março 29, 2011

Tira-dúvidas 1: Neo...?

Ontem perguntaram para a Tanakht do Kemetismo Ortodoxo (Reconstrucionismo Egípcio) se eles eram neopagãos. Ela respondeu que, por definição, não. Então perguntaram-lhe se nós também não éramos, e ela veio confirmar comigo. Como ainda tem gente que se confunde, porque há a permissão de cada pessoa se autodenominar como quiser e porque há a participação de reconstrucionistas - kemets, helênicos, druidas etc - em encontros neopagãos, talvez seja importante (re)explicar nossos motivos.

O primeiro deles - e o mais conhecido - é que 'pagão' vem do latim 'pagus' que se refere a um distrito rural, o campo, enquanto a religião grega é mais de 'pólis', cidade, razão pela qual alguns anglófonos brincam que não são 'pagan', mas 'urban'.

Essa etimologia latina é do tempo do romano Virgílio, mas os motivos não pararam por aí. Na época de Tertuliano e Prudêncio, da Galícia, "pagão" era sinônimo de pessoa corrompida e impura - por não ser batizada no cristianismo, como muitos romanos e outros que se mantinham na religião antiga. Então, para não ficarem associados a essa carga negativa/pejorativa de "pagão" ("pagan"), os judeus passaram a ser chamados de "gentios" ("heathens") - termo que vocês podem notar aparecendo no filme Ágora, de 2010.

Só que os cultos não-galícios eram muito diversos: judaísmo, budismo, mitraísmo, helenismo etc, e ficaria complicado colocar todos sob o mesmo 'guarda-chuva' lexical. Foi aí que o imperador Juliano, o apóstata, remetendo-se a Iamblikhos (século IV), renomeou o sistema de crenças que não era nem galileu, nem judeu, nem pagão, nem romano, chamando-o de Hellenismos. Assim não estaríamos associados nem a pessoas impuras, nem ao campo, nem a gentios, nem a quaisquer outras crenças diversas.

No entanto, se você acha que ser "neopagão" é algo completamente diverso das denominações originais do que era ser "pagão", no seu contexto e proposta, então você tem todo o direito de se considerar neopagão. (Ou você pode entrar na nossa brincadeira gringa de "urban pagan", rsrs.)


Seja qual for a 'etiqueta' que escolhamos, o importante é saber explicar a sua escolha, saber definir o que você entende pelo nome que você adota, e não simplesmente se autodenominar de um jeito só porque todo mundo se chama assim. Uma coisa é escolher conscientemente, outra é seguir cegamente uma turma sem saber o que está fazendo, sem conhecer os motivos, pois isso seria agir com ignorância ou - o que seria ainda pior (segundo Platão) - agir por opinião (achismo).

O filósofo Epiteto dizia para conhecermos a nós mesmos e só então nos vestirmos de acordo. Portanto, saiba a sua verdade antes de vestir a camisa de um grupo que não ressoe a essência do que existe em você.

Selo Iluminador

O Diego/Déllion do Deluxed Edition nos deu este selo criado por Arthemise para ofertar "aos Blogueiros e Blogueiras que nos inspiram e iluminam nossos dias com textos e pedacinhos de sabedoria e sonhos":

A regra é simples:
-Cite 5 coisas que iluminam o seu dia.
-Presenteie com o selo 3 blogs (ou mais) que te iluminam citando-os em sua blogagem.
Divirtam-se e iluminem-se!
Agradeço-lhe a indicação e repasso minhas respostas abaixo. Não incluí os blogs que ele já indicou.

O que ilumina meus dias:
1 - meus amigos/família (com os deuses entre eles);
2 - meus sonhos e 'insights' (percepção interior);
3 - folhear meus livros e assistir meus DVDs;
4 - a beleza (do mundo, da natureza, da arte, dos sentimentos etc);
5 - cada exemplo que vejo da vitória da virtude ('areté') sobre os vícios.

