dezembro 28, 2014

O Uso do Sino em Rituais

Após ver uma sugestão de ritual que incluía o uso de um sino, resolvi pesquisar se tal prática possuía ressonância na antiguidade. Encontrei um artigo chamado "For whom did the bell toll in ancient Greece? Archaic and Classical Greek bells at Sparta and beyond" (Por quem os sinos dobravam na Grécia antiga? Sinos gregos arcaicos e clássicos em Esparta e além), de Alexandra Villing. São 74 páginas, mas faço aqui uma breve resenha. Adquiri também um sino com cabo de madeira para pirografar nele algo que o identificasse como de uso ritual. Depois, no texto, descobri que existiam mesmo inscrições votivas em alguns sinos de culto, especialmente a Atena.

HISTÓRIA

Os antigos não eram acostumados a sinos enormes como aqueles que soam nas igrejas de hoje, e sim a sinos portáteis de não mais do que uns 10 cm. Esses sinos de tamanho pequeno eram comuns na Grécia Antiga do período arcaico em diante, tanto em bronze quanto em terracota. Eles eram encontrados em santuários, túmulos e casas, e serviam para vários propósitos. Fontes arqueológicas, iconográficas e literárias atestam o seu uso como ofertas votivas no ritual e em situações funerárias, também como instrumento de sinalização dos guardas da cidade, como amuletos para crianças e mulheres, e num contexto dionisíaco no sul da Itália. A origem dos sinos é da área oriental e caucasiana, por onde eles encontraram entrada na antiga Samos e Chipre e depois na Grécia continental. O maior complexo de sinos encontrado, da era clássica, vem de escavações no santuário de Atena na acrópole espartana. Veremos que, além de Esparta, outros lugares também associavam o som do sino a algo protetor, purificador e apotropaico (que afasta os males). Os sinos de terracota eram claramente imitações baratas dos sinos de bronze, e serviam para efeitos de dedicação, podendo ser comparados a miniaturas de vasos, de armas ou estatuetas de animais usados como ofertas votivas.

Os sinos em maior número foram encontrados no santuário de Atena Khalkioikos na acrópole espartana em 1907, embora só em 1925 se tenha anunciado e poucos deles tenham sido apresentados ao público, tendo apenas se publicado alguns desenhos e as inscrições votivas encontradas neles. Depois, uma pesquisa no Museu de Esparta revelou que, nessa escavação, eles haviam encontrado 34 sinos de bronze e 102 sinos de terracota (ou fragmentos deles). É difícil saber o local exato dos sinos no santuário, pois parece que estavam em toda a parte, desde o sul do precinto até os fundos do teatro (incluindo a pequena construção que servia como santuário de Atena Ergane). O que se sabe claramente é que eles eram dedicados a Atena com os epítetos de Khalkioikos ("da casa de bronze") e Poliouchos ("suporte da cidade"), já que os sinos possuíam inscrições votivas a ela. O tamanho deles variava entre 2 e 8 cm de altura. No texto que li, a autora descreve a forma, a alça, os pés, como foram feitos etc, e traz desenhos dos mesmos. Quase todos os sinos tinham ao menos um buraco em cima para prender o badalo, o qual era sempre de ferro. Sete desses sinos tinham inscrições, três deles com dedicatórias completas, que indica se tratarem de ofertas votivas de um homem e duas mulheres. Outros três tinham abreviações (ΑΘΑ para ΑΘΗΝΑ - Atena). No sétimo parecia ter uma inscrição longa, mas agora só um A é claramente visível. As inscrições são claramente em lacônico do século V AEC.


No Menelaion de Esparta, no santuário rural de Aegina provavemente dedicado a Ártemis, e no santuário de Apolo Korynthos na Messenia, haviam sinos muito parecidos com os dedicados a Atena em Esparta. Eles tinham a forma de cúpula, com uma beirada mais grossa e com pés. 


Além desses lugares, os sinos mais antigos vêm de Atenas, onde três sinos de terracota decorados foram encontrados no túmulo de uma criança, também do século V AEC. Também encontraram-se sinos na Beócia (no túmulo de uma criança e em santuários de Deméter e dos Cabiros), em Selinous na Arcádia (no santuário de Deméter Malophoros), em Perachora (no temenos de Hera Limenia), em Pherai na Tessália (provavelmente vindos dos santuários de Ártemis Enodia e de Zeus Thaulios), em Olímpia, em Idalion no Chipre, e no argivo Heraion de Samos. 


