viajar. Ao menos alguns costumes, como o do uso do véu, pode trazer nosso pensamento de volta a algo ancestral e autêntico, dando visibilidade real ao nosso caminho com os antigos.

Ainda assim, é difícil utilizar o véu fora do espaço sagrado de ritual, pois ainda existem perseguições a mulheres que usam véu, tanto que há um movimento internacional ("Covered in Light" - Cobertas de Luz) para conscientização dessa discriminação contra mulheres que escolhem cobrir suas cabeças. O movimento pede justamente para mostrar solidariedade a elas cobrindo a cabeça, e reunindo fotos de pinturas famosas de todas as épocas - nas quais as mulheres retratadas mostram que a beleza de mulheres com véu atravessa o tempo e a história.

Como chamei a atenção no início e ao longo do texto, o uso de véu não é uma exigência nem uma recomendação, e sim uma escolha e um direito. Quem decidir usar, deve ser respeitada. Quem não quiser, também será apoiada. Como dizia Epiteto, "cada um deve chegar ao divino por seu próprio caminho". Não tem por que impormos uma coisa ou outra.

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Fontes (em inglês):
With all due Modesty
Veiled Pagans
Tichel, tichel, tichel
Shaming tactics against Hellenic recon women who wear a head covering

outubro 06, 2012

Saúde mental... como ajudar?


Esta semana uma politeísta dos EUA mentalmente enferma veio a falecer em um incêndio em seu quarto, aparentemente provocado por ela mesma. Isso suscitou em muitos de nós uma reflexão sobre como poderíamos agir em situações semelhantes, como grupo, como apoio religioso mesmo. Afinal, era iminente que algo acontecesse, já que para os mais próximos ela falava sobre o fogo como meio de acessar o divino, embora ao mesmo tempo viesse ordenando pedras linearmente numa mesa como se quisesse se reorganizar, como se buscasse por aquilo que nos traz de volta a uma realidade saudável. Talvez por isso que não se imaginava que as coisas chegariam a tal ponto. O fato é que - como no caso de muitas aflições mentais - algumas pessoas achavam que ela só estava se comportando mal ao dizer que era esposa de Hermes, e não que fosse um problema real. Achavam que era apenas uma "drama queen" e não alguém que precisava de ajuda. Mas se alguma coisa boa surgiu do evento trágico, foi a reflexão que suscitou em nós, que nos provocou a pensar sobre nossa própria organização como rede, como um todo. Até porque foi um choque. Eu havia conversado com ela algumas vezes, e fiquei sentida de alguma forma. 

O fato é que até os estudiosos têm dúvidas sobre o uso da religião no tratamento de distúrbios mentais, se é algo útil ou prejudicial. Algumas pesquisas mostram que religiões relacionadas com possessão e exorcismo são mais prejudiciais a longo prazo do que as que se baseiam em prece e meditação. Há um estudo que mostra um templo na Índia utilizado para a cura, onde as pessoas passam um tempo lá - o que me lembrou muito Epidauro, de Asclépio. No estudo, aplicaram um teste psicológico antes e depois do período no templo, e o teste na saída chegou a mostrar melhores de 12%. Mas outras pesquisas relatam como a superstição de origem religiosa pode abalar ainda mais a razão de uma pessoa.

Nossa crença é de certa forma relacionada com a filosofia, o que poderia fazer alguns pensaram na "filosofia clínica" que afirma "mais Platão, menos Prozac"; e, embora eu não goste de como eles lidam com isso e saiba que algumas questões não podem ser tratadas só filosofando, há algo bem útil relacionado com o pensamento básico de a filosofia nos ajudando a lidar com o mundo. Quando tomamos os mitos por si, eles têm coisas muito estranhas que só entendemos quando lemos a análise que os filósofos fazem daqueles mitos. 

E, mais recentemente, temos as teorias da psicologia analítica dos junguianos e pós-junguianos considerando a mitologia uma forma de acessar nossas verdades interiores e nos tornar seres humanos melhores. Podemos listar uma série de escritores que seguem este caminho. Mas mesmo Jung dizia que: devemos aprender tudo sobre o máximo de coisas, mas na terapia devemos ser apenas um ser humano diante de outro ser humano. Muitos entendem isso como "estude mitologia, mas saiba que a pessoa que você está tentando ajudar não é Héracles ou Perséfone, são apenas elas mesmas".

Se olharmos alguns personagens míticos, encontraremos Héracles na sua loucura matando a esposa e filhos, e depois sendo purificado ou reparando o ato através do trabalho. Isso poderia nos fazer pensar sobre ter um emprego ou tarefas para fazer a fim de curar nossa enfermidade. Isso se parece muito com o que pretende a arte-terapia e a terapia-ocupacional.

Por outro lado, temos Odisseu fingindo estar louco para não ser convocado para a guerra em Tróia. Palamedes descobre o truque de Odisseu. Ou seja, a loucura pode então ser simulada, e é talvez por isso que alguns familiares têm uma resistência em acreditar que se trata de uma doença e considera aquilo apenas um "mau comportamento".

