dezembro 20, 2013

O bacanal não é no natal...

... e Dioníso não é 'Djísus'.


Nesta época do ano, começam a dizer que o 25 de dezembro era originalmente o aniversário de deidades antigas que foi assumido como o natal cristão. Se você falar de Mitra, é até aceitável. Se falar que o Natal teve origem no Sol Invictus ou na Saturnália, OK também. Mas dizer que era o nascimento de Dioniso, não bate. Você até pode celebrá-lo, afinal, existe o festival moderno dos "12 Dias Dionisíacos", e porque - sinceramente - sempre é época de cultuarmos Dioniso e celebrarmos sua energia de liberdade. Basta você não dizer que "na antiguidade" ele nasceu em dezembro, porque não há nada que confirme isso. 

Dioniso tem sim muita coisa a ver com o Jesus cristão em muitos aspectos que não precisamos elencar de novo aqui, mas não significa que são iguais, pois suas diferenças são maiores do que suas semelhanças. E uma delas é que não havia na Grécia Antiga um festival a Dioniso no solstício de dezembro. 

Primeiro de tudo, não existia "dezembro", o calendário era com ano solar e meses lunares, variava muito em relação ao calendário que conhecemos e utilizamos hoje, o gregoriano. Pode ser que houvesse um festival num dia do mês de Poseideon que - em algum ano aleatório - caísse no 25 de dezembro, mas isso não aconteceria todos os anos e demoraria um pouco a cair de novo na mesma data. 

Segundo, Dioniso nasceu várias vezes. Qual aniversário as pessoas alegam estar comemorando? O dia em que ele saiu dourado e alado do ovo órfico (Fragmento Órfico, 54), quando ele nasceu em Creta de Zeus e Perséfone (Biblioteca Histórica, de Diodoros Sikeliotes, 5.75.4), quando ele surgiu das chamas que queimaram Semele (Teogonia, de Hesíodo, 940), quando ele saltou da coxa de Zeus após completar sua gestação (Biblioteca de Apolodoro, 3.28), quando ele veio de Demeter (Diodoros, 3.62), de Dione (Escolástica em Píndaro, de Pitágoras, 3.177), de Amaltheia (Diodoros, 3.67), de Isis (Alexarkhos, fragmento 3.324), do Indus (Vida de Apolônio, de Filostrato, 2.9), do Lethe (Simposíacas, de Plutarco, 7.5) ou de outros tantos progenitores que se alega serem seus pais?

Terceiro, será que algum desses nascimentos foi no solstício de dezembro, início do inverno na Grécia? Vamos ver?

Diodoros (3.66.3) menciona um festival de nascimento de Dioniso em Teos: "Os teanos afirmam como prova de que o deus nasceu entre eles o fato de que, até hoje, em períodos fixos na sua cidade, uma fonte de vinho, de incomum fragrância doce, flui sozinha da terra”. Alguns acham que esse período fixo fosse no inverno, porque havia um milagre parecido em Andros, registrado por Plínio, o Velho: “Muciano, que foi três vezes cônsul, acredita que a água que flui de uma fonte no templo do Liber Pater na ilha de Andros sempre tem o sabor de vinho no dia 5 de janeiro: o dia é chamado de Dia do Presente de Deus... Se os jarros são carregados para fora da vista do templo, o gosto volta a ser de água." (História Natural 2.106; 31.16). Essa identificação tem alguns problemas, no entanto. Primeiro que as duas ilhas são muito longes uma da outra - Telos na Beócia e Andros na Eubeia - e com culturas muito diferentes. Segundo que Plínio não fala em nascimento do deus, e sim mais em uma epifania com Dioniso dispensando seus dons à humanidade de uma forma memorável. Não podemos dizer que sempre que um milagre de vinho acontece - por exemplo, quando as mênades em êxtase fazem sair vinho do chão ao baterem com o tirso nele - significa que o bebê Dioniso vai nascer.

Aelian (Sobre os Animais 12. 34) reconta um festival dionisíaco onde o nascimento do deus com chifres de touro era dramatizado: "As pessoas de Tenedos mantém uma vaca prenhe para Dioniso Anthroporraistos (Assassino de Homens) e, assim que ela tem seu bezerrinho, eles cuidam dela como se fosse uma mulher de resguardo. Eles colocam coturnos no bezerro e o sacrificam. Mas o homem que usou o machado recebe uma saraivada de pedras atiradas pela população, e ele foge até chegar ao mar." Mesmo não fornecendo datas, sabemos que esse festival não era no inverno, porque a temporada de parto do gado na Grécia é durante a primavera e o verão. Inclusive, Pausânias (8.19.2) menciona que no vilarejo arcadiano de Kynaithai, durante um festival de inverno, homens carregavam um touro (escolhido por inspiração divina) nos braços até o santuário, mostrando que o animal tinha atingido seu tamanho ideal nessa época do ano. 

Píndaro também menciona (Frag. 75) um festival em Tebas honrando Semele como mãe de Dioniso, mas este acontece “na abertura da fragrante primavera, quando as Horas trazem as plantas que exalam néctar” e “a terra imortal é decorada com violetas adoráveis e donzelas entrelaçam rosas em seus cabelos e cantam docemente acompanhadas de flautas para a deusa que ama a dança”. Essa seria uma boa razão para não crermos que Dioniso nasceu no inverno, pois no inverno as videiras parecem ramos inférteis. Dioniso tem uma conexão tão poderosa com o ciclo de vida das plantas que não faria sentido alguém dizer que essa é a época em que mais sentimos a 'juventude exuberante do deus'. Pareceria mais apropriado dizer isso na primavera, como Plutarco escreveu (Sobre Ísis e Osíris 69): “Os frígios acreditam que o deus dorme no inverno e acorda no verão, e com frenesi báquico eles celebram naquela estação o festival de ele ser ninado até o sono, chamado Kateunasmous, e na outra celebram seu despertar com o Anegerseis. Os Paflagonianos declaram que ele é agrilhoado e preso durante o inverno, mas que na primavera ele se move e se liberta novamente”. 

Diodoros (4.3.2-5) dizia que, em outras regiões, essa sequência não era encenada todo ano, mas ano sim e ano não, mantendo a rotação dos campos e o ciclo de vida da uva: "Os beócios e outros gregos e os trácios, em memória da campanha na Índia, estabeleceram sacrifícios ano sim e ano não para Dioniso, e acreditam que nessa época o deus se revela aos seres humanos. Consequentemente, em muitas cidades gregas, bandas de mulheres se reúnem ano sim e ano não, e é permitido às donzelas carregarem o tirso e se unirem na frenética folia, gritando 'Evoé!' e honrando o deus; enquanto as matronas, formando grupos, oferecem sacrifícios ao deus e celebram seus mistérios e, em geral, exaltam com hinos a presença de Dioniso, desta maneira agindo como mênades que, como registra a história, eram as antigas companheiras do deus".

Está certo que, em Delfos, esses ritos provavelmente aconteciam no inverno, conforme Plutarco (Sobre o Princípio do Frio, 18) que conta das Thyiades, as mulheres que celebravam os ritos de Dioniso, cujo nome vem de 'thýo' (sacrificar): "O frio é perceptível nas coisas mais duras e faz as coisas ficarem duras e inflexíveis. Teofrasto, por exemplo, nos diz que quando peixes congelados são soltos no chão, eles se quebram e partem em pedaços assim como objetos de vidro na louça de barro. E, em Delfos, você mesmo já escutou, tem o caso daqueles que escalaram o Parnaso para resgatar as Thyiades quando elas ficaram presas por um forte temporal e tempestade de neve, que as capas delas estavam congeladas tão duras como madeira que, quando as abriram, elas quebraram e partiram.” Mas o inverno era a época em que Dioniso controlava a Delfos de Apolo pois o arqueiro tinha partido para as Hiperbóreas, também conforme Plutarco (Sobre o E em Delfos, 9): "Dioniso não tem menos a ver com Delfos do que Apolo, embora Dioniso - a quem eles chamam Zagreus e Nyctelios e Isodaites - não é constante, e Apolo é. Há a sua passagem e a distribuição em ondas e água, e terra, e estrelas, e plantas e animais que nascem - e essa transformação eles descrevem como uma rendição e desmembramento. Pois Ésquilo diz: 'Em gritos misturados o ditirambo deve soar, com Dioniso festejando, seu Rei'. Mas Apolo tem o Peã, uma música sóbria e rígida. Apolo está sempre jovem e imutável; Dioniso tem muitas formas e muitas figuras, como representados nas pinturas e esculturas, que atribuem a Apolo a suavidade e a ordem e a gravidade sem mesclas, e a Dioniso uma mistura de esportividade e atrevimento, com seriedade e frenesi. [...] Os períodos em que eles governam não são iguais, são chamados 'saciedade' os mais longos e 'escassez' os mais curtos, preservando uma proporção, e usam o peã com seus sacrifícios para o resto do ano, mas no começo do inverno revivem o ditirambo, e param o peã, e invocam este deus em vez do outro, supondo que essa razão/proporção de três para um é a do 'Arranjo' da 'Conflagração'". 

E, um pouco depois de Dioniso dar caminho a Apolo que retornava a Delfos - ou seja, na primavera -, os atenienses celebravam a Anthesteria ou 'festa das flores', o casamento sagrado do deus com a rainha que trazia fertilidade à terra (Demóstenes, Contra Neaira 73-76): “E esta mulher ofereceu a você em nome da cidade os ritos sagrados inenarráveis, e ela viu que era apropriado a ela, sendo uma estrangeira, ver; e, sendo uma estrangeira, ela entrou onde nenhum outro ateniense, exceto a esposa do rei, entra; ela administrou o juramento às 'gerarai' que servem nos ritos, e ela foi dada a Dioniso como sua noiva, e ela executou em nome da cidade os atos tradicionais, muito sagrados e inefáveis, dirigidos aos deuses. Em tempos antigos, atenienses, havia uma monarquia em nossa cidade, e o reinado pertencia a aqueles que se sobressaíam por serem nativos. O rei costumava fazer todos os sacrifícios, e sua esposa costumava executar aqueles que eram mais sagrados e inefáveis – e apropriadamente, uma vez que ela era uma rainha. Mas quando Teseu centralizou a cidade e criou a democracia, e a cidade se tornou do populacho, as pessoas continuaram não menos do que antes a selecionar o rei, elegendo-o de entre os mais distintos em qualidades nobres. E eles passaram uma lei de que sua esposa deveria ser uma ateniense que nunca tivesse tido intercurso com outro homem, mas que se casasse virgem, para que, de acordo com o costume ancestral, ela pudesse oferecer os sagrados ritos inefáveis em nome da cidade, e que as cerimônias costumeiras deveriam ser feitas para o deus piamente, e que nada deveria ser neglicenciado ou alterado. Eles inscreveram esta lei em uma estela e a colocaram diante do altar no santuário de Dioniso em Limnais. Essa estela ainda está lá hoje, exibindo a inscrição em desgastadas letras áticas. Portanto, é pelas pessoas que testemunharam sua própria devoção aos deuses e deixaram um testamento para seus sucessores, que requeremos aquela que será dada ao deus como noiva e executamos os ritos sagrados para esse tipo de mulher. Por essas razões, eles a estabeleceram no mais antigo e sagrado templo de Dioniso em Limnai, para que a maioria das pessoas não pudesse ver a inscrição. Pois ela é aberta uma vez por ano, no décimo-segundo dia do mês de Anthesterion.”