Em Samos, a influência oriental (da Mesopotâmia, Babilônia, Assíria e Fenícia) aparece não só nos sinos, mas também em estatuetas de chumbo e em máscaras dedicadas a Ártemis Orthia.

Dessa parte introdutória, podemos resumir que, em termos de história dos sinos, há cinco pontos chaves a se mencionar. Primeiro, os sinos se encontravam por praticamente toda a Grécia e mundo grego, particularmente em santuários e túmulos. Segundo, a maioria dos sinos gregos eram feitos de bronze ou terracota, alguns de metais preciosos. Terceiro, os sinos de Samos, do Chipre, da Tessália e de Aegina eram baseados em modelos orientais. Quarto, os sinos gregos são normalmente pequenos e mais ou menos em forma de abóbada/cúpula, embora também apareçam sinos cônicos e hemisféricos; a parte de segurar era em arco ou alça, e inscrições neles eram raras. Quinto, não havia um padrão particulas: os sinos tebanos de bronze dos Cabiros e os lacônicos de Ártemis eram ofertas votivas, assim como os sinos espartanos de terracota para Helena e Menelau no Menelaion e os beócios para Deméter em Eutresis. Também se encontraram sinos em santuários a Hera (em Samos, Argos e Perachora), a Atena (em Esparta, em Idalion e talvez em Delfos), a Afrodite (em Mileto), e a Apolo (na Messenia e em Chios).

FUNÇÃO

Os sinos encontrados em Esparta eram claramente funcionais. Afinal, quase todos tinham badalo, o que também nos faz concluir que era improvável que eles tivessem sido usados como instrumentos musicais, já que, no caso, se bateriam com baquetas por fora do sino. Pode ser que eles fossem suspensos ou usados na mão. Uma vez que muitos tinham pés, eles provavemente não só ficavam pendurados mas podiam ser colocados em uma superfície para ficar de fácil acesso ao usuário.

Em Roma, os sinos eram usados para anunciar abertura de mercados e banhos, para acordar e chamar escravos etc, mas na Grécia Antiga esses usos não se confirmam, embora o sino seja conhecido nos tempos de Demóstenes como um meio de atrair a atenção. Na Grécia, os sinos eram carregados pelos guardas - tanto os comediantes Nicofon e Aristófanes quanto o historiador Tucídides mencionam o sino nesse contexto. Os guardas podiam usá-lo como adorno ameaçador da armadura, e o inspetor podia usar o sino para ver se os guardas estavam acordados. Sinos em animais, como cavalos, aparecem em Chipre com influência assíria, mas não se atesta o mesmo na Grécia em si. Em suma, o sino funcionava principalmente para duas coisas: como um sinal e com o aspecto ameaçador-protetor. Este último guarda uma conexão especial dos sinos com Atena como deusa da guerra e das habilidades manuais.

A palavra usada nas fontes literárias para se referir a sino é κώδων ("kódon"). Entre as fontes mais antigas a mencioná-la, está Empédocles, no século V AEC, quando ele descreve como o som é percebido dentro do ouvido. Ele diz que o órgão da audição é uma espécie de sino que reproduz ecos que se parecem com os sons de fora. Aécio, quando comenta isso, fala de uma parte cartilaginosa que balança quando é golpeada, um instrumento que produz som reverberante. Esse som dos sinos, especialmente o som do bronze, tem uma ligação muito grande com o som da batalha: os metais se colidindo poderiam induzir medo e ter o propósito de afugentar o inimigo. Vernant (em "Mito e Pensamento entre os Gregos") dizia que o som do bronze contra o bronze repele a bruxaria do inimigo. A própria voz de Atena é descrita por Píndaro como o som do bronze, seu grito um clamor penetrante. Outros autores a comparam com o som agudo do trompete, que era usado como instrumento de sinalização na guerra e que parece ser associado a Atena em Argos. Mas, quando Sófocles liga a voz de Atena ao som do trompete, a palavra que ele usa é κώδων, sino, um sino de bronze, uma vez que a parte frontal do trompete também era chamada de κώδων. Além disso, o epíteto de Atena em Esparta era Khalkioikos ("da casa de bronze"). Pausânias diz que o revestimento do templo dela na acrópole espartana era parcialmente decorado com folhas de bronze. Mas há mais: o culto de Atena Ergane como patrona dos trabalhadores de bronze em Atenas (principalmente no festival da Khalkeia) sugere que ela era patrona da forja de armas e que ofertas de bronze tinham lugar em seu culto. A própria palavra "khalkeion" (cesto de bronze) poderia se referir na verdade a um sino.

