dezembro 28, 2014

O Uso do Sino em Rituais

Após ver uma sugestão de ritual que incluía o uso de um sino, resolvi pesquisar se tal prática possuía ressonância na antiguidade. Encontrei um artigo chamado "For whom did the bell toll in ancient Greece? Archaic and Classical Greek bells at Sparta and beyond" (Por quem os sinos dobravam na Grécia antiga? Sinos gregos arcaicos e clássicos em Esparta e além), de Alexandra Villing. São 74 páginas, mas faço aqui uma breve resenha. Adquiri também um sino com cabo de madeira para pirografar nele algo que o identificasse como de uso ritual. Depois, no texto, descobri que existiam mesmo inscrições votivas em alguns sinos de culto, especialmente a Atena.

HISTÓRIA

Os antigos não eram acostumados a sinos enormes como aqueles que soam nas igrejas de hoje, e sim a sinos portáteis de não mais do que uns 10 cm. Esses sinos de tamanho pequeno eram comuns na Grécia Antiga do período arcaico em diante, tanto em bronze quanto em terracota. Eles eram encontrados em santuários, túmulos e casas, e serviam para vários propósitos. Fontes arqueológicas, iconográficas e literárias atestam o seu uso como ofertas votivas no ritual e em situações funerárias, também como instrumento de sinalização dos guardas da cidade, como amuletos para crianças e mulheres, e num contexto dionisíaco no sul da Itália. A origem dos sinos é da área oriental e caucasiana, por onde eles encontraram entrada na antiga Samos e Chipre e depois na Grécia continental. O maior complexo de sinos encontrado, da era clássica, vem de escavações no santuário de Atena na acrópole espartana. Veremos que, além de Esparta, outros lugares também associavam o som do sino a algo protetor, purificador e apotropaico (que afasta os males). Os sinos de terracota eram claramente imitações baratas dos sinos de bronze, e serviam para efeitos de dedicação, podendo ser comparados a miniaturas de vasos, de armas ou estatuetas de animais usados como ofertas votivas.

Os sinos em maior número foram encontrados no santuário de Atena Khalkioikos na acrópole espartana em 1907, embora só em 1925 se tenha anunciado e poucos deles tenham sido apresentados ao público, tendo apenas se publicado alguns desenhos e as inscrições votivas encontradas neles. Depois, uma pesquisa no Museu de Esparta revelou que, nessa escavação, eles haviam encontrado 34 sinos de bronze e 102 sinos de terracota (ou fragmentos deles). É difícil saber o local exato dos sinos no santuário, pois parece que estavam em toda a parte, desde o sul do precinto até os fundos do teatro (incluindo a pequena construção que servia como santuário de Atena Ergane). O que se sabe claramente é que eles eram dedicados a Atena com os epítetos de Khalkioikos ("da casa de bronze") e Poliouchos ("suporte da cidade"), já que os sinos possuíam inscrições votivas a ela. O tamanho deles variava entre 2 e 8 cm de altura. No texto que li, a autora descreve a forma, a alça, os pés, como foram feitos etc, e traz desenhos dos mesmos. Quase todos os sinos tinham ao menos um buraco em cima para prender o badalo, o qual era sempre de ferro. Sete desses sinos tinham inscrições, três deles com dedicatórias completas, que indica se tratarem de ofertas votivas de um homem e duas mulheres. Outros três tinham abreviações (ΑΘΑ para ΑΘΗΝΑ - Atena). No sétimo parecia ter uma inscrição longa, mas agora só um A é claramente visível. As inscrições são claramente em lacônico do século V AEC.


No Menelaion de Esparta, no santuário rural de Aegina provavemente dedicado a Ártemis, e no santuário de Apolo Korynthos na Messenia, haviam sinos muito parecidos com os dedicados a Atena em Esparta. Eles tinham a forma de cúpula, com uma beirada mais grossa e com pés. 


Além desses lugares, os sinos mais antigos vêm de Atenas, onde três sinos de terracota decorados foram encontrados no túmulo de uma criança, também do século V AEC. Também encontraram-se sinos na Beócia (no túmulo de uma criança e em santuários de Deméter e dos Cabiros), em Selinous na Arcádia (no santuário de Deméter Malophoros), em Perachora (no temenos de Hera Limenia), em Pherai na Tessália (provavelmente vindos dos santuários de Ártemis Enodia e de Zeus Thaulios), em Olímpia, em Idalion no Chipre, e no argivo Heraion de Samos. 


Em Samos, a influência oriental (da Mesopotâmia, Babilônia, Assíria e Fenícia) aparece não só nos sinos, mas também em estatuetas de chumbo e em máscaras dedicadas a Ártemis Orthia.

Dessa parte introdutória, podemos resumir que, em termos de história dos sinos, há cinco pontos chaves a se mencionar. Primeiro, os sinos se encontravam por praticamente toda a Grécia e mundo grego, particularmente em santuários e túmulos. Segundo, a maioria dos sinos gregos eram feitos de bronze ou terracota, alguns de metais preciosos. Terceiro, os sinos de Samos, do Chipre, da Tessália e de Aegina eram baseados em modelos orientais. Quarto, os sinos gregos são normalmente pequenos e mais ou menos em forma de abóbada/cúpula, embora também apareçam sinos cônicos e hemisféricos; a parte de segurar era em arco ou alça, e inscrições neles eram raras. Quinto, não havia um padrão particulas: os sinos tebanos de bronze dos Cabiros e os lacônicos de Ártemis eram ofertas votivas, assim como os sinos espartanos de terracota para Helena e Menelau no Menelaion e os beócios para Deméter em Eutresis. Também se encontraram sinos em santuários a Hera (em Samos, Argos e Perachora), a Atena (em Esparta, em Idalion e talvez em Delfos), a Afrodite (em Mileto), e a Apolo (na Messenia e em Chios).

FUNÇÃO

Os sinos encontrados em Esparta eram claramente funcionais. Afinal, quase todos tinham badalo, o que também nos faz concluir que era improvável que eles tivessem sido usados como instrumentos musicais, já que, no caso, se bateriam com baquetas por fora do sino. Pode ser que eles fossem suspensos ou usados na mão. Uma vez que muitos tinham pés, eles provavemente não só ficavam pendurados mas podiam ser colocados em uma superfície para ficar de fácil acesso ao usuário.

Em Roma, os sinos eram usados para anunciar abertura de mercados e banhos, para acordar e chamar escravos etc, mas na Grécia Antiga esses usos não se confirmam, embora o sino seja conhecido nos tempos de Demóstenes como um meio de atrair a atenção. Na Grécia, os sinos eram carregados pelos guardas - tanto os comediantes Nicofon e Aristófanes quanto o historiador Tucídides mencionam o sino nesse contexto. Os guardas podiam usá-lo como adorno ameaçador da armadura, e o inspetor podia usar o sino para ver se os guardas estavam acordados. Sinos em animais, como cavalos, aparecem em Chipre com influência assíria, mas não se atesta o mesmo na Grécia em si. Em suma, o sino funcionava principalmente para duas coisas: como um sinal e com o aspecto ameaçador-protetor. Este último guarda uma conexão especial dos sinos com Atena como deusa da guerra e das habilidades manuais.

A palavra usada nas fontes literárias para se referir a sino é κώδων ("kódon"). Entre as fontes mais antigas a mencioná-la, está Empédocles, no século V AEC, quando ele descreve como o som é percebido dentro do ouvido. Ele diz que o órgão da audição é uma espécie de sino que reproduz ecos que se parecem com os sons de fora. Aécio, quando comenta isso, fala de uma parte cartilaginosa que balança quando é golpeada, um instrumento que produz som reverberante. Esse som dos sinos, especialmente o som do bronze, tem uma ligação muito grande com o som da batalha: os metais se colidindo poderiam induzir medo e ter o propósito de afugentar o inimigo. Vernant (em "Mito e Pensamento entre os Gregos") dizia que o som do bronze contra o bronze repele a bruxaria do inimigo. A própria voz de Atena é descrita por Píndaro como o som do bronze, seu grito um clamor penetrante. Outros autores a comparam com o som agudo do trompete, que era usado como instrumento de sinalização na guerra e que parece ser associado a Atena em Argos. Mas, quando Sófocles liga a voz de Atena ao som do trompete, a palavra que ele usa é κώδων, sino, um sino de bronze, uma vez que a parte frontal do trompete também era chamada de κώδων. Além disso, o epíteto de Atena em Esparta era Khalkioikos ("da casa de bronze"). Pausânias diz que o revestimento do templo dela na acrópole espartana era parcialmente decorado com folhas de bronze. Mas há mais: o culto de Atena Ergane como patrona dos trabalhadores de bronze em Atenas (principalmente no festival da Khalkeia) sugere que ela era patrona da forja de armas e que ofertas de bronze tinham lugar em seu culto. A própria palavra "khalkeion" (cesto de bronze) poderia se referir na verdade a um sino.

Porém, explicar o papel dos sinos como ofertas votivas meramente pela sua habilidade de reproduzir o som da batalha seria inconcluso, até porque há outros instrumentos mais efetivos que poderiam ser imaginados nesse contexto, e isso também não explicaria o envolvimento de mulheres como dedicantes. O uso no pescoço de animais de sacrifício também não cabe, porque só se encontrou uma representação assim pintada no altar de uma casa em Delos, para um festival romano, é improvável que os animais de sacrifício na Grécia usassem sinos. Há a possibilidade do uso do sino como objeto apotropaico e o seu inverso (ou seja, para afastar o mal e para atrair bons espíritos).