Agora vamos pensar: durante o inverno, temos um Dioniso ctônico festejando no topo da montanha com mulheres dançarinas em frenesi, que largam o rei para ficar com ele. Parece um Dioniso bebê? Outra questão: os ritos a Dioniso (Anthesteria, Dionísia Rural, Lenaia etc) se parecem de alguma forma com o natal cristão? Não. Então, se há algum antecedente pagão para o natal, seria a Saturnália e/ou o Dies Natalis Solis Invicti – festivais os quais não têm a ver com Dioniso.

Portanto, se quisermos celebrar Dioniso, que seja sem dizer que é porque os festivais dionisíacos são a origem plagiada pelo natal cristão. Dionísio não é capricorniano. Provavelmente, seria taurino. ];o) 

(Adaptado de fontes extraídas do "Dionysos is not the reason for the season", de Sannion, com comentários meus. Todas as traduções das citações em inglês por Alexandra.)

dezembro 17, 2013

Os 10 problemas mais comuns nos rituais

É claro que o que vamos elencar aqui são erros que vários de nós cometemos enquanto estamos engatinhando na prática de ser politeísta, mas isso faz parte da aprendizagem. Não devemos nos 'martirizar' se nos identificarmos com muita coisa, e muito menos deixar de fazer as coisas por medo de errar; apenas vamos tentar fazer melhor da próxima vez. No geral, essas observações surgem de quando vemos rituais que parecem mais centrados nas pessoas ali reunidas do que nos deuses a que se dedicam. 


1- Forçar intimidade em público

A pessoa decide fazer um ritual a certa deidade que ele não tem nenhum contato, só porque quer a ajuda dela em certo propósito; aí estuda o que ela gosta de receber e chama a galera para o rito onde lê os hinos a convidando para perto. Na cabeça dessa pessoa, que nunca contatou aquela divindade antes, basta fazer umas ofertas que a deidade vai trabalhar pra ela. É tipo, você quer ser cineasta, aí chama o Steven Spielberg pra te ajudar e espera não só que ele apareça na sua casa como te ensine tudo o que ele sabe em troca de lhe servir sua torta favorita. Não interessa se ele nunca ouviu falar de você, que você não conversou com o empresário dele antes, que não o chamou para tomar um café e ficou amigo dele aos poucos, antes de esperar que ele te visitasse e resolvesse seus problemas. Não é o mais lógico? Primeiro, estabeleça um relacionamento com aquele/a deus/a, em particular. Depois que você sentir sua presença mais constante na sua vida, aí sim você pode lhe apresentar seus amigos e fazer um rito público. Não saia exigindo que Apolo lhe faça virar um Beethoven se você não sabe nem de onde veio a lira dele.

2- Chamar e ignorar

A pessoa faz as preces chamando a deidade para perto, daí continua fazendo as coisas do ritual como se nada tivesse acontecido. Ora, você chamou o deus e agora age como se ele tivesse entrado na sua cabeça e pronto. Deixa eu te falar: eles são reais. Sinta-os, escute-os. Você pode ler os hinos, cantar, rezar, falar o que deseja dizer, mas e depois? E na hora de eles retribuírem essa energia, você não faz uma pausa para recebê-la? Quando você sentir que já chegaram, comunique-se com eles. Não desligue o "telefone" antes de eles responderem seu "alô". Pode demorar a estabelecer conexão, mas uma hora dá linha, e não fará sentido ligar pra alguém sem a intenção de escutar a voz dela. E, sabe, na real às vezes a gente não precisa dizer nada, a pessoa (e a deidade) só quer sentir que você está ali por ela. Como disse a Suzana lá no grupo do facebook, "o importante é se expressar de forma bela e solene, seja no silêncio ou nas palavras, o Sagrado requer um tipo de elegância que é estranha ao profano". Seja elegante. O conceito principal do helenismo com certeza é o de 'kalós', o "belo".

3- Esquecer-se da "xenia" (hospitalidade, amizade convidativa)

A pessoa chama a deidade pra sua casa, mas não a trata como um convidado. Não lhe dá conforto e respeito. Parece repartição: "que bom que você chegou, vamos trabalhar". Com um convidado, a gente conversa com ele, guarda seu casaco, oferece um bom lugar pra sentar, pergunta se quer beber alguma coisa, se interessa em saber como está sua vida, antes de começar a conversar sobre trabalho. Em termos de ritual, significa que, depois de chamar a deidade, você deve lhe fazer ofertas, libações, agradecer (não só pedir coisas pra você), sentir/ouvir o que ela deseja, deixar a relação fluir em vez de seguir um 'script' que você escreveu. Saia um pouco do roteiro para dar lugar ao inesperado. Às vezes os planos dos deuses te levam por outro caminho que você se surpreende de um jeito bom. Se isso te assusta, se não quer perder as rédeas da situação e entregá-la nas mãos dos deuses, então isso não é um relacionamento ritual, é uma "performance" teatral (e de monólogo). Deixe espaço no seu ritual para sentir coisas, ou mesmo para consultar oráculos com a intenção de ler o que quer que eles queiram te dizer. Inclusive pode ser que surja algo que foge daquilo que você conhece. Por exemplo, uma vez ganhei uma pedra que historicamente estava associada com certo deus, mas na hora de torná-la oferta votiva, foi outro deus que me a pediu para o altar dele. E, ao pesquisar depois sobre ela, vi que fazia todo o sentido estar ali. Quando a dúvida bater, sempre é bom pesquisar para ficarmos mais seguros.

4- Esquecer-se da "kharis" (reciprocidade)

A reciprocidade é comumente mal compreendida. Não é "magia", não é uma transação comercial, 'eu te dou vinho e flores e você me dá favores'. OK, isso funciona, mas só em curto prazo. Se você quer ficar confortavelmente no rasinho da piscina devocional, limite-se a isso aí e pronto - e depois não reclame que os deuses só te ajudam quando querem alguma coisa em troca. Mas, se quer criar um relacionamento verdadeiro com eles, tipo daquelas amizades em que qualquer presente que a pessoa querida lhe dá seja significativo, que se você está em apuros ela corre para te socorrer sem pensar duas vezes, e coisas do tipo, então nade pro fundo, naquele lugar onde não dá mais pé na piscina. Faça ofertas regulares sem precisar de grandes rituais. Faça rituais dedicados à natureza, à cura do planeta, a coisas mais de comunhão e devoção do que para você. Torne essas práticas uma forma de 'apro-fundar' (ir 'pro fundo', lembra?) seu relacionamento com os deuses. Aí você vai ver o que acontece quando você precisar de ajuda em algo. Seja aquele amigo sempre presente, sempre cedendo seu tempo e sua atenção, sempre pensando no outro, comprometido e cuidadoso, interessado e sincero, constante e disponível. A reciprocidade vai acontecer e você vai nadar e mergulhar sem medo. É melhor do que ficar no rasinho segurando na boia.

5- Querer impor sua vontade

Essa é uma das principais razões de não praticarmos magia de coerção. Não se deve tipo mandar os deuses virem, ordenar que eles façam tal coisa, despachá-los depois para irem embora e esperar que desapareçam. Não os use, eles têm vontade própria, e eles podem escolher não te responder, não se envolver com você, não te ajudar, não estar presente. Diga "obrigado" e "por favor" e "olá" e "até logo". Eles não são ferramentas que você coloca de volta na estante e que espera que lhe sirvam pra seu próprio benefício. Não são instrumentos inanimados. Eles são reais e vivos. E muito mais sábios do que você... Confie no julgamento deles!

6- Não respeitar os amigos em rito em grupo

Aqui vão vários conselhos em um só item: Se alguém está concentrado meditando, não o perturbe. Se for tirar uma foto, peça permissão a quem vai aparecer no enquadramento, pode ser que a pessoa não queira expor sua religião pro mundo. Não apareça no ritual cheio do álcool ou intoxicado. Não fique pegando nas coisas dos outros sem permissão, mesmo que você ache lindo e queira ver de perto aquele pingente que ela está usando. Não fique julgando o preço dos artefatos que as pessoas trouxeram. Leve suas próprias ofertas. Não chegue atrasado. Não jogue ofertas no fogo sem ter sido convidado a fazê-lo. Se alguém lhe pedir para fazer algo, tipo ler um hino, leia; todos ali são voluntários também, e ninguém está só assistindo enquanto come pipoca. Se você não tiver com quem deixar as crianças e precisar levá-los para lá, fique de olho neles, eles são seus filhos, não espere que os outros participantes cuidem deles pra você. Se alguém ofereceu a casa dele/a para o rito do grupo, leve um presentinho ou ofereça ajuda na arrumação. Enfim, seja educado.

7- Deixar de fazer ritual porque não tem oferta material

Olha, as atitudes valem mais do que os presentes. De que adianta eu dar uma estatueta de bronze para Ártemis e jogar lixo na rua? Tem tanta coisa que você pode fazer como oferta... Além disso, você sempre tem algo físico para oferecer sim. Não precisa ser cevada e vinho, pode ser pão e água. O importante é o sentimento, a meditação, o contato, a lembrança, o exemplo que você passa pro mundo.

8- Fazer rito só em dia de festival

Se você se limitar aos festivais para se aproximar dos deuses, é como se esperasse o dia dos namorados e o aniversário de casamento para fazer algo legal pro seu cônjuge. Se você age assim, ele pode acabar se separando de você. Assim como é preciso demonstrar seu amor no cotidiano, você precisa fazer seus ritos de coração, não por obrigação de uma agenda. Além disso, na Grécia Antiga, cada polis tinha um calendário diferente. Não é preciso seguir piamente um calendário oficial; estamos falando de 're-ligião', de se 're-ligar' aos deuses, e isso independe de datas. Não estou dizendo para esquecer os festivais, apenas para não limitar seu relacionamento/prática espiritual a eles.

9- Fazer as coisas com pressa e sem intenção

Como falamos no item 2, às vezes pode demorar a estabelecer conexão, a se sintonizar no ritual. Uma coisa é você estar passando por um altar e rapidinho soprar um beijo ou deixar uma flor, isso sim é ótimo para mostrar que você se lembrou deles, que tem o desejo de manter contato e estabelecer constância no relacionamento de vocês. Outra coisa é dizer que vai fazer um ritual, lavar as mãos como de costume, aí chegar lá, acender a vela, ler um hino, fazer um pedido, apagar a vela (tipo bolo de aniversário), ir embora, e postar nas redes sociais que realizou um festival. Faz toda uma produção no altar pra sair bonito na foto, mas não se concentra, não escuta a deidade, não reflete no sentido da data, não traz nada de ensinamento pra sua vida, e ainda acha uma chatice ter que pausar seu videogame pra fazer o "rito". Olha, fazer um rito direitinho também dá XP, ok? Não no seu joguinho, mas na sua vida.