Indicados:
# Kemetismo Ortodoxo, da Tanakht
# Alma Rubra, da Iony
# Sementes da Romã, da Roberta

março 21, 2011

Pandia




Neste pôr-do-sol, além de termos o último dia da Dionísia Urbana, teremos o festival helênico da Pandia, quando honra-se Zeus Pandios (brilhante deus dos céus) e sua filha com Selene (a lua cheia), chamada Pandias ou Pandeia ("Toda-Divina" ou "Toda-Brilhante"). O festival político da Pandia foi estabelecido pelo rei de Atenas, Pandion, mas apenas um demos de Atenas, o Plótheia, o celebrava. O curioso é que encontrei algo mais sobre ele justo em um livro sobre Dionísio em sua relação com a Índia, onde "Pandia" é também o nome de uma dinastia vinda da Lua:

"Segundo o mito cretense, Lampros, esposo de Galatéia, cujos filhos eram bissexuais, era ele mesmo filho de Pandion, descendente das dinastias do Sol e da Lua. O festival ático do Pandia era celebrado com a lua cheia. O festival, cujo nome advinha de Pandion, epônimo da tribo de Pandionis, era em honra a Zeus." (R.F. Willets, Cretan Cults and Festivals, p.178)
Deve-se observar que Pandia é o nome de uma dinastia dravidiana oriunda da Lua que, desde tempos imemoriais, reinou na Índia e que também é mencionada no grande poema épico tâmul, o Shilappadikaram. Os pandavas, filhos de Pandu (o branco), eram membros da dinastia que se opôs aos arianos na guerra do Maabárata.
(Alain Daniélou, Shiva e Dioniso - 'A Religião da Natureza e do Eros', p.30)
Para quem não lembra ou não leu o Mahabharata hindu, os Pandavas lutavam contra os Kauravas, o que muitos estudiosos interpretam simbolicamente como as virtudes enfrentando os vícios. Outros dirão que os Pandavas representam o Dharma - o caminho da justiça, que se parece com a realização do nosso daimon - e os Kauravas sendo o Adharma - tudo aquilo que impede os humanos de alcançar o divino, o sagrado.

Nós podemos pensar nessa união do Sol com a Lua como uma união de opostos que traz o equilíbrio. As virtudes, para os gregos, eram exatamente esse meio termo entre dois vícios. Por exemplo, a virtude da paciência seria o equilíbrio entre o extremo do "pavio-curto" e o extremo da leniência (quando se permite/aceita tudo), os quais seriam vícios. Por conta disso, há muito mais vícios do que virtudes, assim como no Mahabharata encontramos cem Kauravas para apenas cinco Pandavas. Também podemos pensar que as virtudes nos aproximam dos deuses, da Toda-Divina, enquanto os vícios vão nos impossibilitando de alcançar esse divino.

Fica, então, a sugestão para - durante tal festival - refletirmos sobre como vencermos nossos vícios e nos aproximarmos do sagrado.

março 12, 2011

Religião, Ciência, Psicologia

"Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses."

Tudo, em toda a parte, possui uma ordem, uma lógica, que nos faz interligados. Hermes Trismegisto já dizia que o que está em cima é como o que está embaixo e vice-versa. Muitos já observaram como o átomo e o sistema solar são semelhantes - em termos de massa proporcional do núcleo/sol em relação aos elétrons/planetas e em termos de suas órbitas, por exemplo. E, quando estudamos a psicologia/filosofia (si-mesmo), a ciência/natureza (universo) e a religião/mitologia (deuses), essa máxima délfica acima demonstra cada vez mais a sua veracidade.