A evidência literária e pictográfica aponta que os sinos tinham de fato uma relação com o culto de Dioniso. Strabo chama o uso de sinos e o bater de tímpanos ma atividade dionisíaca, e Nonno chama uma das mênades de Kodone. Vasos do século IV AEC ao sul da Itália representam Dioniso e membros de seu 'thiasos' (séquito) ou segurando um sino ou com um sino amarrado no pulso ou amarrado ao tirso. Em pelo menos um, Dioniso segura o sino alto como se para dar um sinal ao seu thiasos. [Figura 3] 


Poderia-se imaginar os sinos sendo usados para chamar os mortos a um feliz pós-vida dionisíaco, mas isso não tem evidências suficientes nos registros arqueológicos, já que poucos sinos foram encontrados em túmulos ao sul da Itália. Também poderia-se imaginar que o som do sino provinha uma proteção mágica em particular para os períodos vulneráveis de abandono extático no ritual dionisíaco. Na Índia, por exemplo, mulheres e meninas de famílias ricas usavam tradicionalmente sinos para suas danças rituais. Dedicar um sino de bronze deveria mesmo ser algo caro.

A autora aqui pergunta "Isso tudo poderia implicar que a Atena espartana tinha uma face oculta no estilo da folia dionisíaca? Será que os homens e mulheres espartanas executavam danças em sua honra, enfeitados com sinos?". A dança sem dúvida era um aspecto importante na vida ritual de Esparta. Se confiarmos em Aristófanes, existiam danças associadas com o culto da Atena espartana: em Lisístrata, o coro chama Helena a conduzir a dança no santuário de Atena Khalkioikos. Uma estatueta arcaica de uma mulher tocando címbalos foi encontrada no santuário de Ártemis Orthia e o braço de uma estatueta similar foi encontrado no santuário de Atena na acrópole espartana. Mas não há evidência de sinos sendo parte de danças rituais nem para Ártemis nem para Atena. Em geral, os sinos eram menos adequados como instrumentos para acompanhar a dança rítmica, se usavam mais címbalos mesmo. No contexto dionisíaco, o sino era mais o caso de um instrumento para sinalizar e com um significado mais apotropaico relacionado ao som dele.

Há uma passagem de Teócrito que fala que "a ctônica Ártemis está se aproximando, façam do local um solo sagrado pelo bater do bronze". Ele cita a obra 'Sobre os Deuses', de Apolodoro, uma fonte que fala que o som do bronze desempenhava um papel em todas as espécies de rituais purificatórios: por ser puro e por afastar o miasma, ele era empregado durante os eclipses lunares e os funerais. Essa interpretação é apoiada por várias fontes romanas posteriores, atenstando que o som do sino era usado para afastar poderes malignos. No culto extático de Dioniso, o barulho do bronze poderia servir para manter os maus espíritos (que conhecemos como as 'keres') longe. No culto a Deméter, o barulho do bronze também aparece. Píndaro a chama de "Khalkokrótou Damáteros", pelo barulho dos címbalos e tambores de bronze que ressoavam na busca por Perséfone. Assim como a dança dos Curetes e Coribantes também usavam o bater de escudos para afastar o mal do bebê Zeus, sabemos que Deméter é patrona da maternidade, e o parto pode ter usado o som do bronze para afastar o mal da criança e da mãe. Isso explicaria por que encontramos sinos em túmulos infantis.

Em resumo, os sinos eram usados como ofertas votivas, como instrumento de sinalização, e como amuleto protetor apotropaico. O som do bronze do sino tinha qualidades potencialmente amedrontadoras, afastando o mal. E, em Esparta, os sinos eram oferecidos principalmente a Atena.

Segue a imagem do sino que comprei:




dezembro 13, 2014

Xenia e Empatia

Em tempos em que Dioniso derruba máscaras e descobrimos, entre nossos amigos, pessoas que defendem os opressores, os violentadores e afins, encontrei o texto que traduzo abaixo (com grifos meus) e que espero que faça as pessoas refletirem sobre suas falas, pensamentos e ações diante das situações que andamos presenciando na mídia, nas redes sociais e no nosso dia-a-dia. Não acolher o outro, banalizar sua dor, relativizar um crime, também é Hybris, uma transgressão contra o princípio básico da nossa crença, a Xenia (hospitalidade). 

Baucis e Filemon

Segue:
Declaração de Valores
por Thenea, traduzido pela Alexandra

# Hospitalidade: Nossas portas estão abertas

A hospitalidade é um dos principais valores em todas as culturas antigas, incluindo os nórdicos, os celtas e os gregos. Alguns podem argumentar que esta é a pedra fundamental de todas as religiões indo-europeias.

Nos antigos relatos gregos, Zeus se disfarçaria de pessoas as quais a sociedade tinha marginalizado para testar a virtude de possíveis anfitriões. Se falharmos em receber bem alguém, ou falharmos em criar um espaço seguro para alguém, por qualquer razão além de um abuso direto de nossa hospitalidade, falhamos em fazer o mesmo para o Rei dos Deuses.

Oferecer hospitalidade, na Grécia antiga, significava mais do que comida e bebida. Se uma pessoa precisasse de roupas porque a jornada foi dura, ou de uma cama para dormir, estas coisas também eram providenciadas. Hospitalidade significa prover as necessidades e o conforto de alguém.

Criar um espaço sagrado não significa simplesmente ignorar fatores como ancestralidade, onde alguém está no espectro de gênero, orientação, forma do corpo, deficiência, idade, ou renda. Significa tentar entender de onde a pessoa vem, e entender o que elas precisam para se sentirem confortáveis nos espaços que criamos.

# Discurso: O Diálogo está Aberto

Não se trata apenas de honrar os deuses gregos. Trata-se de uma coisa cultural geral da Grécia Antiga. Discutir política e o estado do mundo são ambas coisas altamente tradicionais a fazer num Simpósio (uma reunião para o propósito de libações). Podemos e devemos criar espaço para o diálogo sobre esses tópicos importantes e prementes.

Precisamos falar sobre discriminação.

Ter diálogos sobre discriminação pode nos ajudar a entender como melhor respeitar as jornadas daqueles que devem enfrentá-la. Também pode nos ajudar a começar a entender como responder aos cidadãos e aos eleitores.

A base desse diálogo, porém, deve ser o respeito.

# Humildade: Nossos Corações estão Abertos

A transgressão da Hybris é normalmente enquadrada como "questionar os deuses", mas essa não é exatamente a questão, em termos de visão helênica. Nos antigos mitos gregos, os humanos geralmente não envolviam as deidades em debates filosófico pois comportar-se assim seria como pensar que eles eram iguais ou melhores que as deidades. Isso é um problema, porque se você pensa que é melhor que os deuses, como você irá tratar seus companheiros humanos? Em contra-partida, se você não pensa que é melhor que seus companheiros humanos, você não corre o risco de fazer isso com relação aos deuses.

Racismo, preconceito de gênero, de deficiência, de idade, de classe social, e outras formas de preconceito, são uma espécie de Hybris.

Humildade também significa, a meu ver, não assumir que eu sei melhor do que a outra pessoa o que ela tem sofrido, e não presumir que posso falar pelas experiências de qualquer um, nem invalidar seus discursos de qualquer forma.

É com essas virtudes que espero que possamos nos comportar nessa época de desenvolvimento de consciência do racismo e preconceito que estão infestando nossa sociedade, e é minha esperança sincera que - através da criação de um espaço seguro e do diálogo aberto com um olhar no remediar de injustiças - o progresso possa acontecer, mesmo se apenas em nossa pequena esfera de influência.


dezembro 01, 2014

Sacerdotisas - Breve Introdução Histórica

Os gregos antigos não tinham sequer uma palavra separada para "religião", uma vez que não existia nenhuma área da vida que não houvesse um aspecto religioso (Bremmer, "Greek Religion", 1994). Ora, se os gregos não distinguiam entre "igreja" e "estado", se as coisas sagradas não estavam separadas das seculares (Bremmer, "Religion, Ritual, and the Opposition of Sacred vs Profane", 1998, e Connor, "Sacred and Secular", 1988), então a posição de liderança das sacerdotisas não era periférica, mas primária aos centros de poder e influência. 

A questão da "invisibilidade" das mulheres atenienses como cidadãs de segunda categoria silenciosas e submissas, restritas aos limites de suas casas, envoltas em tarefas domésticas e no cuidado dos filhos, vinha sendo aceita nas últimas décadas baseado em textos bem difundidos, especialmente de Xenofonte, Platão e Tucídides, e em algumas peças de teatro. Mas há sérias contradições entre os ideais culturais da literatura e as práticas sociais da vida real. Evidências arqueológicas (Nevett, "Gender Relations in the Classical Greek Household: The Archaeological Evidence", 1995) demonstram que as mulheres tinham um papel ativo na esfera econômica, decidindo sobre o dinheiro (Harris, "Women and Lending in Athenian Society", 1992), controlando propriedades (Foxhall, "Household, Gender and Property in Classical Athens", 1989), efetuando discursos (Blok, "Virtual Voices: Toward a Choreography of Women's Speech in Classical Athens, 2001). Blok estima que as mulheres atenienses estavam envolvidas em cerca de 85% de todos os eventos religiosos. Nos textos, temos Heródoto com 62 referências a sacerdotisas em "Histórias" e Pausânias que informa sobre atividades de sacerdotisas e santuários por toda a Grécia, além do tratado de Licurgo "Sobre as Sacerdotisas". Demóstenes e Plutarco também fazem referências a sacerdotisas. Enquanto isso, Tucídides não menciona sacerdotisas e Platão só as discute numa função de um "estado ideal". 