10- Virar um robô

Você pode achar legal os novos drones e afins, mas os robôs devem servir você e não você virar um deles. Você é humano. Isso significa principalmente duas coisas: que você falha e que você é capaz de agir sem programação. Em termos de ritual, significa: purifique-se antes (tome um banho ou pelo menos lave as mãos) e seja espontâneo. Ninguém gosta - nem os deuses - de se relacionar com máquinas sem emoção, que ficam repetindo um hino perfeito (até em grego clássico com a tônica correta) e não sentem nada daquilo que estão dizendo. Uma estrada reta é monótona, são as curvas que nos deixam animados. Faça curvas. Mude o roteiro. Surpreenda. Mostre que está vivo - e que pensa. Os deuses gregos, ao contrário do deus abraâmico, gostam de heróis virtuosos e não de servos pecadores. Deixe-os orgulhosos, e não com pena de você. Mostre que valeu a pena eles te darem atenção.

Essas foram as coisas das quais conseguimos lembrar. Se você já cometeu alguma delas, é natural. Só tente fazer melhor das próximas vezes.

novembro 17, 2013

"Nos litorais desse Oceano Atlântico..." ♫

"Não troco minha onda pela de mais ninguém. 
A vida é um rito pagão." 
(Lulu Santos)

# O que sabemos de Poseidon?

Sabemos pelo site do theoi.com que ele é o deus do elemento fluido, que - como o mar circunda e sustenta a terra - ele mesmo é descrito como o deus que segura a terra ("gaiêochos"), e que tem o poder de sacudi-la ("enosichthôn", "kinêter gas"). Sabemos também que o símbolo de Poseidon é o tridente, ou lança de três pontas, o qual ele usa para despedaçar rochas, convocar ou subjugar tempestades, sacudir a terra, e coisas do tipo. Sua imagem não apresenta tanto da calma majestosa de seu irmão Zeus, mas o estado do mar é variável, então também Poseidon é representado às vezes em violenta agitação e às vezes em repouso. Segundo Heródoto, o festival celebrado em honra de Poseidon por 'todos os jônicos' perto de Mycale era a 'Panionia'. No Hino Homérico, ele é descrito como o "senhor dos cabelos escuros", e o hino pede "seja gentil de coração e ajude aqueles que viajam em navios". No Hino Órfico, também se fala dos "cachos escuros" do "deus de cabelos escuros", e pede "acrescente paz gentil, junto a uma saúde de belos cabelos, e verta abundância em uma maré irrepreensível".

# Como ele tem aparecido para mim?

Há uns meses, eu vinha numa onda de boa sorte. Ganhei vários sorteios no meu trabalho, inclusive uma viagem para Salvador para assistir a shows de música (entre eles o da Joss Stone). Eu estava tão movida de entusiasmo ('entheos' = ter um deus dentro), que comecei a selecionar e organizar em um livro os poemas que escrevo desde os 11 anos de idade, e voltei a escrever mais alguns. Acreditando que também fazia parte dessa boa sorte, surgiram algumas vagas para comissionamento no serviço. Mas levei duros golpes em ambas. A primeira acredito que por preconceito, a julgar por uma pergunta que me fizeram na entrevista e o fato de colocarem um homem no lugar. Um turbilhão de emoções (água) e sentimentos de ser injustiçada me invadiu e, como diz a via sacra, "caí pela primeira vez". A segunda por provável desonestidade e injustiça, já que fiz uma das melhores entrevistas da minha vida, mas na hora do feedback a gerente demonstrou nem saber de quem ela estava falando e descobrimos que aquelas vagas (em outra cidade) eram marcadas para pessoas que haviam sido relocadas de um órgão que foi extinto - ou seja, a seleção foi só fachada. Os dias que passam entre você achar que foi excelente na entrevista e a divulgação do resultado são sempre de muita tensão, de noites mal dormidas, de coração acelerado em ansiedade; ainda mais em uma situação em que eu iria mudar de cidade e pensava que era ação de Poseidon me empurrando para outros mares, uma vez que até sonhei com aquela música do Kleiton e Kledir que diz "Tenho os olhos no cruzeiro, as sereias como guia, e Netuno me protege noite e dia. E nem piratas, nem borrascas nem dragões vão me impedir de ser feliz, de levantar a minha âncora e partir..." Todos no trabalho e na minha família estavam seguros de que daria certo, ficamos surpresos. Mas não foi desta vez. E, nesse momento, eu nem chorei mais, senti até certo alívio de não ter que enfrentar uma mudança tão grande por um salário que nem era muito maior do que o meu. E aí descobri que meu pai estava com depressão por problemas financeiros, e precisei ajudar. Percebi que a situação é bem pior do que eu imaginava, e talvez tenhamos que nos mudar para uma casa menor. Nessas horas, refleti em como Poseidon me assusta (e não me assusto tanto com Ares). A depressão do meu pai estava começando a me afetar, porque o valor que utilizei ajudando-o corresponde a 5 meses do meu salário líquido, e porque isso nem vai resolver, porque mês que vem virão as próximas prestações das mesmas coisas. Enfim, essa série de acontecimentos ruins e eu sem entender por que os deuses me chamam pra uma seleção se eles não pretendiam me dar a vaga. Normalmente a gente só vai descobrir os motivos depois, mas também comecei a pensar que devo deixar de ser tão determinista. Talvez nem tudo o que acontece seja planejado. Talvez nem tudo seja planejamento e lógica, às vezes seja puro instinto e emoção. 

E, enquanto isso, sonhos, sonhos com a água invadindo os lugares onde eu estava. No último, me apareceu primeiro o Lulu Santos conversando comigo sobre esses acontecimentos (e, quando peguei as letras de dezenas e dezenas de músicas dele, notei que ele deve ser de Poseidon mesmo, rs). Depois a água começava a subir lá fora do apartamento onde estávamos. Eu ia até a janela e gritava para Poseidon, perguntando por que eu sonho tanto com a água do mar invadindo onde estou. Poseidon passava, azulado, com sua coroa e rabo de cavalo-marinho, me olhava e seguia pelo caminho sem responder; mas aí o "apartamento" girava (coisa que não acontecia nos sonhos anteriores) e eu percebia que estava era tipo em um barco. Do outro lado, tinham índios na praia com arco e flecha, aí eu girava de novo e no alto-mar tinha tubarão. Onde eu virasse, estaria em perigo. Ele não falou, mas mostrou; como se dissesse 'não reclama, que do outro lado também está ruim'. Ele girou o apartamento como se fosse um barquinho... 

Conversei com dois amigos, um deles também é líder na sua religião, a outra é uma curadora. Ambos sugeriram que eu parasse de dar meu dinheiro para meu pai e deixar que ele mesmo resolva suas dívidas, senão seremos os dois afundando. É, "afundando". Olha Ele. Começou lá com a Joss "Stone", passou pelo barquinho à deriva do sonho, e chegou no tufão e no terremoto das Filipinas. No meio disso, discuti e me entendi com um amigo que parece ser muito de Poseidon e acha que é de Zeus (assim como Poseidon queria ser Zeus na época em que os reinos foram divididos - ou assim como o Lulu canta que "o meu destino é ser star", rsrs). E eu aqui, ainda tentando entender Poseidon e suas marés, ainda acendendo vela pra ele, ainda saudando-o toda manhã em que passo em frente ao mar, resolvi recorrer aos meus estudos na psicologia.

# Quem é Poseidon para os psicólogos?

Vamos começar pelo ateniense Viktor Salis. Em seu livro "Mitologia Viva", ele afirma que Poseidon é a força do inevitável e do inadiável, das tarefas essenciais da vida, aquilo que se faz por necessidade e não por vontade. O tridente de Poseidon representaria a união do celeste com o terrestre e com o abissal. Essa mesma força que sacode as marés e os vulcões abalaria o nosso interior e nossa saúde física e mental quando não respeitamos nossos próprios ritmos e "marés".

Raïssa Cavalcanti, em "Mitos da Água" (que tenho um exemplar autografado), vai mais além. A princípio, Poseidon reinava sobre as águas do mundo ctônico, sobre as emoções mais profundas e inconscientes. Depois da vitória de Zeus sobre os Titãs e a divisão dos reinos, Poseidon ficou sendo o senhor do mar, um deus que possibilita o acesso a essas fontes internas de conhecimentos, sentimentos e emoções. Quando ele encarcera os inimigos no Tártaro, fechando sobre eles as pesadas portas de bronze, ele reprime os impulsos primitivos que poderiam perturbar a ordem da consciência. Ao mesmo tempo, Poseidon detém o poder fertilizador das águas, inclusive é associado ao cavalo e ao touro, ambos símbolos de fertilidade. O "sacudidor da terra", "o que faz nascer", também lembra sua ligação com Deméter, com quem se uniu em forma de cavalo. Na França e na Alemanha, se acreditava que o cavalo possuía o espírito do trigo, por isso se cuidava bem dele na época das colheitas. No xamanismo, o cavalo é como um psicopompo, que viaja entre mundos (podendo ser essa uma viagem da terra para as profundezas abissais do mar). Pégaso, o cavalo alado que Poseidon doou a Belerofonte, é símbolo da inspiração poética. Poesia! Raïssa diz que "Posídon é o deus detentor do grande reservatório de energia vital usado nos processos criativos e na possibilidade de transformação, transcendência e espiritualização dessa energia". Ela também afirma que "Posídon governa o seu império como deus justo e bondoso, mas que pode, em alguma ocasiões, se tornar violento. No entanto, quando isso só acontece, é apenas para corrigir e compensar a uniteralidade, a falta de equilíbrio. A Posídon é atribuído o domínio do medo, das coisas imprevisíveis, por isso ele costuma causar temor. Seu tridente é descrito pelos poetas como tão terrível quanto o raio de Zeus; podendo distribuir benesses ou castigos, podendo agitar ou acalmar as águas. (...) Ele dissolve provocando borrascas e tormentas, mas também pode acalmar a fúria do mar e fazer brotar nascentes". 

Voltando a essa questão da criatividade, a psicologia arquetípica também coloca Poseidon como um artista. Ele escolhe uma terra improdutiva sem nada e cria um mundo inteiro para si, cria a sua própria realidade, numa profundidade tão grande e escura quanto o próprio oceano. Ele sente as coisas muito intensamente (a água sempre esteve ligada ao emocional), e as expressa através de sua arte. Ninguém consegue conhecer totalmente esse mundo oceânico, mas esse mundo oceânico pode cobrir o nosso mundo sólido se ele quiser. Poseidon é senhor desse mundo. Aqueles que têm a sorte de receberem permissão para adentrá-lo, deveriam ser gratos e oferecer o devido respeito. Quando Poseidon está agindo, nós vivemos as emoções muito intensamente, e isso nos dá bastante coisa com a qual trabalharmos por uma transformação real. Entender essas coisas, vai lentamente elevar sua auto-estima e sua auto-aceitação.