Porém, explicar o papel dos sinos como ofertas votivas meramente pela sua habilidade de reproduzir o som da batalha seria inconcluso, até porque há outros instrumentos mais efetivos que poderiam ser imaginados nesse contexto, e isso também não explicaria o envolvimento de mulheres como dedicantes. O uso no pescoço de animais de sacrifício também não cabe, porque só se encontrou uma representação assim pintada no altar de uma casa em Delos, para um festival romano, é improvável que os animais de sacrifício na Grécia usassem sinos. Há a possibilidade do uso do sino como objeto apotropaico e o seu inverso (ou seja, para afastar o mal e para atrair bons espíritos).

A evidência literária e pictográfica aponta que os sinos tinham de fato uma relação com o culto de Dioniso. Strabo chama o uso de sinos e o bater de tímpanos ma atividade dionisíaca, e Nonno chama uma das mênades de Kodone. Vasos do século IV AEC ao sul da Itália representam Dioniso e membros de seu 'thiasos' (séquito) ou segurando um sino ou com um sino amarrado no pulso ou amarrado ao tirso. Em pelo menos um, Dioniso segura o sino alto como se para dar um sinal ao seu thiasos. [Figura 3] 


Poderia-se imaginar os sinos sendo usados para chamar os mortos a um feliz pós-vida dionisíaco, mas isso não tem evidências suficientes nos registros arqueológicos, já que poucos sinos foram encontrados em túmulos ao sul da Itália. Também poderia-se imaginar que o som do sino provinha uma proteção mágica em particular para os períodos vulneráveis de abandono extático no ritual dionisíaco. Na Índia, por exemplo, mulheres e meninas de famílias ricas usavam tradicionalmente sinos para suas danças rituais. Dedicar um sino de bronze deveria mesmo ser algo caro.

A autora aqui pergunta "Isso tudo poderia implicar que a Atena espartana tinha uma face oculta no estilo da folia dionisíaca? Será que os homens e mulheres espartanas executavam danças em sua honra, enfeitados com sinos?". A dança sem dúvida era um aspecto importante na vida ritual de Esparta. Se confiarmos em Aristófanes, existiam danças associadas com o culto da Atena espartana: em Lisístrata, o coro chama Helena a conduzir a dança no santuário de Atena Khalkioikos. Uma estatueta arcaica de uma mulher tocando címbalos foi encontrada no santuário de Ártemis Orthia e o braço de uma estatueta similar foi encontrado no santuário de Atena na acrópole espartana. Mas não há evidência de sinos sendo parte de danças rituais nem para Ártemis nem para Atena. Em geral, os sinos eram menos adequados como instrumentos para acompanhar a dança rítmica, se usavam mais címbalos mesmo. No contexto dionisíaco, o sino era mais o caso de um instrumento para sinalizar e com um significado mais apotropaico relacionado ao som dele.

Há uma passagem de Teócrito que fala que "a ctônica Ártemis está se aproximando, façam do local um solo sagrado pelo bater do bronze". Ele cita a obra 'Sobre os Deuses', de Apolodoro, uma fonte que fala que o som do bronze desempenhava um papel em todas as espécies de rituais purificatórios: por ser puro e por afastar o miasma, ele era empregado durante os eclipses lunares e os funerais. Essa interpretação é apoiada por várias fontes romanas posteriores, atenstando que o som do sino era usado para afastar poderes malignos. No culto extático de Dioniso, o barulho do bronze poderia servir para manter os maus espíritos (que conhecemos como as 'keres') longe. No culto a Deméter, o barulho do bronze também aparece. Píndaro a chama de "Khalkokrótou Damáteros", pelo barulho dos címbalos e tambores de bronze que ressoavam na busca por Perséfone. Assim como a dança dos Curetes e Coribantes também usavam o bater de escudos para afastar o mal do bebê Zeus, sabemos que Deméter é patrona da maternidade, e o parto pode ter usado o som do bronze para afastar o mal da criança e da mãe. Isso explicaria por que encontramos sinos em túmulos infantis.