A primeira menção a sacerdotisas foi encontrada ainda na escrita Linear-B de antes de 400 AEC, em uma tabuleta micena do palácio de Pylos que cita Erita, uma sacerdotisa do santuário local. Ela era dona de terras e outras propriedades, tinha uma posição legítima dentro da sua comunidade e era auxiliada por servos sagrados (Ventris e Chadwick, "Documents in Mycenaean Greek", 1973). Também em Linear-B se lê a palavra "hiereia" e "hiereus", sacerdotisa e sacerdote. Normalmente, os cultos a deidades masculinas era oficiado por sacerdotes, e os de deidades femininas por sacerdotisas, mas há famosas exceções, como: sacerdotisas de Dionysos Anthios, Helios, Apollo Deiradiotes, Apollo Lykeios, Apollo Delphinios, Zeus em Dodona, e alguns cultos a Poseidon; assim como sacerdotes de Deméter, Afrodite e Atena.

As sacerdotisas em geral acumulavam um prestígio, liderando procissões públicas, supervisionando festivais da cidade, tendo assentos reservados nos teatros, tendo imagens erguidas em santuários, e tudo isso lhes garantia uma importância que não pode ser subestimada em um mundo no qual o status carregava consigo um poder duradouro. Escolher se tornar uma sacerdotisa era escolher se tornar extraordinária (Turner, "Hiereia: The Acquisition of Feminine Priesthoods", 1983). O status social e os recursos financeiros da sua família eram fatores determinantes em qualificá-la para o ofício sagrado. Dedicações inscritas atestam a generosidade de sacerdotisas em obras beneficentes, seu orgulho em inaugurar imagens, e sua autoridade em estabelecer leis para o santuário. Elas também eram publicamente honradas com coroas douradas, estátuas delas mesmas e assentos privilegiados nos teatros. Há sacerdotisas retratadas em placas de madeira, relevos votivos, monumentos funerais, vasos, escudos pintados, e implementos de bronze e marfim. Antes dessas descobertas, nos diziam que as sacerdotisas não tinham importância na história da religião (Feaver, "Historical Development in the Priesthoods of Athena", 1957). 

Chrysis, sacerdotisa de Athena Polias, recebeu em Delfos a coroa de Apolo, e o povo votou para lhe conceder também uma série de direitos e privilégios: ela era representante de Atenas em Delfos, tinha direito a consultar o oráculo, prioridade em julgamentos, inviolabilidade, isenção de impostos, um assento frontal nas competições, o direito a possuir terras e casas, e todas as outras honras costumeiras para os cônsuls e benfeitores da cidade ("Inscriptiones Graecae", 1913). Mais tarde ela ganhou inclusive uma estátua na acrópole ateniense.

Poderíamos pensar "mas nem todas eram sacerdotisas". Acontece que, ao contrário das preposições cristãs, eram raros os sacerdócios que duravam uma vida inteira. A maioria dos cultos exigia que se servisse apenas por um período, um ano ou mesmo um único ciclo de festivais. A ideia moderna de que sacerdotes sejam pessoas entre os deuses e os humanos é alheia aos antigos helenos. Todos tinham acesso aos deuses, todos podiam oferecer preces, pedidos, agradecimentos, presentes, e executar sacrifícios diretamente (Dickerson, "Priests and Power in Classical Athens", 1991). Heródoto, quando observou as práticas persas, estranhou que eles exigissem a presença de um sacerdote (o 'magus') em cada sacrifício. Porém, é claro que os sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes e sacerdotisas tinham seu próprio status especial. 

Além disso, a hierarquia do culto incluía uma horda de oficiais religiosos, seja com deveres específicos seja com responsabilidades mais gerais. Por exemplo, atendentes do templo (neokoroi), fazedores das coisas sagradas (hieropoioi), guardiães do templo (naophylakes), tesoureiros dos fundos sagrados (tamiai), carregadores de lã (pektriai), fiandeiros (alakateiai), tecedores (histeiai), fazedores de farinha (meletriai), varredores sagrados (karutieiao), portadores das chaves (kleidouchoi), tecelãs (esgastinai), moedores de grãos (aletrides), líderes do sacrifício (hieragogoi), condutores do sacrifício (hierophoroi), presidentes do ritos sagrados (hierarchai), buscador das coisas sagradas (hieronostoi), encarregados do templo (hierakomoi), administradores do templo (hieronomoi), sacerdotes participantes (hieroparektes), leitores de auspícios nos sacrifícios (hieroskopoi), escribas sagrados (hierogrammateis), guardas sagrados (hierophylakes), coletores de dinheiro sagrado (hierotamiai), cantores e harpistas sagrados (hieropsaltai), carregadores das cestas (kanephoroi), carregadores dos sacras (arrephoroi), carregadores da água (hydrophoroi), carregadores das flores (anthesphoroi), carregadores da mesa (trapezophoroi), lavadores da estátua (loutrides), decoradores da estátua (kosmeteriai), além das ursas de Ártemis (arktoi), as abelhas de Deméter (melissai), as donzelas de Apolo em Delos (deliades), as corredoras espartanas de Dioniso (dionysiades) etc. 

Estima-se que existiam dois mil cultos operando na Ática durante o período clássico. Com cerca de 170 festivais por ano no seu calendário, Atenas tinha um público de oficiantes que lotava a arena. Aliás, 'onde' as coisas aconteciam era fundamental para entender 'como' as coisas aconteciam na antiga Hélade, pois os cultos variavam entre as pólis. Os próprios gregos divergiam e tinham maneiras contraditórias de olhar para a própria religião. Mas uma coisa é certa: o sistema deles era um em que o mito, o culto, o ritual e as imagens visuais eram totalmente interdependentes e que se apoiavam mutualmente.


Um aspecto importante que não podemos deixar de falar sobre as sacerdotisas é a diferença entre o que se conhece do celibato cristão e o helênico antigo. O requisito da virgindade na Hélade era mantido só por um breve período, até o casamento. O celibato perpétuo, além de raro, era mais comum entre mulheres mais velhas, que já tinham tido filhos, eram viúvas e pretendiam terminar sua atividade sexual. As sacerdotisas em geral eram mulheres normais, casadas, com filhos. O próprio termo "parthenos" não significa virgindade num sentido de 'inviolabilidade' como temos hoje, e sim no sentido de uma moça que tinha passado pela puberdade e não tinha ainda se casado. O exemplo das virgens vestais romanas era um caso totalmente fora das normas, elas ficavam intactas por trinta anos, depois se casavam ou não, e eram punidas se violassem o voto, enfim, nada parecido com o que acontecia na Grécia. A ideia cristã de uma virgem como alguém 'dedicado ao senhor', 'uma oferta humana votiva', 'um templo sagrado inviolável' não tinha paralelo na antiguidade grega, porque para os helenos a virgindade não era nem um estado de perfeição e nem uma garantia de salvação. Ou seja, ser virgem não garante pureza ou nobreza alguma, uma virgem não é separada do resto como algo abençoado a ser venerado. O ideal, na verdade, era passar por todos os estágios da vida social, então sacerdotisas casadas e viúvas eram mais comuns no culto grego. Mesmo as famosas "prostitutas sagradas" é um conceito muito controverso, porque não há evidências antigas muito seguras dele. Alega-se que essa prática acontecia em Corinto, Éfeso e Pafos, lugares portuários onde o apóstolo Paulo pregou desde cedo (Winter, "After Paul Left Corinth", 2001), e o fenômeno urbano de marinheiros e prostitutas nesses locais litorâneos com prática de culto deve ser o que mais provavelmente levou à atitude negativa cristã de produzir tal ideia sobre as tradições religiosas dali.

Quando, em vez de usarmos o termo "servas sagradas", usamos "agentes de culto", trazemos para o sacerdócio feminino uma dimensão mais ativa, administrativa, de resultados, do que uma imagem de auxiliar submissa. As sacerdotisas tinham mais coisas em comum com os homens do seu nível social do que com as mulheres de níveis inferiores. Precisamos lembrar disso ao considerarmos as forças que definem suas identidades e que propiciam suas ações. O avô materno de Chrysis, que mencionei acima, era sacerdote de Asclépio, seu tataravô materno era supervisor (epimeletes) dos Mistérios Eleusinos, tudo indica que ela herdou seu sacerdócio matrilinearmente. Seu status de sacerdotisa não veio de uma veia patriarcal. Uma história que consiste de um controle monolítico patriarcal sobre as mulheres como vítimas passivas, interrompido esporadicamente por intervenções feministas, já foi desacreditado (Broude and Garrard, "Reclaming Female Agency: Feminist Art History after Postmodernism", 2005). Ainda assim, muitos autores desatualizados insistem em relacionar toda ação social da pólis a atividades masculinas. Isso não significa abandonar a luta por equidade de gêneros e minimizar a opressão sofrida, muito pelo contrário, queremos é empoderar as mulheres ao mostrar a elas que sua força e importância é legítima e atávica. 

Eis por que o helenismo é algo tão rico: ao mesmo tempo em que inclui a dificuldade do estudo para se inteirar das novas descobertas, permite que constantemente estejamos trazendo um novo e atual olhar sobre o que o passado nos apresenta, visto que os autores e tradutores são apenas testemunhas, que interpretam os fatos de acordo com a visão que possuem. O olhar deve ser revisitado e reexaminado dialeticamente, sempre. Já dizia Sócrates, "uma vida não examinada não é digna de ser vivida".