Jean Shinoda Bolen, em "Os Deuses em Cada Homem", faz duas listinhas sobre Poseidon. Primeiro a de como reconhecer Poseidon ativo em sua vida, dizendo que devemos procurar por: fortes emoções encapsuladas em vez de expressões instantâneas; sentimentos fortes; raiva incontrolável; maus perdedores; desconforto com o mundo acadêmico e os reinos intelectuais; ações mais baseadas no instinto e nas emoções do que na lógica e no planejamento. A outra lista era de possíveis empecilhos para viver o arquétipo de Poseidon: ser visto como alguém emocionalmente instável e inapropriado; os homens serem criticados por conta de a demonstração das emoções não ser tradicionalmente aceita entre os homens; baixa auto-estima por a sociedade não permitir que você seja você mesmo. 

No "Tarô Mitológico", de Liz Greene e Juliet Sharman Burke, Poseidon é a Torre, e as torres sempre caem, as máscaras caem, as fachadas caem, para se revelar o real por trás das aparências. O terremoto de Poseidon sacode e derruba tudo. Como diria o Lulu, "não adianta fugir nem mentir pra si mesmo agora" e "demolirá toda certeza vã, não sobrará pedra sobre pedra".

[Imagem: Poseidon, por Buster Keaton]

# E agora?

Quando li sobre essas coisas, especialmente o "quando isso acontece, é apenas para corrigir e compensar a uniteralidade, a falta de equilíbrio", é que me lembrei que - antes de todo o estresse que vim passando - eu estava numa maré de boa sorte, e que a compreensão disso indica que agora vamos chegar a um equilíbrio, o suficiente para eu não ter de novo taquicardias e insônia.

Além do mais, de novo, 'talvez nem tudo seja planejamento e lógica, às vezes seja puro instinto e emoção'.

Ainda não tenho a resolução de muito do que relatei, preciso saber como vou ficar no trabalho, preciso saber como vamos resolver a situação financeira da família, preciso saber no que vai dar o livro de poesia, preciso saber os rumos dos novos projetos dos grupos de helenismo, preciso saber o que os deuses querem de mim para 2014... Mas, como viajo de férias no próximo fim de semana, vou manter a maré baixa e ver que transformação essa viagem pode me trazer, deixando os resultados para a volta, deixando pra tomar banho de mar quando a maré encher.

Acho também que vou dar uma de Lulu e "fazer da minha vida sempre o meu passeio público e ao mesmo tempo fazer dela o meu caminho só, único". Porque, aqui dentro, é sempre "como uma onda no mar".

outubro 20, 2013

Diálogo sobre o Daimon

J - Olha, falando de daimon de novo, cada vez mais começo a crer que pros arcaicos e clássicos não havia a ideia de daimon como a concebemos, e o tão famoso daimon de Sócrates é, na verdade (assim como em todos os outros casos), uma menção à sensibilidade a uma divindade da qual não se sabe o nome. Daí, pra não atribuir erroneamente a nenhuma divindade x ou y a ação, eles dizem que um daimon/nume os inspirou, agiu sobre eles.
A - Mas mesmo pra eles eram várias as concepções, né?
J - Então, no que temos de documentos literários, não. Daimon refere-se sempre a uma divindade desconhecida que age sobre algo/alguém. Isso, repito, no arcaico e clássico. Agora, se posteriormente associou-se a uma ideia de "anjo da guarda", não sei.
A - Vejo o "agathos daimon" como diferente do "daimon".
J - Mas o agathos daimon é pessoal?
A - O agathos daimon não acho, acho que é tipo uma deidade que às vezes associam com Zeus Ktesios.
J - Então...
A - Já o daimon eu veria como mais pessoal.
J - Porque assim como há o “agathos” daimon, há referencia a “kakós” daimon. 
A - Pois é, também por isso que não vejo como pessoal.
J - Mas assim, o daimon tem algo de pessoal, mas não algo de intimo. O daimon é uma divindade que age sobre um indivíduo ou comunidade, nem sempre é o mesmo daimon. Digo, não existe UM daimon que é "propriedade" de um individuo. Nesse sentido, seria mais ou menos como o anjo da guarda quando considera-se, por exemplo, que ‘n’ pessoas são protegidas de São Miguel, mas não é um anjo diferente pra todo mundo, sabe? Tem uma gama que pode reger/agir sobre.
A - Sim.
J - O Burkert fala algo sobre isso? (ainda não consegui lê-lo)
A - O Burkert, do agathos daimon fala da forma de serpente, e fala dos daimones comuns que Hesíodo cita serem os homens da raça de ouro que cuidam dos mortais e dispensam riquezas, continuando invisíveis; só se veriam seus atos, mas os pitagóricos afirmavam poder ouvi-los e vê-los.
J - É, eu iria acho que nesse sentido do Burkert também.
A - Ele também fala do daimon tipo quando, na Ilíada, Afrodite aparece para Helena como 'daimon' e um herói era 'como um daimon'.
J - É, algo numinoso/divino.
A - E tem a versão de Heráclito, que diz que o propósito de um daimon é direcionar-nos na Terra para um parentesco nos Céus, tipo uma 'planta do divino' na Terra. Platão fala dos daimones como intermediários entre deuses e homens, 'intérpretes e balseiros', mensageiros. A visão de Aristóteles é semelhante à de Platão. A de Xenócrates também, tipo almas na esfera divina abaixo da lua, mas no caso dele os daimones seriam afetados por coisas ruins, tipo sofrimento, trazer doenças e tal.
J - Quase espírita essa visão, rs.
A - Um tal de Epinomis divide um sistema dos cinco elementos, aí os semideuses seriam de natureza aquática, e os daimones de natureza aérea, sempre invisíveis.
J - Nossa... Mas ainda assim nada como individuais de cada humano, né?
A - Eu acho que a visão individual é parecida com a de Heráclito. Quando Burkert fala de Heráclito, ele diz que "o poder da compreensão intelectual é plantado como algo divino, um daimon, em um homem". Tipo o caráter da pessoa, a postura que vai diferenciá-lo. "Cada alma tem sua própria estrela da qual veio e para a qual retornará".
J - Entendi.
A - Quando o psicólogo James Hillman fala de daimon, é nesse sentido de uma coisa que você veio realizar, a semente de carvalho que vira o carvalho, você realizar o seu daimon. Ele mesmo afirma que pega muito de Heráclito.
J - Não conheço ele.
A - É num livro chamado The Soul Code, que foi traduzido como O Código do Ser. Ele dá exemplos de pessoas que desde pequena demonstravam pra que vieram ao mundo, rsrsrs. É meio motivacional até, você se anima em querer 'realizar seu destino'.
J - Hehehe, eu ainda to processando isso. Esse lance de não ter um "anjo da guarda", um intermediário, e nem mesmo um destino predeterminado como objetivo, me soam mais coerentes.
A - A de serem os homens da idade do ouro? Ou de serem deidades?
J - As duas, nesse sentido até calham, porque os homens da idade de ouro são ancestrais.
A - É.
J - Porque a gente não vê representações desses ditos daimons.
A - E aí até dá pra adaptar, dizer que são anjos da guarda 'comunitários'.
J - Rsrs, sim. Agora q estamos tendo essa conversa, confesso q me afastei um pouco também por conta dessas indefinições que pairam. Depois que comecei a faculdade, comecei a ver outras visões, que também faziam sentido e ainda to processando.
A - Quais outras visões mais você viu do daimon?
J - Só as nossas e, com a facul, essa que discuti com você.
A - Posso fazer um post sobre essas possibilidades que o Burkert cita e as nossas considerações, e postar no sofá dizendo que surgiu da nossa conversa?
J - Claro.

(Bom, resolvi postar o diálogo em vez de transformá-lo em um texto, para ficar mais fiel. Aproveito e mando um beijo a todos os que me procuram para falar desses assuntos lindos, divinos e numinosos.)  rsrs

Pietro da Cortona - "A Era Dourada"

setembro 24, 2013

Métron

Responda A, B, ou C, para as perguntas abaixo, de acordo com o que mais se aproxima da sua visão (ou se iguala a ela):

1. O que deve ser o ser humano?
A) Um servo que cultua de joelhos a coisa mais poderosa que encontra – seja um monarca, um milionário, uma celebridade, um líder militar, um deus.
B) Um realista, que sabe que a liberdade é uma ilusão e tudo o que somos é a consequência de uma cadeia de causas precedentes determinadas por leis infalíveis da ciência.
C) Alguém que procura se tornar consciente de seu potencial interior e não vê razão para – se for talentoso/virtuoso/evoluído o suficiente – não transformar-se ele mesmo em uma divindade. 

2. Quem é deus?
A) Deus é alheio e externo, que reside no céu desde o princípio do mundo, é algo que nunca poderemos ser, só podemos almejar conhecê-lo depois da morte.
B) Deus não existe ou Deus morreu.
C) Deus está dentro de nós e somos parte dele, podemos nos tornar um com ele, embora essa seja uma jornada de heroísmo, com perigos mortais no caminho. 

3. O que é uma enchente (e outros desastres naturais)?
A) É a vontade de deus que se indignou com o mal no mundo e mandou o dilúvio.
B) É um evento natural, consequência de um terremoto e subsequente tsunami.
C) É um movimento natural da Terra em consequência do desequilíbrio provocado pelas degradações ao meio ambiente.

4. Qual conhecimento é mais importante?
A) O derivado da percepção, dos sentidos, daquilo que experimentamos e sentimos. 
B) O derivado da razão, do pensamento, daquilo que podemos replicar em experimentos calculados.
C) O que equilibra a lógica com a intuição e o instinto.

5. O que é a 'alma' ou a 'mente'?
A) É o que ganhamos de deus e que voltará para se encontrar com ele no fim dos tempos.
B) É algo que não pode ser medido nem provado, portanto não pode servir como orientação; apenas podemos observar atividades neuronais/cerebrais, que também são físicas.
C) É algo que está em tudo e tudo tem uma mente/alma.

6. Como o mundo se desenvolve?
A) Deus o criou, fez o homem para governá-lo, e um dia voltará para terminá-lo e levar seu povo consigo, separando-o daqueles que não serão salvos.
B) Ele caminha para a desordem, para uma morte pelo fogo, segundo as leis da termodinâmica que tratam da entropia.
C) Ele se desenvolve através da resolução dos opostos.

7. O que é mais importante de se entender/estudar?
A) As escrituras sagradas.
B) A matéria, a percepção dos sentidos, o que se pode apreender pelo domínio sensorial.
C) A mente, a razão, o si-mesmo, o microcosmo como reflexo do macrocosmo e vice-versa.

8. O que é o universo?
A) O universo é algo criado por um deus que tem todas as respostas, só ele sabe os seus propósitos e desígnios, sua compreensão está fora do nosso alcance.
B) O universo é um mecanismo que funciona como um relógio, um computador natural, lógico e infalível, mas que um dia vai se desgastar.
C) O universo é um organismo vivo e cíclico, que segue dialeticamente solucionando conflitos, em busca de se aperfeiçoar.

9. E a moral?
A) A moral é algo transcendente, só existe em deus.
B) Não existe moral, o mundo é amoral.
C) A moral é algo racional e imanente.

