abril 20, 2011

Tira-dúvidas 3: 'Ativar! Forma de...'

Alguém comentou numa rede social sobre ter lido por aí que Hécate supostamente teria 30 metros de altura (!). OK, vamos refletir juntos sobre esse negócio de antropomorfismo e afins.

Nos textos antigos, os deuses eram descritos como jovens, altos, belos e imortais - tudo o que se imagina de um 'ideal' (lógico!). Certo, então vamos começar de trás para frente: Por "imortais" não significa que todos eram "eternos", ou seja, eles não eram deuses que existiram sempre desde o início, pois eles nasceram um dia, tiveram um começo, embora não morram mais. Por "belos" entendemos da harmonia e do conceito de belo que vai além de gosto/preferência estética (como dizia Safo, "Quem é belo é belo aos olhos e basta, mas quem é bom é subitamente belo"). Esse "altos" já se esclarecia nos textos de que não significa que eles sejam descomunais (como os gigantes), e sim apenas seres de estatura elevada. E esse "jovens" refuta a imagem que se faz de deuses idosos, como se todo sábio tivesse que ser um velhinho numa montanha.

As imagens antigas de Zeus adulto o traz barbado, mas jovem. Héstia no helenismo não era uma anciã, era uma jovem. Os sincretismos de hoje que o transformaram num "deus pai" e ela numa "velha sábia" foi que influenciaram em novas representações que não existiam antes. Os deuses da Hélade eram pintados/moldados/descritos como em pleno vigor físico e mental, e não como idosos que poderiam lembrar enfraquecimento e esquecimento.

O contrário também se considera. Apesar de termos representações dos deuses bebês - porque um dia eles foram mesmo crianças -, todos cresceram. O Eros grego chegou a ser um adolescente moreno, em oposição ao romano Cupido que era um bebê loirinho, e o próprio Eros depois teria amadurecido ainda mais ao encontrar o amor de Psiquê e diminuir a sua dependência em relação à mãe Afrodite.


Nos mitos, vemos os deuses se metamorfosearem em animais (cisne, touro, urso...), plantas (jacinto, loureiro...), fenômenos atmosféricos (chuva de ouro, nuvem...) e outros seres humanos (como o marido que foi para a guerra...). E, se eles podem assumir outras formas, esse é mais um motivo para não vê-los como uma imagem fixa.


Ou seja, tudo isso são ferramentas de aproximação para podermos ter para onde olhar ao falar com eles, para termos uma ideia no que pensar, e não para levar as descrições ao pé da letra. Não é para - como aconteceu em outra rede social - discutirmos a cor do cabelo de Apolo se o tipo físico dos gregos é de serem morenos e os hinos chamam o deus de loiro por seu aspecto solar. Meu Apolo e o de muita gente vai ser pintado de loiro, quer você queira ou não. Esse tipo de coisa não invalida o meu culto. O que seria estranho era se eu oferecesse uma coisa da qual ele não gosta ou o representasse com um símbolo de uma coisa que ele não é. Mesmo as supostas 'inimizades' divinas das quais já falamos em outro momento são controversas. Se um dia Poseidon e Atena disputaram o patronato da capital da Grécia, convém lembrar que: enquanto ele é o deus dos mares, ela inventou o navio; enquanto ele é o deus dos cavalos, ela inventou as rédeas.

Agora, voltando ao início do 'post', acho que o que comentamos em outra postagem dava o suficiente para nos fazer pensar que Hécate pode tanto estar em algo tão microscópico como uma membrana celular quanto em algo tão macrocósmico como uma barreira intergaláctica. Então acredito que deve ser complicado afirmar que ela tem exatos 30 metros de altura. (Seria até difícil segurar as chaves das coisas sendo assim, rsrs.)

Portanto, cuidado com coisas rígidas demais. Apesar da nossa fama de certinhos, isso não se aplica a esquecermos o métron, o equilíbrio, a justa medida, o "nada em excesso", o evitar os exageros tanto para mais quanto para menos. Sejamos sensatos e procuremos as coisas que façam sentido. Nem tudo o que está escrito em livros é verossímil...

abril 04, 2011

Tira-dúvidas 2: Cidade?