(Postagem elaborada após a leitura de "Portrait of a Priestess", de Joan Breton Connelly, 2007, capítulo 1.)

novembro 19, 2014

Em defesa de Hades

Por Dawn Black, traduzido e adaptado pela Alexandra:

Quando recontam o mito da abdução de Perséfone, normalmente o fazem de uma forma limitada e um tanto equivocada.

Primeiro, Hades não é o belzebu grego. Ele não governa um inferno. Os helenos não associam a morte com o mal. A morte é algo que acontece com todo mundo, não importa o quão bom ou mau alguém é ou quantas coisas boas ou ruins lhe aconteceram.

Segundo, se ele rege o submundo para onde vão os mortos, não é porque ele gosta de gente morta ou porque ele é cruel e sinistro. Ele ganhou essa função quando Zeus, Poseidon e ele tiraram na sorte quem iria ficar com qual reino (Céu, Mar, Submundo). Ou seja, foi pelo acaso de um sorteio, não propriamente por afinidade.

OK, é verdade que os antigos se aproximavam dele com cuidado, evitando jurar em seu nome e chamando-o por apelidos para não atrair sua atenção, porque ninguém estava com pressa em morrer. Mas Hades não é a morte (a morte é Thanatos), Hades não mata e nem ordena a morte (isso fariam as Moiras). E, apesar de presidir as punições dos que fizeram algo errado, não é ele quem julga também (os juízes são Minos, Radamantis e Éaco, e algumas pessoas que cometem crimes graves vão direto para o Tártaro sem passar por eles). 

Coitado, é como se Hades fosse um gerente que tivesse que lidar com os clientes que lhe culpam pela burocracia que já existia antes de ele assumir o posto. 

De acordo com muitos relatos, Hades é bastante ‘relax’, ‘de boa’. Um dos seus apelidos é “o hospitaleiro”, afinal é sua função prover hospitalidade aos mortos, e ele faz isso muito bem. Ele não parece ter um temperamento tão forte quanto o de seus irmãos Poseidon e Zeus, e só se registrou ele ficando bem irritado umas poucas vezes, tipo quando Pirithous tentou sequestrar Perséfone (e está amarrado numa cadeira até hoje) ou quando pessoas interferiam com as práticas funerárias. De fato, na maioria das vezes ele parece bastante tranquilo, inclusive aceitando acordos de trocar uma alma pela outra ou mesmo soltando almas ocasionalmente (tipo Eurídice), embora isso nunca tenha funcionado muito bem. 

Então, temos um cara num emprego difícil, vivendo no escuro e cercado de lamentadores, seria legal ter uma companheira por perto. Ele sai procurando e escolhe Perséfone. E aí, senhoras e senhores, aí ele pergunta a Zeus se pode. Ele faz o que sempre se fez: pediu a permissão do pai da garota. Pode ser que Zeus não seja pai de Perséfone, mas ele é o rei dela e serve. Zeus diz tipo ‘vai fundo’ e ele diz a Hades que este vai ter que agarrá-la às escondidas, porque Deméter é uma daquelas mães helicopterizadas; daí eles pedem ajuda à vovó Gaia e ela ajuda de bom grado a conseguir que a garota ficasse sozinha para que ele pudesse apanhá-la e levá-la para casa.

Vejam isso aconteceu num mundo no qual os homens tomavam esposas como espólio de guerra e isso era normal e OK. No mundo celta também era normal, os homens roubavam o gado do pai e pediam de resgate a filha. Não se consultava a moça.

Uma das coisas que dá nos nervos na língua inglesa é chamarem o rapto (“rapt”) de Perséfone de estupro (“rape”). Não sabemos se isso aconteceu, se ela consentiu ou não, o mito não fala o que ele fez com ela quando chegaram na casa dele. O mito só fala da abdução, do arrebatamento ("rapture"). Hoje em dia ‘arrebatamento’ está associado com júbilo e movimento para cima, não para baixo, mas com certeza isso é influência cristã. O arrebatamento tem a ver com ser transportada para outro plano, não necessariamente o céu e a felicidade.

Até então, todas as ações de Hades com relação a Perséfone foram compreensíveis e não foi a pior coisa que poderia ter acontecido a ela. A coisa incomum mesmo foi a reação de Deméter. OK, não saber onde Perséfone estava e se preocupar foi perfeitamente normal, o que foi incomum foi sua recusa a aceitar o par, mesmo depois de vários outros deuses lhe encorajarem a aceitar, dizendo que Perséfone poderia estar em situação pior do que estar com o Governante de Muitos. Pode ser que fosse legal Hades ter falado com ela, mas ele é atado ao seu reino, a responsabilidade de lidar com Deméter no Olimpo é de Zeus.

Será que Deméter teria recusado a oferta de casamento se lhe dessem escolha? Provavelmente. Não porque Hades fosse um mau partido, mas porque Deméter é um olimpiana e Hades é do submundo, o que significaria que ela não iria mais ver Perséfone com ela morando lá com ele. Ela não a poderia visitar, ao menos que um psicopompo como Hécate ou Hermes a escoltasse e com a permissão de ambos os reis. Apenas alguns deuses tiveram passagem livre para transitar entre os reinos. Mãe e filha não se veriam mais.

Essa situação difícil de Deméter não era incomum no mundo antigo. Os pais davam as filhas em casamento, os maridos as levavam para longe e às vezes as mães não as viam mais. Era comum naquela cultura. E as mães lamentavam sim. Mas quando as mortais lamentavam, isso não resultava na fome mundial.

Perséfone também estava infeliz como milhões de garotas ficavam ao serem levadas da família e arredores para viver com um estranho num lugar estranho. No mundo em que vivemos, estamos tão mal-acostumados que nosso ultraje é um luxo. Como muitas, ela teria que se ajustar e talvez aprender a amar seu novo par e sua vida e (agora como poucas) aprender a abraçar sua impressionante posição como Anfitriã de Muitos, Rainha do Submundo. Esse é um título bem legal.

E, de acordo com todos os relatos, foi o que ela fez. Hades a traiu algumas vezes (ao que sabemos, duas) e ela as transformou em plantas e teve um cacho de filhos com pessoas que não eram ele, mas isso me parece um relacionamento divino normal. Talvez até mais saudável do que o de Zeus com Hera e de Afrodite com Hefesto (espero não ser atingido por um raio ao dizer isso).

E quanto a romã? Hades lhe deu antes de ela voltar para Deméter, com medo de que sua mãe não deixasse sua esposa legítima voltar para ele. Mas ela sabia que isso significaria que ela teria que voltar? E, se sabia, ele a forçou? Como se força alguém a comer? Pode ser que ela soubesse e quisesse voltar ou pode ser que ela fosse tão jovem e inocente que não soubesse o que significaria comer no submundo. A romã é a chave da questão se Perséfone se apaixonou ou não por Hades naquele ponto. E esse momento foi um bom tempo depois da abdução. Talvez nunca saberemos.

Claro que estou conjeturando e sei que os deuses não precisam da minha defesa, mas os mitos talvez precisem. É um desserviço quando feminimizamos os mitos, dando mais poder a Perséfone, transformando Hades num vilão maligno ou num cara charmoso e misterioso sedutor, ou ignorando as regras sobre quem pode ou não pode cruzar fronteiras. É preciso considerar a cultura, porque se ignorarmos ou removermos o contexto desses relatos, podemos perder o x da questão. Há verdade nesses mitos, afinal nos interessamos por eles, mas encontraremos muito menos se nossa visão for turvada pelo preconceito moderno ocidental. 

( Fonte: http://blog.sacredhearth.com/2014/10/in-defense-of-hades-a-closer-look-at-the-abduction-of-persephone/ )

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Nota da Tradução: Na hora de trazer para a nossa vida atual, claro que temos que ajustar às conquistas que tivemos, mas o que não podemos é julgar (e condenar) com olhos atuais sem considerar o contexto histórico - nesse sentido é que a adaptação dos mitos não serve, que é um 'desserviço'. Mas teve algumas coisas no texto original que eu retirei ou modifiquei exatamente por achar sexista (por isso está escrito 'traduzido e adaptado'); tipo dizer que o deus precisava de uma mulher "para iluminar" o lugar ou que o autor estava falando dos deuses "como uma dona de casa fofoqueira".
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outubro 30, 2014

Como um cabrito no leite

Esta semana o pai de uma helena faleceu. Um poeta comprometido com a pólis, as Musas e os deuses. Não pude deixar de pensar nos órficos ao fazer um rito por ele, com incenso grego em grãos de ópio, libação de mel por uma doce passagem, lanterna de vela na parede para iluminar o caminho, estola nos ombros, altares estratégicos e uma série de fórmulas que deixou o ambiente com uma energia sublime. Além disso, o cenário era um pôr-do-sol, e ele se põe na direção da janela de onde eu estava. Apolo Pythio completou a cerimônia com um breve oráculo para a família.


Há uma famosa inscrição encontrada em lâminas douradas em túmulos de Thurii, Hipponium, Thessalia e Creta (século IV AEC e seguintes) dando instruções aos mortos. Quando o falecido chega no submundo, ele encontra obstáculos a confrontar, como o de não beber do rio Lethe (Esquecimento) próximo aos ciprestes brancos e sim do poço de Mnemosine (Memória). Ele também deve se apresentar aos guardiões do pós-morte dizendo "Sou filho da Terra e do céu estrelado. Estou seco de sede e estou morrendo; mas rapidamente me concedam água fria do Lago da Memória para beber." Porém, além deste, outros textos órficos me vieram à mente.