10. Como você acha que as pessoas imaginam deus?
A) Um ‘deus’ de pura vontade – violento, irritado, cruel, caprichoso, que precisa destruir com água o mundo que criou porque errou e precisa refazer tudo de novo, que toma partido dos seus escolhidos contra o resto do povo, egoísta, e que exige que todos se ajoelhem para cultuá-lo.
B) Um ‘deus’ que é uma ordem, com tudo no seu lugar, com um lugar para tudo, com tudo funcionando harmoniosamente, tudo acontecendo de acordo com a razão e a lógica, sem contradições, sem reclamações, sem problemas, um verdadeiro computador.
C) Um ‘deus’ que reflete um cosmos orgânico que soluciona seus problemas, supera os obstáculos, busca a essência da vida, estimula as pessoas a se aperfeiçoarem até a iluminação - inclusive reencarnando quantas vezes elas precisarem.

11. O que você entende pela teleologia (estudo do "telos", da completude, do ponto último, do estado final absoluto)?
A) Ela reside em uma personalidade - deus, santo, anjo - que faz as coisas acontecerem no mundo, e prevê esse final como um Apocalipse, um Armageddon, um Arrebatamento, um Dia de Julgamento.
B) Ela demonstra que somos apenas máquinas movidas pelo determinismo, o livre-arbítrio é uma ilusão, e o universo caminha para a desordem.
C) Ela pode ser estudada pela matemática e pela filosofia, vendo o universo como um organismo vivo, capaz de gerar consciência e liberdade de escolha.

12. Com qual tipo psicológico você se parece mais?
A) Sou mais do tipo extrovertido sensação e sentimento.
B) Sou mais do tipo extrovertido sensação e pensamento. Apesar de ter pouca habilidade social, não sou introvertido, porque sempre procuro entender o mundo lá fora, o universo, e não o mundo interior.
C) Sou mais introvertido pensamento e intuição, às vezes com a função sentimento.

Se você marcou mais ‘A’, você se identifica mais com os da religião vigente, o abraamismo, de “fé”. Se você marcou mais ‘B’, com o ateísmo materialista, positivista, empirista e mecanicista, da “ciência”. Se você marcou mais ‘C’, se identifica com as religiões que buscam a iluminação ou a excelência ou algo semelhante (o “samadi”, a “areté” etc), que seguem a lógica da alma e da existência.

Agora vamos analisar um pouco algumas ideias presentes nesses itens:


I. DEIFICAÇÃO:

Abrãao não tem a simpatia de um herói. Seu compasso moral era tão falho que ele achava que estava fazendo algo bom ao ser obediente a uma voz que o mandava matar o filho. Não existe reflexão ali, só servidão a um poder maior. E obedecer é o que os abraâmicos mais fazem, e o que mais adoram fazer. Os judeus, por exemplo, obedecem a 620 mandamentos. Os muçulmanos obedecem servilmente a Alá. Os cristãos chamam Jesus de “senhor” e de “mestre”, e não de amigo, irmão, companheiro, camarada, parceiro, ou algo mais próximo. 

Os livros sagrados das religiões predominantes são cheios de histórias de controle e dominação, sobre humanos que se curvam e se prostram. Eles criam um buraco entre deus e a humanidade, a qual está sempre suplicando pela misericórdia de seu senhor e mestre. Eles precisam obedecer a comandos (‘co_manda-mentos’) e viver com medo da punição eterna se não o fizerem. 

No xadrez, um peão que chega do outro lado do tabuleiro vira rainha, a deusa do xadrez. A alma é algo similar. É um peão comum, que atravessa um imenso e perigoso campo de batalha (a vida) e é promovido à realeza. Precisamos cruzar o vasto abismo como heróis, realizando as coisas mais impressionantes, e nos tornarmos divinos. Mas esse é o destino de muito poucos peões. A maioria é levada pela mediocridade e não chega a saber o que é alcançar o outro lado, entendendo seu verdadeiro potencial. A maioria prefere cultuar a rainha que já existe do que procurar tornar-se ele mesmo uma majestade. O peão especial é aquele que enfrenta os bispos (figuras religiosas), as torres (senhores em seus castelos), os cavalos (pessoas ignorantes), e os monarcas – todos aqueles que tentam o intimidar e destruir e com os quais precisamos negociar. Esse peão sobrepuja as forças do privilégio, não se curva a ninguém, e prova o seu valor, seu mérito. 

Alguém que caminha para tornar-se divino acaba por fazer emergir naturalmente habilidades ‘paranormais’. Ele/ela adquire cada vez mais conhecimento, tolerância a frustrações, consciência da influência das coisas naturais no mundo etc. E nenhum desses “poderes” contraria a matemática. Se um poder não puder ser definido matematicamente, ele é uma fantasia. Mas superaudição, supervisão, metamorfose, entre outras coisas aparentemente sobrenaturais, todas são observáveis (principalmente entre alguns iogues na Índia) e são explicáveis matematicamente, então podem ser adquiridas. Como dizem por aí, “qualquer coisa que não é proibida, acaba acontecendo”. A sequência de reencarnações só terminaria quando o conhecimento ou iluminação ou excelência são alcançados.

Pensando assim, os deuses não “criaram” o universo, e sim são a culminação dos processos universais. São almas libertas e iluminadas. Podem então orientar os outros seres. E almas iluminadas não vão pedir que você se ajoelhe e as idolatre, nem vão te ameaçar com um castigo eterno se você as desobedecer. Um ser assim não é um iluminado! 

O ser humano começa como uma mente individual e subjetiva, com um egoísmo ingênuo e primitivo. Aí ele se reúne em grupos, forma comunidades, sociedades, Estado. Sua mente subjetiva é transformada em instituições objetivas e concretas. Depois, ele começa a retornar para si mesmo, mas em um nível superior ao anterior de onde partiu, como em uma espiral. O homem descobre três dons maravilhosos nele: a arte/beleza, o ideal religioso/divino, e o ideal filosófico/racional. Aí ele adquire independência, liberdade, conhecimento e compreensão. A filosofia é a culminação do que a arte e a religião procuram realizar. A arte e o sentimento religioso nascem do sentimento e da imaginação, mas elas falham um pouco na questão da razão. Para equilibrar isso, precisamos ser filósofos.

O teólogo Friedrich Scheleiermarcher dizia que, para o universo se realizar no seu máximo potencial, todas as partes dele deveriam também alcançar esse potencial máximo. As religiões de iluminação também pensam assim. O melhor universo possível é aquele em que cada alma alcançou o status de divindade, em que cada ser humano maximizou todas as suas habilidades. E um dos maiores obstáculos a essa realização global é o sistema de privilégios que temos, no qual uma minúscula elite se apropria de uma vasta parte dos recursos mundiais para si, negando aos outros a chance de também prosperar. 

Nietzsche ofereceu uma moralidade de auto-superação e de aperfeiçoamento até a perfeição do ‘super-homem’. Essa é uma moral racional e desejável. No entanto, Nietzsche era muito esnobe e elitista, e rejeitava a ‘massa comum’. As religiões de iluminação procuram aperfeiçoar todo mundo, e não só uns poucos favorecidos. Porque o universo evolui junto com as pessoas. A própria razão é algo que evolui do caótico a uma ordem e organização (o domínio de Zeus). Ela vive numa guerra de teses e antíteses até chegar numa síntese melhor e mais racional, e esta gera outra tese mais elevada, com outra antítese também mais elevada, que invocará uma síntese superior, e assim vai até a uma racionalidade divina.

Se todos somos partes da divindade e temos o divino em nós, quando ele evolui, nós também evoluímos. E a nossa divindade completa a divindade cósmica.

A espiral (ou hélice) simboliza a evolução, a eternidade, 
a espiritualidade, o crescimento, o DNA, a dialética...


II. DEUS(ES):

No estoicismo, a matéria mais fina (o pneuma) era conhecida também como “pyr technikon”, o fogo criativo que se assemelhava ao próprio Zeus. Ou seja, deus seria uma energia inerentemente criativa presente em todo o universo, animando tudo e governando-o de acordo com a razão (Logos) divina. Deus era tanto fogo (energia ativa) quanto logos (razão). O que deus é para o universo, a alma o é para o homem. Isto é, um homem é um universo em miniatura, um microcosmo. A alma humana (pneuma psychikon) é uma mistura de ar e fogo, uma porção do pneuma divino que permeia e rege o cosmo/universo. Os filósofos pré-socráticos também tratavam Zeus como uma espécie de mente cósmica abstrata impessoal.

Se a alma do universo é como a nossa alma, então essa força que anima o universo também sofre evolução, de algo inconsciente até a consciência. E isso requer uma multiplicidade de deuses. 


III. CRIACIONISMO – EVOLUCIONISMO – ETERNALISMO:

“Se algo existe, ele é eterno, já que nada vem do nada.” (Melissus) Assim, nada pode ser criado nem destruído (tudo é infinito), apenas transformado em manifestações diferentes da existência.  Nada pode ser acrescentado e nem subtraído. Nós fazemos descobertas matemáticas, e não inventos matemáticos. O atomista Leucipo foi o primeiro a declarar que “nada acontece do nada, mas tudo parte de alguma coisa e com alguma necessidade”. Nada aconteceria por acaso, todas as colisões atômicas são determinadas por leis que as governam. Dessa forma, até o Big Bang não seria um evento que aconteceu, e sim algo que continuaria ‘rolando’.

Algo que existe não pode surgir de algo que não existe. Isso é impossível. Todas as qualidades que se manifestam na existência já estariam presentes em formas mais simples, em unidades elementares de existência. Elas são libertas através do processo de evolução, do mais simples ao mais complexo. Descartes também argumentava sobre uma lei da 'conservação do movimento'. Nenhum novo movimento poderia entrar no universo, nem o atual ser destruído. Se algo aumentasse de velocidade num lugar, outro algo deveria necessariamente diminuir de velocidade em outro canto.

Mas há dois tipos de eternalismo: o do puro “ser”, de Parmênides, onde a mudança é ilusória; e o do puro “tornar-se”, de Heráclito, onde tudo está sempre mudando e se adaptando. Os atomistas (como Leucipo e Demócrito) tentaram resolver isso ao imaginar os átomos como entidades eternas e imutáveis (puros 'ser') que constantemente se movem e colidem, produzindo o mundo (um eterno 'tornar-se'). Porém, se tudo ocorresse via átomo se colidindo, esse seria um mundo muito materialista e científico, sem causas e propósitos. O universo estaria simplesmente se rearranjando infinitamente, sem nenhum sentido; quando – na verdade – o universo tem uma intenção, ele quer realizar algo.

Também há dois tipos de evolucionismo. Evolucionistas darwinianos são diferentes dos evolucionistas hegelianos com relação ao propósito do universo. Darwin fala das coisas se aperfeiçoando para se adaptar ao meio ambiente por seleção natural, mas não há um desejo de melhorar, de se tornar perfeito. A dialética de Hegel, por sua vez, inclui a teleologia, o universo “querendo” melhorar para se tornar mais perfeito. Hegel inclui vida e um aspecto mental ao universo, enquanto Darwin é puramente materialista. A dialética hegeliana mostra a humanidade se tornando cada vez mais perto de serem deuses, por conta do elemento divino que há em todos os seres humanos – bastaria comparar as habitações em cavernas da Idade da Pedra e as construções arquitetônicas modernas das cidades de hoje. O darwinismo não tem interesse no destino dos homens, já que não atribui nenhum propósito à vida. 