Em resumo, os sinos eram usados como ofertas votivas, como instrumento de sinalização, e como amuleto protetor apotropaico. O som do bronze do sino tinha qualidades potencialmente amedrontadoras, afastando o mal. E, em Esparta, os sinos eram oferecidos principalmente a Atena.

Segue a imagem do sino que comprei:




dezembro 13, 2014

Xenia e Empatia

Em tempos em que Dioniso derruba máscaras e descobrimos, entre nossos amigos, pessoas que defendem os opressores, os violentadores e afins, encontrei o texto que traduzo abaixo (com grifos meus) e que espero que faça as pessoas refletirem sobre suas falas, pensamentos e ações diante das situações que andamos presenciando na mídia, nas redes sociais e no nosso dia-a-dia. Não acolher o outro, banalizar sua dor, relativizar um crime, também é Hybris, uma transgressão contra o princípio básico da nossa crença, a Xenia (hospitalidade). 

Baucis e Filemon

Segue:
Declaração de Valores
por Thenea, traduzido pela Alexandra

# Hospitalidade: Nossas portas estão abertas

A hospitalidade é um dos principais valores em todas as culturas antigas, incluindo os nórdicos, os celtas e os gregos. Alguns podem argumentar que esta é a pedra fundamental de todas as religiões indo-europeias.

Nos antigos relatos gregos, Zeus se disfarçaria de pessoas as quais a sociedade tinha marginalizado para testar a virtude de possíveis anfitriões. Se falharmos em receber bem alguém, ou falharmos em criar um espaço seguro para alguém, por qualquer razão além de um abuso direto de nossa hospitalidade, falhamos em fazer o mesmo para o Rei dos Deuses.

Oferecer hospitalidade, na Grécia antiga, significava mais do que comida e bebida. Se uma pessoa precisasse de roupas porque a jornada foi dura, ou de uma cama para dormir, estas coisas também eram providenciadas. Hospitalidade significa prover as necessidades e o conforto de alguém.

Criar um espaço sagrado não significa simplesmente ignorar fatores como ancestralidade, onde alguém está no espectro de gênero, orientação, forma do corpo, deficiência, idade, ou renda. Significa tentar entender de onde a pessoa vem, e entender o que elas precisam para se sentirem confortáveis nos espaços que criamos.

# Discurso: O Diálogo está Aberto

Não se trata apenas de honrar os deuses gregos. Trata-se de uma coisa cultural geral da Grécia Antiga. Discutir política e o estado do mundo são ambas coisas altamente tradicionais a fazer num Simpósio (uma reunião para o propósito de libações). Podemos e devemos criar espaço para o diálogo sobre esses tópicos importantes e prementes.

Precisamos falar sobre discriminação.

Ter diálogos sobre discriminação pode nos ajudar a entender como melhor respeitar as jornadas daqueles que devem enfrentá-la. Também pode nos ajudar a começar a entender como responder aos cidadãos e aos eleitores.

A base desse diálogo, porém, deve ser o respeito.

# Humildade: Nossos Corações estão Abertos

A transgressão da Hybris é normalmente enquadrada como "questionar os deuses", mas essa não é exatamente a questão, em termos de visão helênica. Nos antigos mitos gregos, os humanos geralmente não envolviam as deidades em debates filosófico pois comportar-se assim seria como pensar que eles eram iguais ou melhores que as deidades. Isso é um problema, porque se você pensa que é melhor que os deuses, como você irá tratar seus companheiros humanos? Em contra-partida, se você não pensa que é melhor que seus companheiros humanos, você não corre o risco de fazer isso com relação aos deuses.