A tábua dourada órfica de Pelinna traz o seguinte: "Agora você morreu e agora você nasceu, três vezes abençoado, neste dia. Diga a Perséfone que o próprio Baco te libertou. Um touro você correu ao leite. Rapidamente, você correu ao leite. Um carneiro você caiu dentro do leite. Você tem o vinho como sua honra fortunada. E os ritos esperam você abaixo da terra, assim como os outros abençoados." E a tábua dourada órfica de Thurii diz assim: "Rejubile-se na experiência! Você nunca experimentou isso antes. Você se tornou divino em vez de mortal. Você caiu como um cabrito no leite. Saudação, saudação, enquanto viajas na noite através do Prado Sagrado e dos Bosques de Perséfone."   

Edward Butler interpreta esse motivo recorrente assim: o slogan órfico "Um cabrito, eu caí no leite" seria como dizer que fui jogado em um mundo não de minha criação, mas que descobri que foi feito de significados. Não seria uma questão de interpretar nossa própria vida, mas que nos tornamos um "fenômeno" a ser interpretado por outros. É isso que um herói é, um mortal que se tornou um campo de significados. Essa não-indiferença do mundo também está na base das representações da "ama mística" de animais. Lá, porém, a bacante provém leite para uma alma representada como um jovem animal selvagem. Isso sugere tanto que, ao nos tornarmos iluminados, nos tornamos uma luz para outros, e também que trazemos à luz as partes não-desenvolvidas de nós mesmos. Portanto, as descrições do iniciado como "límpido" não são mero entusiasmo, o iniciado é como um novo Phanes.

A isso, Sannion respondeu: "o universo no qual esses mitos se desenrolam é fundamentalmente um universo trágico – até os deuses experimentam vicissitudes, então o homem não tem esperança de escapar delas. Mais que isso, devemos usar o conflito que inevitavelmente enfrentaremos para aperfeiçoar a nós mesmos e enobrecer nossos espíritos. Devemos passar através do pesar até o júbilo, deixando queimar tudo o que for falso e inútil dentro de nós – você não consegue alcançar um senão pelo outro. Devemos encontrar o divino no monstruoso, o profano no sagrado, sermos destruídos para conhecer a medida completa da vida – somente quando estamos no limite, sem nada mais a perder e nenhum pensamento pelo qual poderíamos ganhar, seremos verdadeiramente livres, verdadeiramente vivos. A filosofia heróica é a que Orfeu ensinou aos gregos; como sofrer bem e ansiar pela morte."

E então o Mr. VI (do blog Cold Albion) acrescentou: "Como filho da terra e do céu estrelado, o iniciado é elevado na morte – todos os heróis estão mortos afinal, voltando para interceder e conectar; rostos familiares como máscaras nas quais podemos ver nossa própria semelhança e reconhecer nossa natureza como mortais daimonicamente imortais."

Para mim, cair como um cabrito no leite é como mergulhar na fonte da qual você bebia, é imergir na totalidade do elemento que te dava vida, tornar-se um com aquilo que te alimentava. A energia divina te impregna e você "se tornou divino em vez de mortal", ao alcançar os bosques sagrados e receber a honra de ter vinho e leite libados em sua memória. "Três vezes abençoado" como o Dioniso trinascido, você encontra seu elemento e ganha nova vida. Isso é uma das coisas que acontecem quando trilhamos os caminhos órficos e dionisíacos.

Quanto ao nosso amigo, espero que beba da ciência dos deuses, livre das dores e limitações do corpo físico, e possa repetir que "o próprio Baco me libertou"...


(Fontes -
http://thehouseofvines.com/2014/09/07/all-the-good-stuff-is-real-but-isnt-myself-included
http://thehouseofvines.com/2014/09/07/orphic-rap-battle/
http://www.cold-albion.net/2014/09/orphic-slogan-thoughts/ e
http://isites.harvard.edu/fs/docs/icb.topic212431.files/The_Orphic_Lamellae.pdf)

outubro 24, 2014

Os 5 Sólidos Platônicos

"E quando, depois de se despir do seu corpo mortal, 
você chegar no mais puro éter,
você deverá ser um deus." (Pitágoras)

Hoje recebi um conjunto de sólidos platônicos em ametista, que encomendei, e resolvi vir aqui explicá-los. Eles aparecem no diálogo Teeteto, onde Platão afirma que só existem cinco sólidos tridimensionais uniformes regulares. Timeu, personagem em outro diálogo de Platão, associa esses sólidos aos elementos. Esses sólidos também são citados na obra Elementos, livro XIII, de Euclides.


Os pitagóricos acreditavam que o Universo e tudo nele é construído usando os sólidos platônicos. Em pequena escala, muitas moléculas têm as formas dos sólidos platônicos; em larga escala, o próprio universo parece ter sido construído usando a geometria desses sólidos. O que isso quer dizer? Que nosso universo é uma matriz fractal, elencada do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. 

Esses sólidos são cinco formas geométricas que têm lados, arestas e ângulos congruentes. Seus lados têm a mesma forma geométrica e cada ponto tem a mesma distância do centro. São eles o Tetraedro, o Cubo (Hexaedro), o Octaedro, o Icosaedro e o Dodecaedro. O cubo tem um quadrado em cada lado, o tetraedro, o octaedro e o icosaedro possuem triângulos em cada lado, e o dodecaedro tem um pentágono em cada um dos seus doze lados. Os vértices desses cinco poliedros são as mais simétricas distribuições de 4, 6, 8, 12 e 20 pontos em uma esfera (respectivamente: tetraedro, octaedro, cubo, icosaedro, dodecaedro). 

Para os pitagóricos, o universo era composto de quatro elementos: fogo (radiação), terra (sólido), ar (gasoso) e água (líquido). Essas partículas estariam nos poliedros platônicos, a saber: o agudo Tetraedo era conotado com o elemento fogo (pyr=fogo, 'pyramis' era outro nome para o tetraedro, de onde vem 'pirâmide'), o Cubo com o elemento terra (estabilidade de suas bases quadradas, das quatro direções), o Octaedro com o ar (intermediário entre o fogo e a água) e o Icosaedro com a água (a água é o mais denso e mais penetrante dos elementos fluidos, como o icosaedro é o maior dos quatro primeiros sólidos). O planeta Terra seria cercado por um desses sólidos, que é cercado por outro, e assim por diante. Ou seja, a grade de linhas e vértices eletro-magnéticos da Terra é composta de grades menores, cada uma na forma de um sólido platônico diferente. Por exemplo, se você desenha uma diagonal em cada face do cubo a fim de elas se unirem num canto, você forma um tetraedro. 

Mas há um quinto sólido, o dodecaedro, que é o poliedro mais difícil de construir, porque o desenho do pentágono requer uma aplicação elaborada do Teorema de Pitágoras. O elemento que estaria na forma do dodecaedro é o Éter, o espírito divino. O éter é a fonte de todas as coisas que surgem no Espaço e Tempo, e é ele que circunda a Terra e todos os outros quatro sólidos combinados. Diz-se que, entre os pitagóricos, a alusão e mesmo a pronúncia do nome do “Dodecaedro” (o mais sagrado de todos os poliedros, que encerrava as mais importantes chaves numérico-cosmogônicas) eram rigorosamente proibidos fora do recinto interno. Referiam-se a ele como "esse Deus usado no delineamento do universo" (a palavra grega no Timeu traduzida como "delineamento" é 'diazographein', pintura semelhante à vida) e como "a construção que Deus usou para tecer as constelações no céu". Aristóteles também postulou que os céus eram feitos de um quinto elemento, que ele chamava de 'aithêr' (éter). O icosaedro e o dodecaedro geometricamente formariam um par, pois cada um cria o outro a partir do centro de suas faces.

O cubo seria o homem terrestre, de ângulos retos. Nos elementos voltados para o interior (água, fogo e ar), os poliedros contêm triângulos, ou seja, figuras geométricas cujos ângulos são agudos (virados para dentro). Quando o homem se abre para o cosmo e o infinito, temos o dodecaedro, de ângulos obtusos (108º), o homem celestial.

