julho 16, 2017

"Torna-te quem tu és." (Píndaro)


As teorias psicológicas geralmente carregam uma visão bem traumática dos primeiros anos de vida, tornando nossas lembranças e a narrativa da nossa história pessoal algo infiltrado por essa ideia, que nos faz pensar na infância como uma época de calamidades desnecessárias e causadas pelos outros, as quais teriam moldado nossa personalidade de forma errada. Mas nossas vidas são mais prejudicadas por essas ideias do que pelos traumas em si. Nossas vidas são determinadas não tanto por como foi nossa infância, mas por como aprendemos a imaginá-la. Olhamos para a vida como uma narrativa cronológica e sem um roteiro, transitando entre ressentimentos sobre o passado e ansiedades quanto ao futuro. 

Para sairmos dessa identidade de produto social determinado por eventos aleatórios e reações estranhas, precisamos buscar não o sentido da vida em geral, mas uma razão pessoal para estarmos aqui. A beleza, o mistério, a mitologia por trás da nossa vida em particular. As teorias que misturam genética e meio-ambiente, inato e aprendido, hereditário e social, se esquecem de falar sobre o que é aquela coisa específica que faz você ser você, que vai além de ser apenas um resultado entre essas duas forças. Quanto mais dissermos que somos produto dos nossos cromossomos aliado ao que nossos pais nos fizeram numa época que já passou há muito tempo, mais nossas biografias vão ser todas parecidas com a história de uma vítima e bastante acidental. Mesmo que depois você vire o outro lado da moeda da vítima, que é a do heroi que sobreviveu, venceu e "se fez sozinho".

O cronológico não importa tanto. Não importa qual pincelada o pintor deu primeiro, o que você vê já é a arte pronta. Você é uma imagem completa, no agora. Como disse Picasso, "eu não me desenvolvo, eu sou". Essa sua essência pode ser ignorada o quanto você quiser, mas um dia vai sair e te tomar. Às vezes sua essência não aparece quando criança, porque você não está pronto. Por exemplo, pode ser que você vá ser um escritor, mas que nunca sentiu urgência em escrever quando novo, porque antes de criar você precisava aprender, olhar, ler, sentir, cheirar, viver, para não escrever besteira. Mas podemos ter percepções disso desde a infância sim, então seria bom tentar lembrar mais dessas percepções do que dos eventos traumáticos dessa época. São dicas, intuições, sopros, impulsos, estranhezas, urgências, que perturbam a vida natural e que estranhamente rotulamos de sintomas. Mas, para brincar com a linguagem, esse "sim, toma" é um presente pra você. Há uma razão para essas coisas te escolherem. E o início da palavra sintoma vem do grego "sym" (combinação, conjunto). Não estamos sozinhos. 

A psicologia é sim uma ciência, mas seu nome começa com "psyche", "alma" em grego, então ela porta muito do que seria identificado como espiritual ou religioso. Dizer que "o coração tem razões", que "há algo de inconsciente nas nossas intenções", que "nada acontece por acaso" etc, tudo isso é convencional e aceitável. E quando pensamos que estamos aqui por um motivo que não nos deixa morrer quando caímos da escada ou quando nos enchemos de vírus e bactérias? Podemos chamar isso de instinto, de autopreservação, de sexto sentido, de consciência subliminar, de energia universal ou de anjo da guarda - todas essas coisas são invisíveis e as sentimos presentes. Mas a sociedade prefere que você compre a história do sobrevivente que se fez sozinho do que a história de que você é amado por uma providência que guia você e de que você está aqui por ser necessário no mundo. E não estou falando necessariamente de deus/es externo/s. 

No mundo atual parece que estamos mais distraídos do que motivados. Procuramos coisas para fazer para evitar pensar, e não coisas para nos inspirar a criar. Porque dá trabalho descobrir sua missão e cumprir as exigências que vem com ela. Estamos cada vez mais fugindo de ser responsáveis, por isso também a teoria de culpar a infância é bem cômoda. Ora, se a cada 7 anos todas as nossas células do corpo se renovam, por que eu vou deixar que me definam pelo que me aconteceu na infância? O que eu passei pode explicar muito do meu comportamento hoje, mas não mudou quem eu sou ou o que eu acredito que vim fazer no mundo. 

Em vez de sermos apenas "estudos de caso", deveríamos ler a história de cada um além do eixo biológico-social, talvez algo mais parecido com o filosófico ou antropológico, mas sem o etnocentrismo típico. Podíamos realizar nossa análise menos em estatísticas e diagnósticos e mais em imaginação e mito-poesia. Assim veríamos as perturbações na infância menos como problemas de desenvolvimento e mais como emblemas que revelam muito do chamado individual, da descoberta da importância que tem aquela vida em particular. O maior pecado da psicologia é ignorar a beleza, a apreciação estética de cada história de vida. Cada mudança de situação na vida tem um sentido e uma interpretação, mas também tem uma beleza. Falar apenas em estruturas cognitivas e afins não tem graça. E ver a beleza em algo nos faz amá-lo. Ficar apenas procurando "problemas" torna a todos ansiosos - terapeutas, pais, crianças, pesquisadores. 

A descoberta do nosso chamado é algo que ao mesmo tempo ancora lentamente e voa bem rápido. É como uma árvore que tanto cresce para cima quanto se enraíza mais fundo. Quanto mais nos afastamos dele, mais nos despersonalizamos e menos vivemos. Viramos estatística dentro de um grupo. Sei que é melhor ser sobrevivente do que ser vítima, mas melhor que sobreviver é viver plenamente. Além de me identificar com milhares de pessoas que passaram pelas mesmas coisas que eu, também posso encontrar o que me torna única

Essa busca pela diferenciação é o que talvez nos faz mudar coisas visíveis e aparentes, como fazer uma tatuagem, adotar um novo estilo de se vestir etc. São coisas externas que expressam a necessidade de algo interior que nos defina. Quem sou eu especificamente? Algo que vai muito além da minha genética e acontecimentos do passado e vivência social. Achar esse algo é que são elas. De qualquer forma, na sua procura pelo autoconhecimento (que é o mote tanto da terapia quanto do helenismo), é melhor ir por esse caminho atemporal do que percorrer mil vezes aquela narrativa cronológica sem roteiro, que pode trazer muitos avanços mas que raramente nos deixa satisfeitos. 

Como ensinava Píndaro, primeiro precisamos descobrir quem somos, para depois agirmos de acordo com o que descobrimos.

Independente do nome que você lhe dá (gênio, daimon, anjo da guarda, ochema, fortuna, sorte, jinn, ka, ba, animal de poder, eu-superior, self, chi, ruah, pneuma etc), já pensou um pouco sobre qual o seu chamado?