Racismo, preconceito de gênero, de deficiência, de idade, de classe social, e outras formas de preconceito, são uma espécie de Hybris.

Humildade também significa, a meu ver, não assumir que eu sei melhor do que a outra pessoa o que ela tem sofrido, e não presumir que posso falar pelas experiências de qualquer um, nem invalidar seus discursos de qualquer forma.

É com essas virtudes que espero que possamos nos comportar nessa época de desenvolvimento de consciência do racismo e preconceito que estão infestando nossa sociedade, e é minha esperança sincera que - através da criação de um espaço seguro e do diálogo aberto com um olhar no remediar de injustiças - o progresso possa acontecer, mesmo se apenas em nossa pequena esfera de influência.


dezembro 01, 2014

Sacerdotisas - Breve Introdução Histórica

Os gregos antigos não tinham sequer uma palavra separada para "religião", uma vez que não existia nenhuma área da vida que não houvesse um aspecto religioso (Bremmer, "Greek Religion", 1994). Ora, se os gregos não distinguiam entre "igreja" e "estado", se as coisas sagradas não estavam separadas das seculares (Bremmer, "Religion, Ritual, and the Opposition of Sacred vs Profane", 1998, e Connor, "Sacred and Secular", 1988), então a posição de liderança das sacerdotisas não era periférica, mas primária aos centros de poder e influência. 

A questão da "invisibilidade" das mulheres atenienses como cidadãs de segunda categoria silenciosas e submissas, restritas aos limites de suas casas, envoltas em tarefas domésticas e no cuidado dos filhos, vinha sendo aceita nas últimas décadas baseado em textos bem difundidos, especialmente de Xenofonte, Platão e Tucídides, e em algumas peças de teatro. Mas há sérias contradições entre os ideais culturais da literatura e as práticas sociais da vida real. Evidências arqueológicas (Nevett, "Gender Relations in the Classical Greek Household: The Archaeological Evidence", 1995) demonstram que as mulheres tinham um papel ativo na esfera econômica, decidindo sobre o dinheiro (Harris, "Women and Lending in Athenian Society", 1992), controlando propriedades (Foxhall, "Household, Gender and Property in Classical Athens", 1989), efetuando discursos (Blok, "Virtual Voices: Toward a Choreography of Women's Speech in Classical Athens, 2001). Blok estima que as mulheres atenienses estavam envolvidas em cerca de 85% de todos os eventos religiosos. Nos textos, temos Heródoto com 62 referências a sacerdotisas em "Histórias" e Pausânias que informa sobre atividades de sacerdotisas e santuários por toda a Grécia, além do tratado de Licurgo "Sobre as Sacerdotisas". Demóstenes e Plutarco também fazem referências a sacerdotisas. Enquanto isso, Tucídides não menciona sacerdotisas e Platão só as discute numa função de um "estado ideal". 

A primeira menção a sacerdotisas foi encontrada ainda na escrita Linear-B de antes de 400 AEC, em uma tabuleta micena do palácio de Pylos que cita Erita, uma sacerdotisa do santuário local. Ela era dona de terras e outras propriedades, tinha uma posição legítima dentro da sua comunidade e era auxiliada por servos sagrados (Ventris e Chadwick, "Documents in Mycenaean Greek", 1973). Também em Linear-B se lê a palavra "hiereia" e "hiereus", sacerdotisa e sacerdote. Normalmente, os cultos a deidades masculinas era oficiado por sacerdotes, e os de deidades femininas por sacerdotisas, mas há famosas exceções, como: sacerdotisas de Dionysos Anthios, Helios, Apollo Deiradiotes, Apollo Lykeios, Apollo Delphinios, Zeus em Dodona, e alguns cultos a Poseidon; assim como sacerdotes de Deméter, Afrodite e Atena.