Os sólidos platônicos também encerram curiosidades numéricas. Por exemplo: 
# A soma dos ângulos das quatro faces do tetraedro (fogo) é 720. A velocidade do sistema solar é 7200 km/h, 72 graus existem entre cada ponto do pentagrama, é preciso 72 anos para a precessão dos equinócios mudar um grau, 720 = 1 × 2 × 3 × 4 × 5 × 6, a temperatura ambiente em Fahrenheit é 72, 72 é o número médio de batidas do coração de um adulto em repouso, a duração da vida de um óvulo é 72 horas, na Cabala há 72 nomes para deus, entre muitas outras observações. 
# A soma dos ângulos dos oito lados do octaedro (ar) é 1440. Há 1440 minutos em um dia, 144=12x12 (há 12 horas no relógio, 12 signos do zodíaco, 12 deuses olimpianos), 144 é um número de Fibonacci com relação com a razão áurea, há 144000 dias no ciclo baktun do calendário maia etc. Cristais de fluorita normalmente são octaedros.
# A soma dos ângulos dos lados do cubo (terra) é 2160. 2160 é o número de anos numa Era Zodiacal, 2160 é o diâmetro da lua em milhas, 2160 é metade de 4320 (em média, o coração humano bate 4320 vezes numa hora e a contagem das respirações dá-nos a cifra de 18 vezes por minuto, o que totaliza 4320 vezes em 4 horas), a soma total de triângulos elementares - equiláteros e isósceles (no caso do Cubo) - contidos nos sólidos correspondentes aos 4 Elementos é 120 + 48 + 24 + 24 = 216, etc. Em 430 AEC, o oráculo de Delfos instruiu os atenienses a dobrar o volume do altar cúbico de Apolo sem alterar seu formato, um problema considerado de impossível solução se usássemos apenas a geometria euclidiana.
# A soma dos ângulos do icosaedro (água) é 3600. 360 graus é um ângulo redondo, 36 é o grau interior de cada ângulo do pentagrama, 36 deuses participaram da criação do primeiro humano num mito maori, há 36 tattvas descrevendo o absoluto no shivanismo, 36 velas são acesas no chanucá judeu, bem como 36 justos em cada geração, 36/3=12 (que já falamos acima) etc. As arestas opostas de um icosaedro formam retângulos de seção áurea. 
# A soma dos ângulos do dodecaedro (éter) é 6480. 6+4+8+0=18 (36/2). A distância entre os vértices no mesmo lado não conectado por uma aresta é φ (número áureo) vezes o comprimento da aresta, o centro de cada lado do dodecaedro forma três retângulos áureos intersectos. Já falamos sobre o 12 dos seus 12 lados, mas acrescentamos que o dodecaedro também representava as 12 notas da escala musical (as 7 naturais + os 5 sustenidos). Há diversos tipos de dodecaedro, mas preste atenção para não ser feito de "tolo" com o piritoedro (dodecaedro com faces pentagonais idênticas porém irregulares, com simetria tetraédrica, como as do cristal pirita, o famoso "ouro de tolo"), vale a pena pesquisar.
# A soma dos graus dos ângulos da totalidade dos sólidos fundamentais é 14.400. Este valor multiplicado por três é igual a 43.200 - a centésima parte de um composto dos 4 Yugas. 40 “dias filosóficos” designam um período de purgação alquímica, o Dilúvio - ou “purificação pelas Águas” - teve a duração de 40 dias, é de 40 dias o tempo estimado para qualquer “quarentena” depois de um surto epidêmico, a quaresma tem a duração de 40 dias e culmina com um “renascimento espiritual”. Também já falamos desse número no octaedro.
# A soma de triângulo com quadrilátero e pentágono (3+4+5)=12, número de faces do dodecaedro, o contenedor da 5ª Essência geradora dos 4 Elementos (e o único poliedro regular no qual todos os outros se inscrevem). O Dodecaedro, considerado como o símbolo por excelência da Harmonia Cósmica por Platão (cuja reverência por Pitágoras era bem evidente), representa a amplificação da potência da “Razão Áurea” presente em todo o Universo. Esta proporção (de 1,618) mantém uma íntima relação com a chamada “Música das Esferas” ou “Harmonia das Esferas”, também um conceito de Pitágoras. 

Iâmblico diz que Hipaso, um pitagórico, morreu no mar porque ficou se gabando de ter sido o primeiro a divulgar sobre "a esfera dos doze pentágonos", o dodecaedro. O dodecaedro era usado como dado, inclusive em sistemas oraculares, de adivinhação. Vários dodecaedros ocos de bronze foram encontrados em ruínas romanas da era helenística. Nos RPGs modernos também são utilizados dados de doze lados. Em Aberdeenshire, na Escócia, um grupo de pedras com o formato dos cinco sólidos, de mais de 4.000 anos de idade, foi encontrado em círculos de pedras.

Nós somos homens terrestres (cubo) que precisam se voltar para dentro (tetraedro, octaedro, icosaedro) a fim de se conhecerem para encontrar o seu eu celestial (dodecaedro). Ter a representação dos sólidos platônicos no altar é mais uma maneira de nos lembrarmos do "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses".


outubro 22, 2014

Tornar-se quem se é


Quando Urano não saía de cima de Gaia, isso causava a ela desconforto. O caçula, Cronos, utilizou então uma foice para cortar o membro do pai, separando o Céu da Terra, como temos hoje. Nesse intervalo entre o céu e a terra, existe o tempo e o espaço. É aí que as gerações se sucedem, que a vida ganha um começo, meio e fim. Uma vida que acaba para outra começar. Essas coisas só são possíveis no tempo e no espaço, e quem proporcionou isso foi Cronos. 

Como atacou o pai, tinha medo dos filhos, e os engolia. Ele estava numa posição confortável e não queria mais mudanças. Aquele que tinha sido subversivo com o pai Urano, tornou-­se um conservador, pois temia as alterações que ameaçassem sua soberania. Por isso que cometia as atrocidades de engolir os filhos. É assim que costumamos ver a mudança: dependendo da posição que ocupamos, do conforto que temos, do prazer que nos dá estar no lugar que estamos. Entendemos a mudança como boa ou ruim dependendo dos nossos interesses e desejos.

Mas Gaia deu-­lhe uma pedra no lugar do caçula, e assim salvou-­se Zeus, que libertou os irmãos. Mais tarde, Zeus também temeu a mudança, engolindo Métis quando esta estava grávida de Atena. Esta também deu um jeito e nasceu da cabeça do pai.

Só que Zeus fez diferente de Cronos. Zeus distribuiu o mundo entre seus correligionários. Assim, a ordem universal passou a ser baseada na justiça de dar a cada um o que lhe é devido. Zeus restabeleceu a ordem. Ninguém ficou de fora, todos tinham uma função, uma finalidade, um papel, de dependência recíproca. Agora viver bem é viver em harmonia com a ordem universal.

Cabe a nós encontrarmos o nosso lugar natural, onde desempenharemos nossa finalidade, pois, se vivermos em desarmonia com o todo, o todo sofre e nós também sofremos. E esse lugar tem a ver com o que faz nos sentirmos bem, com o nosso talento, com a nossa natureza, com a nossa aptidão. O universo espera que sejamos felizes com o que temos de melhor, de mais excelente.

Por isso é importante nos conhecermos, para saber nosso encaixe no todo. “Conhece-­te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses”. Quando fazemos apenas o que for preciso, se entramos num emprego 'nada-a-ver' só porque é onde tem vaga, não estamos alinhados com o nosso talento natural, e isso afeta a saúde (ordem, harmonia) do grupo inteiro. Para haver um cosmo harmônico e uma convivência feliz, os membros do cosmo também precisam estar em harmonia. “Em cima como embaixo”. O macrocosmo e o microcosmo são reflexo um do outro.

O filósofo mais conhecido com relação à mudança é Heráclito, aquele que diz que tudo flui, que nada é permanente, tudo se transforma em algo diferente, tudo deixa de ser, o tempo todo. É o cara que disse “não te banharás duas vezes no mesmo rio”, pois ou o rio mudou ou você mudou. A água é outra, a temperatura é outra, a força da correnteza é outra, sua vida se transformou... Você e o rio são dois entes em fluxo permanente, e seu encontro é sempre inédito. Somos sempre iludidos pela possibilidade de permanência: achamos que nosso cônjuge é o mesmo, a aula daquele professor é a mesma, a plantinha da varanda é a mesma, pois a mudança neles é mais sutil.

Existe uma alegoria da rã (triste, por sinal), que conta sobre uma rã que está na panela com água à temperatura ambiente, e que o cozinheiro vai aumentando aos poucos, levemente, a ponto de a rã não perceber a discreta mudança, mas no final já foi cozida e nem se deu conta. Muitas vezes acontece assim conosco. Estamos tão acostumados no dia­a­dia que nem percebemos que passaram­-se 10 anos e ficamos acostumados a acreditar que conhecemos onde estamos como a palma da nossa mão, que está tudo confortável e seguro, como sempre foi... até a água ferver. E aí percebemos tarde demais que já nos transformamos e nem soubemos lidar com isso.

Algumas das principais condições para uma mudança sadia (harmônica, ordenada) é o diálogo, como fazia Sócrates. Ele partia da premissa do “nada sei” e tentava dar uma definição ao conhecido, só para acabar percebendo que aquilo não era o que pensávamos antes. Todo aquele que está disposto a dialogar, está também disposto a mudar – o pensamento, a alma etc. Para dialogar, é preciso saber ouvir. Ouvir e considerar o que se ouviu. Considerar e admitir quando o argumento superar o seu próprio. Às vezes dói perceber que estávamos equivocados e que o outro possuía uma percepção que não tínhamos. Nascer uma nova ideia é como um parto – a arte da maiêutica. Um parto é angustiante e exige esforço, disposição, sacrifício. Mas traz benefícios. Assim é a mudança.

Para Aristóteles, toda matéria é uma potência, uma possibilidade. A determinação é que converte a matéria em forma, a potência em ato. Como um bloco de mármore que vira escultura. A matéria é o mármore, a estátua é a forma. Tudo o que existe é potência virando ato. Todos nós somos possibilidades. Precisamos atualizar com excelência ('areté') nossas potencialidades. Quando fazemos coisas para as quais não temos aptidão, nos curvando ao mediano em vez do excelente, desrespeitamos nossas potencialidades, nossos talentos. O que temos que saber é de mármore somos feitos e que escultura queremos virar.