Dioniso era um estranho para os gregos, eles temiam o desconhecido, a diferença. As pessoas com distúrbios mentais normalmente se sentem desconfortáveis com um estranho, e elas mesmas se sentem estranhas no mundo. Alguns pais também pensam que nem todo comportamento de uma pessoa com enfermidade mental é por causa da doença, eles acham que algumas de suas respostas são coisa de criança, preguiça, "falta de Deus" e coisas do tipo. Eles procuram por médicos que dizem que é uma psicose, procuram por sacerdotes que dizem que é um problema espiritual, e acabam acreditando nos dois ao mesmo tempo.

Em outras religiões, há também uma sintomatologia psiquiátrica causada por ação sobrenatural, similar à possessão e usada como punição (vocês podem procurar pelo relato de Nabucodonosor ou mesmo o de Saul, na bíblia).

Então vemos que a mitologia às vezes ajuda e às vezes alimenta/aumenta os problemas; depende de como a utilizamos - se como uma ferramenta/muleta ou se como uma fuga/tábua-de-salvação. No caso da garota que tentou alcançar o divino ateando-se fogo, as informações (sabe-se lá de qual fonte de estudos mitológicos/espirituais) que ela acessou só pioraram sua disposição original.

Talvez a melhor forma de agir como grupo religioso seria apoiar as pessoas como faríamos fora da religião (listo algumas dicas abaixo, ainda nesta postagem), e mostrar a elas que há exemplos na Antiga Hélade que eram solucionados assim como eles podem solucionar suas questões com a ajuda que terão dos amigos e dos Deuses; como as coisas acontecem por uma razão; como deveríamos tomar as rédeas das nossas vidas como heróis, realizando um feito por vez; como até os deuses (como Dioniso) não eram totalmente compreendidos também; como erros do passado podem ser purificados e reparados... e toda essa maravilhosa visão ética de mundo que o modo heleno antigo de viver nos ensina.

É difícil propor algo de forma geral assim sobre esse tema, mas poderíamos nos unir para ajudar caso a caso se nos propormos a procurar pelo auxílio do grupo quando vemos alguém precisando. Talvez, se tívessemos nos unido para ajudar a moça que morreu (em vez de julgá-la, falar com ela privadamente, deixar ela pra lá, parar de procurá-la para conversar), sua situação teria outro desfecho.

Ajudar 'online' é dificilmente muito efetivo, mas ainda podemos fazer algo. Se as pessoas sentirem nosso comprometimento em ajudar, se sentirem que têm apoio nos seus esforços para melhorar, se sentirem-se seguras para tentar coisas que de outra forma (sozinhas) seria assustador, se perceberem que não precisam passar pelos problemas sozinhas, já estaríamos ajudando. Nós podemos insuflar coragem à sua falta de esperança, mas provavelmente teríamos que verificar se nós próprios somos fortes para fazer isso. Às vezes ajuda ter o mesmo problema para compartilhar experiências, mas às vezes ajuda mais se fizermos elas perceberem que podem confiar na nossa força, como alguém que é capaz de "salvá-las".

Coisas que nós NÃO devemos fazer: ficar bravos com elas; evitá-las; julgá-las; dar conselhos que elas não pediram; prometer coisas que não podemos cumprir; falar sobre o problema delas o tempo todo; minimizar o problema tipo dizendo "sai dessa" (se pudessem, já o teriam feito); dizer que sabemos o que elas estão passando (outra pessoa nunca sabe o que estamos passando, ela não tem a mesma história e personalidade que temos); ficar falando sempre sobre o passado (seus problemas são aqui-agora).

Coisas que DEVEMOS fazer: aceitar o fato de que elas têm uma doença (muitas pessoas não vêem as doenças mentais como doenças, mas são); aprender/estudar sobre seus distúrbios e como lidar com isso; ajudá-las a identificar os sintomas (incluindo os físicos); ouvir com atenção; encorajar seu envolvimento em atividades que elas gostem (esportes, hobbies, atividades culturais), embora não em muitas de uma só vez (se elas se envolvem em muitas atividades, o excesso de demandas vai fazer elas pensarem são um fracasso - por não conseguirem cumprir todas); encorajá-las a procurar ajuda médica; sugerir que elas mantenham um registro escrito; entre outras coisas.

É legal lembrá-las das coisas boas que elas têm, sorrir pra elas (ainda que por carinhas de internet), oferecer ajuda nas tarefas diárias (há coisas que é mais fácil para você terminar do que pra elas), mostrar que você sente muito pelo que elas estão passando, perguntar como podemos ajudar...  Também é importante demonstrar que você está percebendo o progresso delas, o que elas já conseguiram realizar, e que elas não precisam ter pressa - elas podem fazer um pouquinho por dia, e ainda podem ter a nossa ajuda para fazê-lo.


Não sei se sou uma boa fonte para falar dessas coisas, faz anos que não lido com psicologia, mas espero ter ajudado a despertar alguma percepção útil aqui. E espero sinceramente que não precisemos de mais "baixas de guerra" para nos apontar que deveríamos ser mais unidos como grupo para ajudar nossos semelhantes, ainda mais aqueles que compartilham de nossas crenças.