As religiões de iluminação são um meio termo entre o criacionismo mitológico e o evolucionismo lógico. O conceito de 'karma', por exemplo, que é uma dimensão moral dada ao universo, é criacionista. Mas a reencarnação e o 'samsara' são evolucionistas.

Os números, as formas geométricas, as leis das relações matemáticas, as leis da lógica, as fórmulas, equações e identidades matemáticas são ligadas ao “puro ser”. As funções matemáticas que sempre mudam e interagem, que são entidades dinâmicas, são ligadas ao “puro tornar-se”. O átomo é do ser, as combinações que formamos com eles são do tornar-se. A linguagem tem 26 letras do ser, as palavras e os pensamentos verbais são do tornar-se. 

Richard Dawkins, comparando-nos com uma enciclopédia, dizia que os átomos são como as letras, os nucleotídeos são como as palavras, os genes são como as páginas, os cromossomos como os volumes (cada livro), e o DNA como a coleção inteira com o nosso 'plano de design'. 

As camadas vão se organizando em coisas cada vez mais complexas. Essa é a essência da evolução. O sonho platônico de reconciliar Parmênides e Heráclito se realiza aí. 

Anaxágoras declarava que existiam substâncias fundamentais infinitas chamadas 'homoeomeries', de qualidades diferentes, que eram organizadas de uma forma lógica pela Mente (Nous) do cosmo. Tudo no mundo, por menor que fosse, seria composto de todas as homoeomeries possíveis (o grupo infinito inteiro). Ele dizia: “tudo tem uma porção de tudo oculto dentro de si, mas apenas aquilo que for mais numeroso será aparente”. Assim, tudo poderia ser transformado em tudo, apenas ao mudar a proporção relativa das diversas homoeomeries (ideia esta que influenciou a alquimia). Também por conta dessa ideia, tudo conteria o seu oposto, podendo dialeticamente mudar para a sua antítese. 

Se somos formados por essa substância, também nós somos eternos. E o Universo não é um mecanismo robótico estúpido, sem propósito e sem vida, como a ciência materialista crê. Ele também realiza coisas inteligentes e cheias de propósito, ele busca se completar, se tornar consciente. 


IV. MATERIALISMO/EMPIRISMO x IDEALISMO/RACIONALISMO:

Aristóteles uma vez falou sobre a esfera da lua ser a fronteira entre os céus e a Terra, onde tudo acima da lua seria etéreo e perfeito, formado da quinta essência (éter), e tudo abaixo fosse não-etéreo e imperfeito, formado dos quatro elementos (terra, água, fogo, ar). Os abraâmicos acharam isso o máximo, e resolveram dizer que seu deus estaria fisicamente no céu supervisionando tudo, o demônio fisicamente debaixo da terra tentando puxar as pessoas pras profundezas, e os humanos no meio. Só que o homem foi à lua, e observou ainda mais além, e mostrou que não era desse jeito. Ainda assim, em vez de testemunhar a descoberta da ciência e mudar sua visão de mundo, os abraâmicos simplesmente deram de ombros, deram as costas para a ciência e redobraram sua fé. A religião deles se tornou algo de pura fé. “Deus sabe mais do que os homens”, eles declaram. Ou seja, eles não nos dão esperança de que a humanidade aja racionalmente ou por argumentos válidos e justos. Ela teria que agir às cegas, por desejo e vontade (de um deus) e não pelo intelecto humano. É algo muito impreciso.

A filosofia é racional, ela busca a verdade (e não a vontade). O universo inteiro tem uma alma. Esse é um conceito que começou com Platão e foi desenvolvido pelos neoplatônicos. Os estoicos também acreditavam numa energia vital RACIONAL que dirigia o universo: a “alma cósmica”. Os humanos seriam fragmentos dessa alma, e a vida só fazia sentido se exercêssemos devidamente a razão. Se resistíssemos à razão, a vida provavelmente se tornaria algo miserável e confuso. 

A ciência é materialista, positivista, ateísta, mecanicista e determinista demais. Ela torna tudo uma cadeia inexorável de causas e efeitos determinada por forças científicas. Não dá espaço para o livre arbítrio, a alma, os deuses. O positivismo afirma que o conhecimento deve ser limitado a aquilo que pode ser observado e cientificamente compreendido. Ele só foca em fatos observáveis e proclama que qualquer proposição que não possa ser reduzida a uma afirmação simples dos fatos é ininteligível. A ciência é positivista, materialista, empirista, e – portanto – todos os cientistas são incapazes de considerar o domínio numinoso. Não devemos colocar fatos “observáveis” num pedestal. Toda hora lemos sobre algo “cientificamente provado”, mas um tempo depois o oposto da mesma coisa também é “cientificamente provado”. Isso só prova que a pessoa acredita cegamente (e aí parece fé) em qualquer coisa que um cientista diz. Isso sem mencionar o patrocínio que acontece por trás das pesquisas “científicas”. O alvo da ciência é mutável, ela sempre se contradiz e substitui velhas teorias desacreditadas por novas. A ciência não mira o conhecimento absoluto, só o conhecimento progressivamente mais confiável. 

Na verdade a ciência não prova nada. Ela só reúne teorias provisórias e evidências temporais que apoiam essas teorias. Não tem a ver com certeza, e sim com o grau de confiança que temos naquela afirmação. Quase uma crença. “Confiança” não é nem verdade nem conhecimento. A ciência trabalha com paradigmas, e paradigmas não são verdades, são apenas construções nas quais a ciência se baseia durante certos períodos. “Não há fatos, só interpretações” (Nietzsche). É diferente da matemática, na qual você tem 100% de certeza de que 1+1=2. Isso é um fato. 

Se você rejeita a alma porque a ciência não pode prová-la, então você elevou a ciência ao status de uma religião e proclamou que qualquer coisa fora do ‘Livro Sagrado das Pesquisas Científicas’ é falso. E isso é fé. Os sacerdotes da ciência transformam-na em algo dogmático, lucram com isso e assim ganham status.

Lembre-se de uma coisa: ausência de evidência científica não é evidência de ausência existencial. Só porque a ciência não pode provar que algo exista, isso não prova que esse algo não exista. 

Os materialistas e os empiristas normalmente se colocam em guerra contra os idealistas e racionalistas. Os primeiros conduzem a ciência moderna, os últimos colocam a mente acima da matéria. O materialismo científico é ótimo para estudar o universo físico, mas praticamente inútil na hora de responder perguntas sobre a vida, a mente, a consciência, deus, as almas, o pós-morte.

Nós só precisamos da ciência para explorar o mundo porque ainda não somos bons matemáticos o suficiente. O empirismo é a matemática subjetiva, e o racionalismo é a matemática objetiva. São dois aspectos da mesma coisa. O empirismo nos diz como é experimentar os sinais matemáticos. O racionalismo nos diz como executar esses sinais. Uma coisa não deveria rejeitar a outra. A informação sensorial e o raciocínio se complementam; um sem o outro se torna irrelevante. Carl Jung já dizia que “é provável que a psique e a matéria sejam dois aspectos diferentes de uma e da mesma coisa.”

Os cientistas do cérebro tentam provar que o livre-arbítrio é uma ilusão e que tudo o que fazemos nada mais é do que a consequência de uma cadeia de causas precedentes determinadas por leis infalíveis da ciência. A mente é deixada de lado, para as conjeturas e sonhos dos idealistas. Se isso for verdade, nossa vida não tem valor, nem sentido, nem uma razão de ser. E então o universo seria uma farsa, uma simples máquina girando sem razão alguma, para cumprir um programa sem propósito. 

Mas como cada átomo no mundo “sabe” como deve obedecer/reagir às leis da causalidade científica? Seria necessário que cada pedaço do universo, cada ponto adimensional, contivesse todas as leis cósmicas em si. E ter o cosmos em si é ter uma dimensão divina em si. Mesmo que os cientistas possam argumentar que essas “leis” estão gravadas no nosso DNA, como isso se aplicaria aos átomos? Qual é o “DNA” de um elétron, de um fóton, de um quark, de uma onda de energia? Como eles sabem exatamente o que fazer? Se os átomos são o hardware, onde estariam seus softwares, e como os átomos são programados? 

Você não precisa ser ateu para ser uma pessoa de razão. Existem religiões que possibilitam pessoas racionais a se comprometerem plenamente com elas. Assim é com o helenismo, por exemplo. 

Dizem que somente uma pequena parcela da humanidade pode ser considerada “racional”, de 10 a 20%. Essas pessoas são identificadas pelo seu interesse na ciência, no ateísmo, no agnosticismo, no ceticismo, em assuntos acadêmicos, em derrubar teorias de conspiração, em filosofia. Todas têm no mínimo um pé atrás com as religiões abraâmicas e não se sentem à vontade com a ideia de “fé”.

Mas todas as pessoas, mesmo as “irracionais” (as mais “sentimentais”), são intuitivamente matemáticas. Elas gostam de música (que é matemática), elas sabem apanhar uma bola no ar sem pensar (sem ficar fazendo cálculos de projeção e velocidade do projétil etc). Todos nós resolvemos essas equações de uma forma praticamente inconsciente, porque esse elemento sagrado do Logos está presente em tudo. 

Observem os autistas. Eles fazem cálculos matemáticos como se fossem computadores, mas nem se dão conta disso. É como se a resposta simplesmente já estivesse presente ali com eles. Essa intuição reflete processos cósmicos acontecendo subliminarmente. Agora observem os abraâmicos. Muitos mal sabem contar e escrevem fora da norma culta da língua. Os muçulmanos proclamam com todo o orgulho que seu profeta Maomé era analfabeto. Você gostaria que o fundador de sua religião fosse um cara que nem sabe ler?

Heráclito criticava Homero e Hesíodo, porque as pessoas escutavam o que eles diziam e aceitavam a autoridade deles sem questionar. Heráclito queria que as pessoas pensassem por si mesmas, que vissem as coisas em vez de ouvir falar delas, que descobrissem as coisas sozinhas e não ouvindo servilmente os outros. Ele percebia que as pessoas costumavam atravessar a vida como autômatos, como robôs. Heráclito também odiava a democracia, a chamava de “ochlocracia” - o governo da multidão ignorante. 


V. FÉ x LÓGICA E VERDADE:

Roger Bacon escreveu que o triunfo da ignorância tinha quatro fontes principais: o apelo a uma autoridade inadequada, a influência indevida do costume, as opiniões de uma multidão inculta, e as demonstrações de sabedoria que simplesmente encobertavam uma ignorância. Não podemos ser guiados por crenças apenas por elas serem largamente difundidas e populares. A verdade não é democrática. Não se trata de uma disputa de popularidade. 

Schopenhauer dizia que a verdade passava por três estágios: primeiro ela é ridicularizada, depois é violentamente combatida (as pessoas se opõem a ela), e por fim ela é aceita como auto-evidente. Mesmo o “senso comum” não é algo muito acertado. Einstein dizia que o “senso comum é o conjunto de preconceitos que adquirimos por volta dos dezoito anos de idade”.