(Texto adaptado de anotações de vídeo-aulas sobre Gestão e Mudança, do 
Prof. Clóvis de Barros Filho, graduado em direito, jornalismo e filosofia, 
com mestrado e doutorado em direito e doutorado em comunicação.)

agosto 19, 2014

'Meditação Sobre a Lua'

Aldous Huxley tem um texto criticando as filosofias excludentes que afirmam que uma coisa são apenas uma coisa e não outra, sem considerar a multiplicidade do ser e suas mudanças. Ele explica isso com o exemplo da lua, de uma forma mitopoética permeada de lógica e filosofia - a lua não é só uma pedra, mas também uma deusa. Sua luz numinosa se lança do céu sobre nós. Segue a tradução do que escreve Huxley: 



MEDITAÇÃO SOBRE A LUA 
por Aldous Huxley (1931), tradução da Álex (2014)

Materialismo e mentalismo - as filosofias do 'nada além.' O quão extremamente familiar nos tornamos com aquele 'nada além de espaço, tempo, matéria e movimento', que 'nada além de sexo', que 'nada além de economia'! E o não menos ignorante 'nada além de espírito', 'nada além da consciência', 'nada além de psicologia' - o quão tedioso e cansativo eles também são!O 'nada além' é tão maligno quanto idiota. Falta generosidade. Chega disso. É hora de dizer novamente, com o primitivo senso comum (mas por razões melhores) , 'não só, mas também'.

Do lado de fora da minha janela, a noite está se esforçando para acordar; na luz da lua, o jardim escurecido sonha tão vividamente com suas cores perdidas que as rosas negras são quase carmim, as árvores permanecem em expectativa no limiar de um verde vívido. O parapeito do terraço branco e límpido brilha contra o céu azul-escuro. (O oasis jaz ali embaixo e, além da última das palmeiras, é aquilo o deserto?) Os muros brancos da casa friamente reverberam a radiação lunar. (Devo me virar para olhar as dolomitas se erguendo nuas para fora das longas ladeiras de neve?) A lua está cheia. E não só cheia, mas também linda. E não só linda, mas também...

Sócrates foi acusado por seus inimigos de ter afirmado, hereticamente, que a lua era uma pedra. Ele negou a acusação. Todos os homens, disse ele, sabiam que a lua é uma deusa, e ele concordava com todos os homens. Como resposta à filosofia materialista do 'nada além', sua réplica foi sensível e até científica. Mais sensível e científica, por exemplo, que a réplica inventada por D. H. Lawrence em seu estranho livro, tão verdadeira em sua substância psicológica, tão absurda, muito frequentemente, em sua forma pseudo-científica, Fantasia do Inconsciente. 'A lua', escreve Lawrence 'certamente não é um nevoso mundo gélido, como se o nosso mundo tivesse ficado frio. Baboseira. Ela é um globo de substância dinâmica, como rádio ou fósforo, coagulada sobre um vívido polo de energia'. A falha nessa afirmação é que ela se revela demonstrativamente falsa. A lua certamente não é feita de rádio ou fósforo. A lua é, materialmente, 'uma pedra'. Lawrence estava irritado (e com razão) com os filósofos do nada-além que insistiam que a lua era apenas uma pedra. Ele sabia que era algo mais; ele tinha a certeza empírica de seu profundo significado e importância. Mas ele tentou explicar esse fato empiricamente estabelecido com os termos errados, em termos de matéria e não de espírito. Dizer que a lua é feita de rádio é bobagem. Mas dizer, como Sócrates, que ela é feita de algo divino é bastante acurado. Pois não há nada, claro, que impeça a lua de ser tanto uma pedra quanto uma deusa. A evidência para sua mineralidade pode ser encontrada em qualquer enciclopédia infantil. É uma convicção absoluta. Não menos convincente, porém, é a evidência para a divindade da lua. Ela pode ser extraída de nossas próprias experiências, dos escritos dos poetas, e, fragmentalmente, até de certos livros-textos de fisiologia e medicina.

Mas o que é essa 'divindade'? Como devemos definir um 'deus'? Expressado em termos psicológicos (que são primários - sem nada por trás), um deus é algo que nos dá a peculiar espécie de sentimento que o Professor Otto chamou de 'numinoso' (do latim 'numen', um ser sobrenatural). Sentimentos numinosos são a coisa divina original, da qual a mente que elabora teorias extrai os deuses individualizados dos panteões, os vários atributos do Uno. Uma vez formulada, uma teoria evoca, por sua vez, sentimentos numinosos. Portanto, o terror dos homens em face do universo enigmamente perigoso os leva a postular a existência de deuses irritados; e, mais tarde, pensar sobre esses deuses irritados os fazia sentir terror, mesmo quando o universo não lhes dava qualquer motivo para alarde no momento. Emoção, racionalização, emoção - o processo é circular e contínuo. A vida religiosa do homem trabalha no princípio de um sistema de água quente.

A lua é uma pedra; mas é uma pedra altamente numinosa. Ou, para ser mais preciso, é uma pedra sobre a qual e por causa da qual homens e mulheres têm sentimentos numinosos. Portanto, há um suave luar que pode nos dar uma paz que fica além da nossa compreensão. Há um luar que inspira uma espécie de assombro. Há um frio e austero luar que conta à alma de sua solidão e desesperado isolamento, seu significado ou sua falta de clareza. Há um liar amoroso instigando a amar - a amar não só um indivíduo, mas às vezes até o universo inteiro. Mas a lua brilha no corpo assim como dentro da mente, através das janelas dos olhos. Ela afeta a alma diretamente; mas pode afetá-la também por obscuros e sinuosos caminhos - através do sangue. Metade da raça humana vive em manifesta obediência ao ritmo lunar; e há evidências que demonstram que o fisiológico e consequentemente a vida espiritual, não apenas de mulheres, mas também de homens, misteriosamente mingua e cresce com as mudanças da lua. Há alegrias irracionais, tristezas inexplicáveis, risos e remorsos sem causa aparente. Suas repentinas e fantásticas alternações constituem o clima comum de nossas mentes. Esses humores - dos quais os mais gravemente numinosos podem ser hipostasiadas como deuses, os mais leves, se desejarmos, como duendes e fadas - são os filhos do samgue e dos fluidos. Mas o sangue e os fluidos obedecem, entre muitos outros mestres, a mutável lua. Tocando a alma diretamente através dos olhos e, indiretamente, junto aos canais escuros do sangue, a lua é duplamente uma divindade. Até os cachorros e lobos, a julgar pelo menos por seus uivos noturnos, parecem sentir, de alguma obscura maneira bestial, uma espécie de numinosa emoção com a lua cheia. Ártemis, a deusa das coisas selvagens, é identificada em mitologia posterior com Selene.

Mesmo se pensarmos na lua como apenas uma pedra, devemos achar sua própria mineralidade como potencialmente um numen. Uma pedra que ficou fria. Uma pedra sem ar e sem água e a imagem profética de nossa própria terra quando, a alguns milhões de anos de agora, o senescente sol tiver perdido seu atual poder de proteção... E por aí vai. Esta passagem poderia facilmente ser prolongada - um Estudo em Púrpura. Mas me abstenho. Deixo cada leitor pousar o quanto da cor retórica real ele achar de seu gosto. De qualquer modo, púrpura ou não púrpura, a pedra é pedregosa. Você não consegue pensar nisso por muito tempo sem se ver invadido por um ou outro de vários sentimentos essencialmente numinosos. Esses semtimentos pertencem a um ou outro de dois grupos contrastantes e complementares. O nome da primeira família é Sentimentos de Insignificância Humana, o nome da segunda é Sentimentos de Grandeza Humana. Ao meditar na abandonada pedra flutuando lá no abismo, você pode se sentir mais numinosamente um verme, abjeto e fútil em frente a imensidões completamente incompreensíveis. "O silêncio desses espaços infinitos me amedrontam". 

Você pode se sentir como Pascal se sentiu. Ou, alternativamente, se sentir como M. Paul Valery disse que se sentia: "O silêncio desses espaços infinitos não me amedronta". Pois o espetáculo dessa pedregosa e astronômica lua não necessariamente precisa fazer você se sentir um verme. Ele pode, ao contrário, fazer você se rejubilar exultantemente em sua condição humana. Lá flutua a pedra, o símbolo mais próximo e mais familiar de todos os horrores astronômicos; mas os astrônomos que descobriram esses horrores de espaço e tempo eram homens. O universo lança um desafio ao espírito humano; a despeito de sua insignificância e abjeção, o homem aceita. A pedra nos fita da escuridão sem fim, um 'memento mori' [lembrança da mortalidade]. Mas o fato de sabermos se tratar de um 'momento mori' justifica sentirmos um certo orgulho humano. Temos direito a nossos humores de sóbria exultação.

janeiro 30, 2014

Lua Negra ou Lua Nova?

Dentre as fases da lua, a lua cheia e os seus efeitos são os mais fáceis de se perceber. A lua negra já é mais sutil, embora seja tão poderosa quanto.


Enquanto a lua cheia dura um dia, a lua negra corresponde a três. No primeiro e no último desses três dias, existe uma minúscula faixa de lua (mesmo que só visível com equipamento adequado). Apenas no segundo dia, é que a lua realmente 'desaparece', e esse é o verdadeiro dia de lua negra, o dia limítrofe entre uma coisa e outra, um momento fora do tempo.

Chamar a lua negra de “lua nova” não é muito preciso e leva a muitas confusões. A lua nova seria o terceiro dia da lua negra. Pode-se achar que é uma questão de nomenclatura e que não precisamos ser tão acurados com reação à ausência de lua visível no céu, mas isso só será verdade se você não se interessar por (ou for incapaz de sentir) as energias sutis que afetam o planeta e nossas vidas nesse período. Mas, caso se interesse e/ou seja perceptivo, notará que se tratam de dois momentos distintos.