Vamos pelo método socrático de definir as coisas antes de falar delas. Aqui escolhi usar um pouco da definição de um teórico que não é da antiguidade para a expressão "religião cívica" - até porque na antiguidade provavelmente não se falava nesses termos. Rousseau, em 'O Contrato Social', define religião cívica como um cimento social que unifica o estado e o provém de uma autoridade sacra. Isso incluiria deidades, vida após a morte, recompensa da virtude e punição do vício, e exclusão da intolerância religiosa.

Tendo definido isso, vejamos por que falamos do helenismo como uma religião cívica.

Quando tratamos da religião grega antiga, podemos abordá-la de duas formas: pelas suas origens ou pelo seu caráter cultural, de comunidade cívica. Os estudiosos dizem que a religião helênica foi estrutura junto com a pólis. Tudo o que havia antes (da pólis) foi reinterpretado e traduzido para caber no esquema das cidades.

Eis algumas coisas que demonstram essa interação:
₪ As procissões religiosas da época incluíam funcionários públicos de diversas categorias da sociedade, para que todos ficassem representados;
₪ As peças do festival da Dionísia eram compostas de temas civis ou com mitos de deuses da cidade onde estavam sendo encenadas;
₪ O fogo de Héstia da cidade ficava no prutaneion (escritório) do magistrado, e diante desse fogo é que o Conselho recebia os embaixadores estrangeiros, seguindo o princípio da xenia (hospitalidade);
₪ A refeição que conselheiros e embaixadores compartilhavam incluía uma thusia (sacrifício) e estabelecia - no 'comer junto' - laços entre os mortais e com os deuses;
₪ O Tesouro não era público, desde o ano 447 ele ficava no Parthenon, sob proteção e posse de Atena.
₪ A Justiça não era só uma alegoria (uma moça vendada com a balança para representar imparcialidade e equilíbrio), e sim algo que era cobrado por Zeus, que não deixava uma injustiça impune;
₪ ...entre outros exemplos possíveis.

Enfim, a religião não era centrada na 'alma individual', mas na corporação cívica chamada 'pólis'. Tanto era assim que cada pólis tinha seu calendário com seus festivais religiosos próprios.

Nas nossas inclusões modernas, temos ritos aos deuses da cidade em dia de Independência do Brasil, Proclamação da República e ano novo civil. E nas adaptações ao modo urbano de ser e celebrar, consideramos a 'colheita' representada pelo recebimento do salário ou qualquer outra renda que entre como resultado do fruto do nosso trabalho.

Imagem: detalhe de "Grateful Hellas" (Hélade Agradecida) - Theodoros Vryzakis, 1858.

O que difere da ideia de um estado religioso de hoje - quando esperamos mais o estado laico, que no nosso caso é melhor - é que naquela época não existia isso de a religião atrapalhar a cidade em prol de um grupo dominante (hoje os 'cristãos'); o que existia era uma religião que reunia as classes sociais em torno de um culto local comum. Além disso, se mesmo em Rousseau (que é mais 'atual') se incluía a questão da "exclusão da intolerância religiosa", parece que os antigos faziam isso com mais propriedade do que os modernos.

É interessante aproveitar para lembrar que esse é um dos motivos de nós não estarmos tentando reconstruir a sociedade grega, apenas a sua cultura. Tentar fazer as coisas serem como eram antes é algo muito mais do revivalismo do que do reconstrucionismo - que considera o fato de sermos pessoas diferentes em época diferente com todo um outro "zeitgeist" (espírito de época) por trás das modificações. Uma casa ou um vaso reconstruído nunca vai ser igual ao original e nem tem como (seria quase como fantasiar 'psicoticamente' que é o mesmo vaso e a mesmíssima casa).

No entanto, se agora não podemos atuar numa pólis inteira, ainda assim temos o dever de tentar tornar ao menos o nosso oikos (lar) semelhante ao modo virtuoso de trazer os deuses para nossos assuntos civis: celebrando com eles nossa fartura doméstica (a 'colheita'), recebendo bem nossos convidados (hospitalidade), mantendo uma chama acesa para Héstia, promovendo a justiça, compartilhando refeições que incluam ofertas, selecionando as peças/filmes que vamos assistir, praticando algo pelo bem comum, combatendo preconceitos, acolhendo tudo o que possa elevar o nosso dia comum para mais perto do sagrado.

Quem sabe de oikos em oikos um dia não reconstruímos um demos e quiçá uma nova pólis?