As sacerdotisas em geral acumulavam um prestígio, liderando procissões públicas, supervisionando festivais da cidade, tendo assentos reservados nos teatros, tendo imagens erguidas em santuários, e tudo isso lhes garantia uma importância que não pode ser subestimada em um mundo no qual o status carregava consigo um poder duradouro. Escolher se tornar uma sacerdotisa era escolher se tornar extraordinária (Turner, "Hiereia: The Acquisition of Feminine Priesthoods", 1983). O status social e os recursos financeiros da sua família eram fatores determinantes em qualificá-la para o ofício sagrado. Dedicações inscritas atestam a generosidade de sacerdotisas em obras beneficentes, seu orgulho em inaugurar imagens, e sua autoridade em estabelecer leis para o santuário. Elas também eram publicamente honradas com coroas douradas, estátuas delas mesmas e assentos privilegiados nos teatros. Há sacerdotisas retratadas em placas de madeira, relevos votivos, monumentos funerais, vasos, escudos pintados, e implementos de bronze e marfim. Antes dessas descobertas, nos diziam que as sacerdotisas não tinham importância na história da religião (Feaver, "Historical Development in the Priesthoods of Athena", 1957). 

Chrysis, sacerdotisa de Athena Polias, recebeu em Delfos a coroa de Apolo, e o povo votou para lhe conceder também uma série de direitos e privilégios: ela era representante de Atenas em Delfos, tinha direito a consultar o oráculo, prioridade em julgamentos, inviolabilidade, isenção de impostos, um assento frontal nas competições, o direito a possuir terras e casas, e todas as outras honras costumeiras para os cônsuls e benfeitores da cidade ("Inscriptiones Graecae", 1913). Mais tarde ela ganhou inclusive uma estátua na acrópole ateniense.

Poderíamos pensar "mas nem todas eram sacerdotisas". Acontece que, ao contrário das preposições cristãs, eram raros os sacerdócios que duravam uma vida inteira. A maioria dos cultos exigia que se servisse apenas por um período, um ano ou mesmo um único ciclo de festivais. A ideia moderna de que sacerdotes sejam pessoas entre os deuses e os humanos é alheia aos antigos helenos. Todos tinham acesso aos deuses, todos podiam oferecer preces, pedidos, agradecimentos, presentes, e executar sacrifícios diretamente (Dickerson, "Priests and Power in Classical Athens", 1991). Heródoto, quando observou as práticas persas, estranhou que eles exigissem a presença de um sacerdote (o 'magus') em cada sacrifício. Porém, é claro que os sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes e sacerdotisas tinham seu próprio status especial. 

Além disso, a hierarquia do culto incluía uma horda de oficiais religiosos, seja com deveres específicos seja com responsabilidades mais gerais. Por exemplo, atendentes do templo (neokoroi), fazedores das coisas sagradas (hieropoioi), guardiães do templo (naophylakes), tesoureiros dos fundos sagrados (tamiai), carregadores de lã (pektriai), fiandeiros (alakateiai), tecedores (histeiai), fazedores de farinha (meletriai), varredores sagrados (karutieiao), portadores das chaves (kleidouchoi), tecelãs (esgastinai), moedores de grãos (aletrides), líderes do sacrifício (hieragogoi), condutores do sacrifício (hierophoroi), presidentes do ritos sagrados (hierarchai), buscador das coisas sagradas (hieronostoi), encarregados do templo (hierakomoi), administradores do templo (hieronomoi), sacerdotes participantes (hieroparektes), leitores de auspícios nos sacrifícios (hieroskopoi), escribas sagrados (hierogrammateis), guardas sagrados (hierophylakes), coletores de dinheiro sagrado (hierotamiai), cantores e harpistas sagrados (hieropsaltai), carregadores das cestas (kanephoroi), carregadores dos sacras (arrephoroi), carregadores da água (hydrophoroi), carregadores das flores (anthesphoroi), carregadores da mesa (trapezophoroi), lavadores da estátua (loutrides), decoradores da estátua (kosmeteriai), além das ursas de Ártemis (arktoi), as abelhas de Deméter (melissai), as donzelas de Apolo em Delos (deliades), as corredoras espartanas de Dioniso (dionysiades) etc. 

Estima-se que existiam dois mil cultos operando na Ática durante o período clássico. Com cerca de 170 festivais por ano no seu calendário, Atenas tinha um público de oficiantes que lotava a arena. Aliás, 'onde' as coisas aconteciam era fundamental para entender 'como' as coisas aconteciam na antiga Hélade, pois os cultos variavam entre as pólis. Os próprios gregos divergiam e tinham maneiras contraditórias de olhar para a própria religião. Mas uma coisa é certa: o sistema deles era um em que o mito, o culto, o ritual e as imagens visuais eram totalmente interdependentes e que se apoiavam mutualmente.