Na Grécia Antiga, o dia da lua negra era dedicado à deusa Hécate, e seu Deipnon (jantar/ceia) sagrado era celebrado naquele dia, o que ainda é feito pelos praticantes de hoje. Mas o dia “certo” não é uma questão de interesse apenas para os helênicos. 

Alguns dias do calendário são uma questão de escolha mútua em uma comunidade, de uma convenção social. Por exemplo, o Ano Novo cai em dias diferentes em culturas diferentes (ano novo do calendário gregoriano, ano novo judeu, chinês, helênico, hindu etc). As fases da lua, no entanto, não dependem da opinião popular.

A lua negra não é um dia de novos começos (não é lua “nova”). A noite de lua negra é um momento fronteiriço, ausente de tempo cronológico, no qual pensamentos e ações dirigidos para fora têm pouco efeito, mas quando a alquimia interna é poderosa. Para aqueles que desejam a refrescância dos novos começos, a lua nova (ou seja, o terceiro dia de lua negra) é o dia mais prático e sensível para essa abordagem. A lua negra de verdade é um dia para se voltar para dentro, para ficar em silêncio, e para se 'preparar' para a ação, e não para 'iniciar' alguma nova ação.

Não faz mal chamar a lua negra de lua nova (até porque teríamos que prestar atenção em qual dos 3 dias ela está), mas se você quiser mesmo experimentar e fazer fluir as energias certas que tenham um efeito real na sua vida, é bom compreender as sutilezas e os poderes naturais dessa diferença.

janeiro 25, 2014

Uma breve introdução sobre Kharis (Reciprocidade)

Pediram-me para ensinar sobre Kharis, então pensei que isso poderia ser útil para mais pessoas do que apenas uma resposta particular. Então, como fazia Sócrates, vamos primeiro definir as coisas antes de falar delas...
χάρις (kháris ou cháris) 
I. no sentido objetivo, graça ou favor visível;
beleza, propriedade de pessoas em seus retratos;
graça de coisas, de trabalhos;
glória.
II. no sentido subjetivo, graça ou favor sentido, seja pela parte de quem o faz quanto de quem o recebe;
da parte de quem faz - graça, gentileza, boa vontade, direcionada a alguém;
da parte de quem recebe, senso de favor recebido, agradecimento, gratidão por algo, reconhecer um favor, sentir-se grato.
III. no sentido concreto, um favor feito ou retornado, um benefício/bênção;
conferir um favor a alguém, fazer algo para favorecê-lo (e compeli-lo a cumprir um acordo);
retornar um favor;
pedir a retribuição, um retorno por algo que se recebeu;
concessão feita de forma legal;
favores prestados.
IV. gratificação, deleite.
V. [em referência a divindades] devida homenagem a eles, a seu culto, majestade;
ação de graças, presente em comum.
VI. usos especiais: retorno pelo favor de alguém, para agradá-lo, pelo bem dele;
por causa de alguém, para contentar o coração de alguém;
VII. metaforicamente: do cipreste, de alguma espécie de mirto/murta;
de sal;
Charis, esposa de Hefesto;
no plural Chárites, as Graças, três em número, usado também como um elogio; acompanhantes de Afrodite, pareadas com as Musas;
cultuadas em Orchomenus na Beócia, mas em Lacedaemon e Atenas apenas duas eram cultuadas, em evocações. 
(definições do Liddel & Scott 'Intermediate Greek-English Lexicon', traduzido pela Álex)

A religião grega antiga era mais baseada na ortopraxia (prática correta) do que na ortodoxia (crença correta). Martin Nilsson, em "Greek Folk Religion" (traduzido pelo nosso grupo AQUI) já citava que a devoção dos antigos era expressa principalmente por atos. 

O ritual grego pode quase sempre ser classificado como uma expressão de 'kharis', de reciprocidade. Walter Burkert, em "Greek Religion", diz que "O laço entre o homem e o sagrado é consumado na contínua troca de presente por presente" - aqui o original traz "gift for gift", que poderíamos traduzir "dom por presente" se considerarmos que recebemos graças dos deuses e lhes retribuímos com mimos.

Algumas pessoas podem entender esse processo de forma equivocada como uma forma crua de "pagamento" por uma boa sorte recebida, mas a kharis é algo bem mais sutil e de mais longo prazo do que isso. Simon Price, em "Religions of the Ancient Greeks", afirma que "o sistema ritual grego assumia uma escolha de ambos os lados. Presentes aos deuses não era uma maneira de comprar os deuses, mas sim de criar uma boa-vontade (disposição, afeição) da qual os humanos poderiam esperar se beneficiar no futuro". Assim como você dá presentes a quem você gosta para agradá-lo/a sem ser aniversário dele/a nem nada, e esse ato cria um laço amável e recíproco entre vocês, assim fazemos coisas para agradar aos deuses sabendo que eles também nos darão coisas legais quando for a hora certa.

Às vezes o povo acha que, por os deuses nos conhecerem internamente, eles saberiam que gostamos deles e não precisaríamos demonstrar isso externamente, visivelmente. Isso é uma ideia totalmente moderna (e provavelmente de gente preguiçosa, egoísta e acomodada), que foi influenciada pelo cristianismo. Os antigos sempre foram pessoas de atitude, de coisas reais, palpáveis, tangíveis. Se você está sempre ocupado demais para dar atenção, não quer gastar dinheiro com presentes, manda outra pessoa comprar uma lembrancinha por você, seu cônjuge/amigo/parente vai acabar te deixando. São nossos atos que tornam nossa devoção real - e não mero sentimento de crença. Afinal, os deuses não nos concedem apenas bons sentimentos, eles nos presenteiam com coisas reais também, então por que seriam obrigados a aceitar apenas sentimentos em troca? Seria negligência nossa ignorar isso.

E o que podemos ofertar? Carne, frutas, bolos, refeições especiais, coroas de flores, mechas de cabelo, incenso... Burkert menciona que o ato de oferta mais difundido/conhecido é espalhar um grão de incenso de olíbano ('frankincense') nas chamas. Em termo de ofertas líquidas, as libações de azeite, mel, vinho, água, leite, além de outras bebidas mais modernas. Além das ofertas perecíveis, existem também as ofertas votivas (como cumprimento de um voto ou como presente devocional), que incluem estatuetas dos deuses ou de seus animais, tripodes, vasos, tecidos, anéis, armaduras, máscaras, frascos de óleo, taças, relevos, fitas, cristais, coisas com os símbolos sagrados deles etc - como disse William Rouse em "Greek Votive Offerings": "Não há nada no mundo que não possa se tornar uma oferta votiva". 

O ritual no helenismo é algo bem simples, não precisa de uma série de palavras mágicas especiais, nem de penduricalhos e utensílios caros, nem de um monte de gente cada um com um papel a desempenhar. Lave as mãos, acenda a vela, jogue cevada no altar, leia um hino, faça uma oferta. Fazer alguma coisa visualmente bonita já vale muito, sem precisar de discursos e roupas estilosas junto. Pode-se incluir tudo isso se lhe agradar e se lhe ajudar a se concentrar, mas não é exigência. Provavelmente os antigos sacaram que o importante é poder fazer algo em qualquer lugar, sem ter que esperar ter dinheiro ou tempo para ir comprar algo, sem ter que passar dias se preparando etc. 

Além de através do ritual, pode-se desenvolver Kharis através do relacionamento com os deuses. Os deuses são reais, não são abstrações ou conceitos. Eles testemunham nossas vidas e nos permitem que testemunhemos as deles, mesmo se isso for além da nossa compreensão e com as nossas limitações de percepção do mundo. Atividades devocionais incluem escrever hinos, dançar, praticar esportes, preservar o ambiente, entre outras coisas, dependendo da deidade a quem se dirigem. Marcel Detienne e Giulia Sissa, em "The Daily Life of the Greek Gods", escreveram: "A crença grega incorporava tudo que era devido aos deuses: sacrifícios, preces, hinos, danças, purificações, ou seja, todos os 'ritos' - as práticas reconhecidas, as quais estavam em conformidade com o que se aparentava dizer ou fazer... Mas 'crença nos deuses' também significava que alguém vivia com eles, tinha negócios com eles, procurava a companhia deles. Socializar com os deuses, cultivá-los, em ambos os sentidos da expressão - tanto de devotar um culto a eles quanto de manter relações amigáveis com eles - frequentando seus altares, se dando bem com os poderes divinos: todas essas coisas eram maneiras senso-comum de dizer que a gente acreditava nos deuses, que lidávamos com eles socialmente". Drew Campbell, em "Old Stones, New Temples" também diz que as pessoas usavam a linguagem do ritual, da arte, da poesia, da música e da dança para expressar seu maravilhamento e gratidão aos deuses gregos. Ele acrescenta que "nossas ofertas de primeiros-frutos, nossas libações, são nosso próprio jeito de dizer o que os Helenos sempre disseram aos deuses: 'Por favor' e 'Obrigado'". 

E essas coisas são muito boas! Por isso que vamos terminar este texto indo para as fontes antigas, nesta citação de Plutarco: "nenhuma visita nos deleita mais do que aquelas a santuários, nenhuma ocasião é mais agradável do que a dos festivais, nada que fazemos ou vemos é mais doce do que nossas ações e visões diante dos deuses, quando tomamos parte em cerimônias e danças". 

(Referência: "Kharis - Hellenic Polytheism Explored", de Sarah Kate Istra Winter. Todos os trechos citados foram traduzidos do inglês pela Alexandra.)


Outras postagens de blogs helênicos que falam de Kharis, em inglês:

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