O Torá, a Bíblia e o Alcorão, todos clamam ser a revelação suprema, eterna e imutável do mesmo Deus, ainda que cada um desses 'livros sagrados' diga coisas extremamente contraditórias e diferentes um do outro. Trata-se de algo tão irracional, que não é de se estranhar que Martinho Lutero, o fundador do protestantismo, descreveu a razão como “the Devil's whore”, 'a prostituta do demônio', a arma que este usaria para te afastar da fé, que era a única coisa que importava para Lutero. Qualquer pessoa que hoje diz ser uma “pessoa de fé” está concordando com Lutero - e rejeitando a razão.

A religião vigente hoje consiste de declarações ilógicas que são consideradas aceitas simplesmente porque um grande número de pessoas as assume como certas. Para eles, o que importa é a sua popularidade e o seu poder emocional, e não sua verdade ou sua racionalidade e sentido.

Para um verdadeiro pensador, a existência de Deus(es) é irrelevante ao menos que esse(s) Deus(es) possa(m) nos prover e nos provenha(m) - com uma explicação para a existência. Desejar entender a mente de um deus é o mesmo que desejar ser como um deus, e é isso o que diferencia esses dois tipos de pessoas: os “crentes” são submissos que querem ser dominados por um ser todo-poderoso, e os “pensadores” são aqueles que nunca descansarão até conhecerem cada detalhe de como o mundo funciona.

A verdade objetiva nunca residirá em uma pessoa, mas em um sistema – um sistema platônico de verdades eternas, absolutas, indiscutíveis, imutáveis e perfeitas. Por isso que Platão falava em uma Verdade com V maiúsculo como algo eternamente perfeito, e não em uma pessoa de alegada perfeição eterna (Deus). Ele não podia imaginar um criador eterno e perfeito, as dificuldades lógicas para isso são intransponíveis. Se o criador fosse perfeito, sua criação também o seria. Já um sistema, este pode existir em um domínio perfeito (imaterial) e este mundo (material) ser só uma cópia falha dele, sendo então imperfeito. Uma pessoa (ou personalidade) poderia evoluir para a perfeição, mas isso significaria que ela antes disso era imperfeita, portanto, ela não poderia ser “eternamente” perfeita.

A verdadeira base existencial da realidade não envolve fé, obscurantismo, ocultismo, crendices, mágicas, e afins. Mas também não é a ciência que fará isso. A ciência é só um 'estagiário' da filosofia, no âmbito de responder às grandes questões existenciais. A ciência é ótima em explicar os “comos”, mas não é tão boa em explicar os “porquês”. Na matemática, por exemplo, a ciência só aceita os números reais maiores que zero e menores que infinito, porque os demais não seriam “empiricamente detectáveis”. Quando simplesmente rejeita o zero, o infinito, os números negativos e os números imaginários, sem uma razão racional para tal (já que a mente entende o que são zero e infinito etc), a ciência se aproxima de uma crença dogmática, em seu outro extremo. 

O Abraamismo é um campo sem lógica ou com algo disfarçado de lógica. A ciência é um campo com uma lógica incompleta. As religiões de aperfeiçoamento são as mais lógicas.

Gottfried Leibniz dizia que o melhor mundo é aquele que é “o mais simples em hipóteses e o mais rico em fenômenos”. E, realmente, depois que a gente começa a entender essas coisas, no começo a gente pode ficar meio descrente ('des-crente'), mas depois começa a achar tudo tão óbvio, tudo nos seus lugares como deveria ser, e a ficar maravilhado em como se tratava de algo tão simples.

A metafísica (o que existe além do mundo físico), um ramo da filosofia, estuda o universo do númen, o mundo imaterial das ideias de Platão. (Para Platão, as coisas percebidas pelos sentidos são os fenômenos, e as coisas refletidas pelo pensamento/razão são os nôumenos). A religião vigente também comenta sobre o universo numinoso, mas faz isso de uma forma irracional e baseada em fé, onde as afirmações dos profetas e dos textos sagrados são consideradas uma espécie de 'verdade' absoluta revelada por 'deus'. A religião abraâmica é pouco racional e verificável. E o mais irônico é que ela diz que “a verdade vos libertará”.

Sair da fé para o conhecimento requer muito trabalho. Pensar por si mesmo (em vez de pensar como alguém lhe diz para pensar) dá trabalho. Nem todo mundo está disposto. A maioria não ‘quer’ (e age baseado nisso, no querer, na vontade, no desejo).


VI. RAZÃO x EMOÇÃO:

Apenas uma pequena proporção da humanidade é guiada pela razão. O resto é controlado pelo desejo/vontade. Assim, normalmente é pouco efetivo se dirigir às massas com argumentos racionais – é preciso atingir suas emoções e desejos se você quiser vencê-los em um debate. Por isso que os discursos de Moisés, Jesus e Maomé eram tão apelativos de emoção, com ameaças de dores eternas (no fogo do inferno) para quem os opusesse. O abraamismo gira em torno desses sentimentos. Para sair desse ciclo e caminhar em direção à divindade, precisamos abraçar a razão. Não há outro modo de fazer isso.

O abraamismo apela somente à emoção. Rezar recitando uma série de frases como se fossem encantamentos mágicos e suplicar alguns favores pessoais ao criador para você e não para os outros, é algo ilusório e emocional, não algo lógico e racional.

Os que buscam a iluminação são mais idealistas do que materialistas, mais racionalistas do que empiristas. Quem entenderá melhor a alma? Um tipo sensação ou um tipo intuição? Sendo a alma algo que não podemos tocar, cheirar, olhar, ouvir, fica evidente que a resposta é o segundo tipo. O mundo numinoso é o território natural dos idealistas, racionalistas, intuitivos.

Para os estóicos, a liberdade jaz em entender racionalmente as leis do universo. As emoções eram um desastre porque elas perturbavam nosso julgamento, obscureciam a verdade, e nos fazia querer coisas que nunca poderiam acontecer.

As pessoas mais sentimentais tendem a ser criacionistas. Eles têm medo de mudanças e do futuro, eles procuram segurança e certezas. Um criador que não muda há milênios é um símbolo dessa segurança. Tudo o que elas têm que fazer é pôr sua fé no criador e relaxar emocionalmente.

Os gregos foram os primeiros a oferecer um pensamento racional (de Logos) no lugar de um pensamento mágico (de Mitos). Mas toda religião saudável deve ser uma mistura de Mitos e Logos, de subjetivo e de objetivo. O mito às vezes esconde verdades maiores, segredos superiores, um sentido mais profundo, uma sabedoria suprema. E a razão balanceia isso para não virar superstição.


VII. TELEOLOGIA:

Quando perguntamos “por quê?” podemos ter dois tipos de resposta, uma com as causas do evento (a explicação mecanicista) e outra com os propósitos do evento (a explicação teleológica), ou seja, esta última seria mais um 'para que' do que um 'por que'. Freud gostava de buscar as causas na infância, os motivos e circunstâncias anteriores à situação atual. Já Jung gostava de se perguntar a função daquilo, a razão última para estar acontecendo, para que aquilo nos serviria.

Os cientistas acham que o destino do universo é terminar em uma morte pelo calor, quando tudo rui por conta da Segunda Lei da Termodinâmica. Isso é quase um dogma de fé para eles.

Nós não pensamos assim. A nossa não é uma religião de fé, é uma religião de razão, que oferece a todas as almas a se tornarem divinas, a atravessarem o tabuleiro de xadrez da existência e a serem promovidas de peão a rainha.

É através da razão que fazemos contato com a ordem divina. Os elementos que controlam o universo são racionais, então – quanto mais racionais formos – mais refletiremos a inteligência do cosmo. Mais as coisas farão 'sentido'. Como dizia Sócrates, “uma vida não-examinada não é digna de se viver”.

Se o seu projeto de vida não for se tornar 'divino' (ou o mais excelente/virtuoso/iluminado possível), então você está praticamente ofendendo a sua essência, está bloqueando a realização da oportunidade que a sua alma recebeu. 

Portanto, caro leitor, se você conseguiu chegar até aqui nesse longo texto, pense sobre essas coisas. Não fique preso ao lado A, nem seja tão ‘lado B’... Que tal 'ser' do 'C'?

;) 


agosto 17, 2013

Christine & Erik -- Perséfone & Hades?

Estes dias estive assistindo o DVD dos 25 anos (2011) do musical "O Fantasma da Ópera", gravado no Royal Albert Hall de Londres, e - vendo Christine e Eric (o "fantasma") - não pude deixar de pensar em outro casal que conhecemos: Perséfone e Hades. Então trouxe alguns trechos do musical, para quem nunca se deu conta dessa possível comparação.

A começar por um trecho em que a mocinha se refere às estações:
CHRISTINE
"Think of August when the trees were green,
don't think about the way things might have been..."

(Pense em agosto, quando as árvores estavam verdes,
não pense na forma que as coisas deveriam ter sido...)
E "o invisível" declara suas intenções:
ERIK
"You have come here, for one purpose, and one alone;
Since the moment I first heard you sing, I have needed you with me..."

(Você veio para cá com um propósito, e apenas um;
Desde o primeiro momento em que escutei você cantar, eu precisei de você comigo...)
E apresenta o seu mundo a ela, um mundo que ao mesmo tempo entorpece e intensifica os sentidos:
ERIK
"Night-time sharpens, heightens each sensation,
Darkness stirs and wakes imagination;
Silently the senses abandon their defences...
Slowly, gently, night unfurls its splendour;
Grasp it, sense it - tremulous and tender,
Turn your face away from the garish light of day,
Turn your thoughts away from cold, unfeeling light -
And listen to the music of the night.
Close your eyes and surrender to your darkest dreams!
Purge your thoughts of the life you knew before!
Close your eyes, let your spirit start to soar!
And you'll live as you've never lived before.
Softly, deftly, music shall caress you
Feel it, hear it, secretly possess you.
Open up your mind, let your fantasies unwind,
In this darkness which you know you cannot fight -
The darkness of the music of the night.
Let your mind start a journey through a strange new world!
Leave all thoughts of the world you knew before!
Let your soul take you where you long to be !
Only then can you belong to me.
Floating, falling, sweet intoxication!
Touch me, trust me, savour each sensation!
Let the dream begin, let your darker side give in
To the power of the music that I write..."

(A noite aponta, e intensifica cada sensação,
A escuridão agita e desperta a imaginação;
Silenciosamente os sentidos abandonam suas defesas...
Lentamente, gentilmente, a noite estende seu esplendor;
Agarre-o, sinta-o, trêmulo e terno,
Vire seu rosto para longe da luz gritante do dia,
Afaste seus pensamentos da luz fria e insensível -
E ouça a música da noite.
Feche seus olhos e se entregue a seus sonhos mais sombrios!
Purifique seus pensamentos da vida que você conheceu antes!
Feche seus olhos, deixe seu espírito começar a se elevar!
E você viverá como nunca viveu antes.
Suave, primorosamente, a música deverá te acariciar
Sinta-a, ouça-a, secretamente lhe possuindo.
Abra sua mente, deixe suas fantasias se desatarem,
Nesta escuridão contra a qual você sabe que não pode lutar -
A escuridão da música da noite.
Deixe sua mente começar uma jornada através de um estranho e novo mundo!
Abandone todos os pensamentos do mundo que conheceu antes!
Deixe sua alma lhe levar para o lugar ao qual você pertence!
Só então você pode pertencer a mim.
Flutuando, caindo, numa doce intoxicação!
Toque-me, confie em mim, saboreie cada sensação!
Deixe o sonho começar, deixe seu lado mais escuro ceder
Ao poder da música que eu escrevo...")
E ela descreve a sensação de estar em um lugar sombrio e sinistro, mas no qual habita alguém que lhe produz um efeito de elevação espiritual através do poder de sua música:
CHRISTINE
"I've been there - to his world of unending night,
To a world where the daylight dissolves into darkness...
But his voice filled my spirit with a strange, sweet sound;
In that night there was music in my mind.
And through music my soul began to soar!"