Um aspecto importante que não podemos deixar de falar sobre as sacerdotisas é a diferença entre o que se conhece do celibato cristão e o helênico antigo. O requisito da virgindade na Hélade era mantido só por um breve período, até o casamento. O celibato perpétuo, além de raro, era mais comum entre mulheres mais velhas, que já tinham tido filhos, eram viúvas e pretendiam terminar sua atividade sexual. As sacerdotisas em geral eram mulheres normais, casadas, com filhos. O próprio termo "parthenos" não significa virgindade num sentido de 'inviolabilidade' como temos hoje, e sim no sentido de uma moça que tinha passado pela puberdade e não tinha ainda se casado. O exemplo das virgens vestais romanas era um caso totalmente fora das normas, elas ficavam intactas por trinta anos, depois se casavam ou não, e eram punidas se violassem o voto, enfim, nada parecido com o que acontecia na Grécia. A ideia cristã de uma virgem como alguém 'dedicado ao senhor', 'uma oferta humana votiva', 'um templo sagrado inviolável' não tinha paralelo na antiguidade grega, porque para os helenos a virgindade não era nem um estado de perfeição e nem uma garantia de salvação. Ou seja, ser virgem não garante pureza ou nobreza alguma, uma virgem não é separada do resto como algo abençoado a ser venerado. O ideal, na verdade, era passar por todos os estágios da vida social, então sacerdotisas casadas e viúvas eram mais comuns no culto grego. Mesmo as famosas "prostitutas sagradas" é um conceito muito controverso, porque não há evidências antigas muito seguras dele. Alega-se que essa prática acontecia em Corinto, Éfeso e Pafos, lugares portuários onde o apóstolo Paulo pregou desde cedo (Winter, "After Paul Left Corinth", 2001), e o fenômeno urbano de marinheiros e prostitutas nesses locais litorâneos com prática de culto deve ser o que mais provavelmente levou à atitude negativa cristã de produzir tal ideia sobre as tradições religiosas dali.

Quando, em vez de usarmos o termo "servas sagradas", usamos "agentes de culto", trazemos para o sacerdócio feminino uma dimensão mais ativa, administrativa, de resultados, do que uma imagem de auxiliar submissa. As sacerdotisas tinham mais coisas em comum com os homens do seu nível social do que com as mulheres de níveis inferiores. Precisamos lembrar disso ao considerarmos as forças que definem suas identidades e que propiciam suas ações. O avô materno de Chrysis, que mencionei acima, era sacerdote de Asclépio, seu tataravô materno era supervisor (epimeletes) dos Mistérios Eleusinos, tudo indica que ela herdou seu sacerdócio matrilinearmente. Seu status de sacerdotisa não veio de uma veia patriarcal. Uma história que consiste de um controle monolítico patriarcal sobre as mulheres como vítimas passivas, interrompido esporadicamente por intervenções feministas, já foi desacreditado (Broude and Garrard, "Reclaming Female Agency: Feminist Art History after Postmodernism", 2005). Ainda assim, muitos autores desatualizados insistem em relacionar toda ação social da pólis a atividades masculinas. Isso não significa abandonar a luta por equidade de gêneros e minimizar a opressão sofrida, muito pelo contrário, queremos é empoderar as mulheres ao mostrar a elas que sua força e importância é legítima e atávica. 

Eis por que o helenismo é algo tão rico: ao mesmo tempo em que inclui a dificuldade do estudo para se inteirar das novas descobertas, permite que constantemente estejamos trazendo um novo e atual olhar sobre o que o passado nos apresenta, visto que os autores e tradutores são apenas testemunhas, que interpretam os fatos de acordo com a visão que possuem. O olhar deve ser revisitado e reexaminado dialeticamente, sempre. Já dizia Sócrates, "uma vida não examinada não é digna de ser vivida".

(Postagem elaborada após a leitura de "Portrait of a Priestess", de Joan Breton Connelly, 2007, capítulo 1.)