Bem ou mal, nosso limite é o sistema solar. A gente sabe pouco lá de fora dele. Sim, houve o telescópio Hubble como pioneiro (que existe apenas há quase 21 anos e que será desativado daqui a mais uns 4) e existiram algumas sondas que mais mandaram informação lá para fora do que trouxeram, mas uma das historinhas curiosas com relação a isso, que me fez pensar, foi a de uma sonda posterior que atingiu uma região de choque, uma camada turbulenta, ao se aproximar dos confins do sistema solar, bem ali perto de Netuno. Os antigos já falavam sobre existir uma espécie de barreira intergaláctica, e Netuno (Poseidon) é o deus responsável pelos terremotos e turbulências. Sempre que a gente chega numa situação limite, também ficamos 'balançados', 'sacudidos'. Universo, deuses, si mesmo, funcionam parecido. Conhecendo um, alcançamos a compreensão dos outros. E o que mais temos para observar, onde quer que vamos, somos nós, e em seguida a natureza.

A religião antiga se aproxima mais da ciência do que da religião moderna. Principalmente porque a religião antiga era centrada em conhecimento, não em dogmatismos como acontece na religião estabelecida pelos cristãos. Antigamente, o culto ao sagrado era uma questão de lógica, de evidência, de racionalidade, de fazer sentido. Inclusive você era justo com o próximo porque isso era parte de uma virtude racional e não porque um messias lhe ensinou a ser assim. Para os gregos, a religião ("theôn timaí" = 'veneração dos deuses') não era tanto uma questão de fé (pistis), sobre a qual não existe nenhum mito (o que existia era ser 'temente aos deuses', o "theoudés" da Odisseia, como uma virtude que garantia as outras), apenas os romanos é que começaram a trazer a noção de fé (fides). O verbo grego pistestai significa algo como "convencer, deixar-se convencer, seguir", e eles não precisavam ser convencidos nem convencer ninguém da existência dos deuses.

Quando nós - reconstrucionistas helênicos - estudamos (e somos tidos como nerds por isso) com a intenção de usar a teoria para orientar a nossa prática, mesmo sem querer acabamos encontrando evidências que nos maravilham e fortalecem nossa identificação com a cultura e os valores helênicos. Se você ler sobre os 3 Logos dos quais fala a filosofia, ler sobre os 3 fogos mencionados no oráculo caldeu, e pensar na estrutura de uma célula demonstrada pela ciência, vai conseguir relacionar essas coisas entre si, e mais uma vez confirmar a máxima délfica. Tanto a filosofia (si-mesmo) quanto o oráculo (deuses) e a célula (universo), falam de algo que cria, de onde partem as coisas; de algo que organiza as informações; e de algo que realiza essa inteligência no mundo sensível, dando-lhe inclusive uma forma física. Você pensa em fazer um copo, você reúne o que precisa para construí-lo e então efetivamente o faz. Existe uma inteligência criadora/organizadora, ela delimita o que vai usar como mensagem, e apresenta esta mensagem ao mundo. Você tem o DNA do núcleo, um meio circulante do citoplasma, e uma membrana que dá forma e permite trocas com o meio. O oráculo caldeu inclusive diz que quem fica nos limites de tudo, como intermediária, guardiã das chaves, senhora das fronteiras, é Hécate. Ela conduz as almas do mundo de lá para o de cá e vice-versa. Ela escolta Perséfone nas suas vindas e idas do submundo à Terra. Eis uma revelação divina que pode ser descoberta através de reflexões filosóficas e observações do universo, sem precisar simplesmente 'acreditar' num mito ou epíteto de Hécate.


Na maioria das vezes, o que nos falta é conhecer esse si-mesmo. Não somos nossos corpos, nosso trabalho, nossa personalidade, nossas habilidades, formações e gostos. O verdadeiro Ser que compartilhamos é outro 'esquema', outro 'lance'. Por isso acredito ser importante que se leia o trabalho dos filósofos e dos cientistas para se entender os deuses, em vez de se ler apenas mitologia e achar que aquilo é história literal. Se os mitos fossem a soma do que deveríamos acatar como verdade, os gregos teriam um livro sagrado reunindo esses mitos, coisa que eles não têm. Não existe um manual; o que você precisa é olhar para si e olhar em volta. Só assim vai perceber os deuses em tudo isso que há por aí, inclusive em você e no outro.