(Eu estive lá - no seu mundo de noite infindável,
Um mundo onde a luz do dia se dissolve em escuridão...
Mas sua voz preencheu meu espírito com um estranho e doce som;
Naquela noite, havia música na minha mente.
E, através da música, minha alma começou a se elevar!)
No meio da peça, temos um baile de máscaras, que me lembrou muito Dioniso. No mito órfico, Dioniso é rebento de Perséfone. A letra dessa parte fala inclusive de Sátiros e dos Campos Elísios.
VÁRIAS PESSOAS NO BAILE
"Masquerade! Leering satyrs, peering eye;
Masquerade! Run and hide - but a face will still pursue you...
Six months: Of relief! Of delight! Of Elysian peace!...
Masquerade! Paper faces on parade!
Masquerade! Hide your face, so the world will never find you!
Masquerade! Every face a different shade!
Masquerade! Look around - there's another mask behind you!"

(Mascarado! Sátiros com um olhar de soslaio;
Mascarado! Corra e se esconde - mas um rosto ainda te perseguirá...
Seis meses: de alívio! de delícias! da paz dos Elísios!...
Mascarado! Rostos de papel na parada!
Mascarado! Esconda seu rosto, para que o mundo nunca lhe encontre!
Mascarado! Cada rosto um sombreado diferente!
Mascarado! Olhe em volta - há outra máscara atrás de você!)
Christine também fala com Raoul, que a corteja, sobre o fantasma e a gratidão/lealdade que lhe deveria ter:
CHRISTINE
"It scares me - don't put me through this ordeal by fire.
He'll take me, I know; we'll be parted for ever.
He won't let me go, what I once used to dream I now dread.
If he finds me, it won't ever end;
And he'll always be there, singing songs in my head...
Am I to risk my life, to win the chance to live?
Can I betray the man who once inspired my voice?
Do I become his prey? Do I have any choice?"

(Isso me assusta - não me coloque nessa provação pelo fogo.
Ele irá me levar, eu sei; ficaremos separados para sempre.
Ele não vai me deixar ir, o que antes eu sonhava agora eu temo.
Se ele me encontrar, isso nunca terminará;
E ele estará sempre lá, cantando canções na minha cabeça...
Estou disposta a arriscar minha vida para ter a chance de viver?
Posso trair o homem que um dia inspirou minha voz?
Eu me torno sua presa? Eu tenho alguma escolha?)
Cantando juntos, numa cena que se passa em um cemitério, o fantasma cita mais uma estação (o inverno), e Christine reconhece que - por mais que sua mente o resista - sua alma o obedece. Aqui também aparece a menção à "verdadeira beleza". No conto de Apuleio, Psiquê vai até Perséfone para pegar uma caixinha com o segredo da beleza eterna, a pedido de Afrodite, sem saber que a beleza eterna não é nada mais do que a morte. É no reino dos mortos, de Hades, que reside a "verdadeira beleza". E Raoul tenta afastar de Christine essa imagem paternal que ela tem do fantasma, assim como Hades é tio de Perséfone. Raoul então ressalta que Christine não amará o fantasma se ela for sua prisioneira, assim também Perséfone não passa o ano todo com Hades, ela se divide:
ERIK
"Wandering child, so lost, so helpless; yearning for my guidance...
Too long you've wandered in winter, far from my far-reaching gaze,"
(Criança que vagueia, tão perdida, tão desamparada; ansiando por minha orientação...
Por tanto tempo você perambulou no inverno, longe do meu olhar que alcança longe,)
CHRISTINE
"Wildly my mind beats against you;"
(Freneticamente minha mente luta contra você;)
ERIK
"You resist,"
(Você resiste)
AMBOS
"Yet your/the soul obeys..."
(No entanto, sua/a alma obedece)
ERIK
"You denied me, turning from true beauty..."
(Você me negou, se afastando da verdadeira beleza...)
CHRISTINE
"I denied you, turning from true beauty... "
(Eu neguei você, me afastando da verdadeira beleza...)
ERIK
"Come to me..."
(Venha pra mim...)
RAOUL
"Christine, listen to me!
Whatever you may believe, this man, this thing, is not your father!..."
(Christine, me escute!
Seja o que for no que você acredite, esse homem, essa coisa, não é o seu pai!)
"You can't win her love by making her your prisoner."
(Você não pode ganhar o amor dela tornando-a sua prisioneira.)

A cena mais relevante, porém, que trago em vídeo abaixo do próximo trecho, é quando Erik encena sua ópera como Don Juan, com Christine no papel de Aminta, ela com uma maçã na mão que me lembra a romã do mito, e o diálogo totalmente a ver com o mesmo. Alguns autores dizem que, quando Coré colhia flores, ela buscava uma experiência diferente, uma vez que entre essas flores estavam narcóticos narcisos e outros possíveis psicotrópicos. Na busca desse desejo, ela é tragada pela terra. Imerge, sucumbe, se entrega, não tem mais volta ("cuidado com o que você deseja"). Então, a letra aqui fala em fogo, em um "rico desejo" (Hades é Pluto - "o rico"), em sedução, em sonho, em segredo. Fala também no silêncio (que também lembra "o indizível"). Christine, interpretando Aminta, pergunta sobre sangue (oferta que se fazia aos mortos), sobre um botão abrindo em flor (as flores que Coré colheu e que ela mesma acabou desabrochando em Perséfone), sobre as chamas que os consumirão... Erik, agora já desvestido do papel de Don Juan, pede que ela lhe salve da solidão e compartilhe uma vida com ele. Não é mais o sedutor que passa de amante em amante (Don Juan), mas aquele que pede que a amada fique para sempre a seu lado. Eis a letra e, em seguida, o vídeo:
ERIK (como Don Juan)
"You have come here in pursuit of your deepest urge,
in pursuit of that wish, which till now has been silent.
I have brought you, that our passions may fuse and merge -
in your mind you've already succumbed to me
dropped all defences completely succumbed to me -
now you are here with me: no second thoughts, you've decided.
Past the point of no return - no backward glances:
the games we've played till now are at an end.
Past all thought of "if" or "when" - no use resisting:
abandon thought, and let the dream descend.
What raging fire shall flood the soul?
What rich desire unlocks its door?
What sweet seduction lies before us?
Past the point of no return, the final threshold -
what warm, unspoken secrets will we learn?
Beyond the point of no return."

(Você veio aqui em busca dos seus anseios mais profundos,
em busca daquele desejo, o qual até agora tem permanecido em silêncio.
Eu trouxe você, para que nossas paixões possam se fundir e imergir -
na sua mente você já sucumbiu a mim
deixou cair todas as defesas, completamente sucumbiu a mim -
agora você está aqui comigo: não há como mudar de ideia, você decidiu.
Passado o ponto em que não há retorno - não se pode olhar para trás:
os jogos que jogamos até agora estão no final.
Passado todo o pensamento de "se" e "quando" - não adianta resistir:
abandone os pensamentos e deixe o sonho sobrevir.
Que fogo intenso deve inundar a alma?
Que rico desejo destrava sua porta?
Que doce sedução jaz diante de nós?
Passado o ponto em que não há retorno, a fronteira final -
que segredos calorosos e inexprimíveis iremos aprender?
Além do ponto do qual não há retorno.)
CHRISTINE (como Aminta)
"You have brought me to that moment where words run dry,
to that moment where speech disappears into silence.
I have come here, hardly knowing the reason why;
In my mind, I've already imagined our bodies entwining,
defenceless and silent - and now I am here with you:
no second thoughts, I've decided.
Past the point of no return - no going back now:
our passion-play has now, at last, begun.
Past all thought of right or wrong - one final question:
how long should we two wait, before we're one?
When will the blood begin to race
the sleeping bud burst into bloom?
When will the flames, at last, consume us?"

(Você me trouxe a aquele momento no qual as palavras secam,
a aquele momento onde o discurso desaparece no silêncio.
Eu vim aqui, mal sabendo por que razão;
Na minha mente, eu já imaginei nossos corpos entrelaçados,
sem defesa e em silêncio -  e agora estou aqui com você:
sem poder mudar de ideia, eu decidi.
Passado o ponto em que não há retorno - não há volta agora:
nosso jogo de paixão agora finalmente começou.
Passado todo o pensamento de certo e errado - uma pergunta final:
quanto tempo deveríamos esperar antes de sermos um?
Quando o sangue começará a correr
e o botão adormecido se abrir em flor?
Quando as chamas irão, afinal, nos consumir?)
AMBOS
"Past the point of no return, the final threshold -
the bridge is crossed, so stand and watch it burn;
We've passed the point of no return..."

(Passado o ponto em que não há retorno, a fronteira final -
a ponte foi cruzada, então fique parado e assista ela queimar;
Nós passamos do ponto do qual não há retorno...)
ERIK
"Say you'll share with me one love, one lifetime;
Lead me, save me from my solitude..."

(Diga que você compartilhará comigo um amor, um tempo de vida;
Conduza-me, salve-me da minha solidão...)
[vídeo retirado e aparado daqui: https://www.youtube.com/watch?v=h7IZNfGEcFk]

Coré deixa sua ingenuidade e não pode escapar da situação em que precisa amadurecer. Todos precisamos passar por essa transformação um dia. Não adianta resistir:
CHRISTINE 
"One by one, I've watched illusions shattered."
(Uma por uma, eu assisti minhas ilusões se despedaçarem.)
ERIK
"Past all hope of cries for help: no point in fighting."
(Passada toda a esperança por gritos de ajuda; não adianta lutar.)
E então que os deuses a ajudem a aceitar a missão de acompanhá-lo:
CHRISTINE
"Pitiful creature of darkness, what kind of life have you known?
God give me courage to show you you are not alone."

(Deplorável criatura da escuridão, que tipo de vida você conhece?
Deus me dê coragem para lhe mostrar que você não está sozinho.)
Enfim, somente com o "espírito" dele e a "voz" dela, a "música da noite" se elevará:
ERIK
"You alone can make my song take flight -
It's over now, the music of the night."

(Só você pode fazer minha canção alçar voo -
Está acabada agora, a música da noite.)
Poderíamos viajar bem mais no musical inteiro, incluindo as músicas e não só as letras, mas acredito que dar o gostinho aqui e deixar que cada um descubra suas próprias impressões é mais prazeroso. Concordam?