outubro 30, 2014

Como um cabrito no leite

Esta semana o pai de uma helena faleceu. Um poeta comprometido com a pólis, as Musas e os deuses. Não pude deixar de pensar nos órficos ao fazer um rito por ele, com incenso grego em grãos de ópio, libação de mel por uma doce passagem, lanterna de vela na parede para iluminar o caminho, estola nos ombros, altares estratégicos e uma série de fórmulas que deixou o ambiente com uma energia sublime. Além disso, o cenário era um pôr-do-sol, e ele se põe na direção da janela de onde eu estava. Apolo Pythio completou a cerimônia com um breve oráculo para a família.


Há uma famosa inscrição encontrada em lâminas douradas em túmulos de Thurii, Hipponium, Thessalia e Creta (século IV AEC e seguintes) dando instruções aos mortos. Quando o falecido chega no submundo, ele encontra obstáculos a confrontar, como o de não beber do rio Lethe (Esquecimento) próximo aos ciprestes brancos e sim do poço de Mnemosine (Memória). Ele também deve se apresentar aos guardiões do pós-morte dizendo "Sou filho da Terra e do céu estrelado. Estou seco de sede e estou morrendo; mas rapidamente me concedam água fria do Lago da Memória para beber." Porém, além deste, outros textos órficos me vieram à mente.

A tábua dourada órfica de Pelinna traz o seguinte: "Agora você morreu e agora você nasceu, três vezes abençoado, neste dia. Diga a Perséfone que o próprio Baco te libertou. Um touro você correu ao leite. Rapidamente, você correu ao leite. Um carneiro você caiu dentro do leite. Você tem o vinho como sua honra fortunada. E os ritos esperam você abaixo da terra, assim como os outros abençoados." E a tábua dourada órfica de Thurii diz assim: "Rejubile-se na experiência! Você nunca experimentou isso antes. Você se tornou divino em vez de mortal. Você caiu como um cabrito no leite. Saudação, saudação, enquanto viajas na noite através do Prado Sagrado e dos Bosques de Perséfone."   

Edward Butler interpreta esse motivo recorrente assim: o slogan órfico "Um cabrito, eu caí no leite" seria como dizer que fui jogado em um mundo não de minha criação, mas que descobri que foi feito de significados. Não seria uma questão de interpretar nossa própria vida, mas que nos tornamos um "fenômeno" a ser interpretado por outros. É isso que um herói é, um mortal que se tornou um campo de significados. Essa não-indiferença do mundo também está na base das representações da "ama mística" de animais. Lá, porém, a bacante provém leite para uma alma representada como um jovem animal selvagem. Isso sugere tanto que, ao nos tornarmos iluminados, nos tornamos uma luz para outros, e também que trazemos à luz as partes não-desenvolvidas de nós mesmos. Portanto, as descrições do iniciado como "límpido" não são mero entusiasmo, o iniciado é como um novo Phanes.

A isso, Sannion respondeu: "o universo no qual esses mitos se desenrolam é fundamentalmente um universo trágico – até os deuses experimentam vicissitudes, então o homem não tem esperança de escapar delas. Mais que isso, devemos usar o conflito que inevitavelmente enfrentaremos para aperfeiçoar a nós mesmos e enobrecer nossos espíritos. Devemos passar através do pesar até o júbilo, deixando queimar tudo o que for falso e inútil dentro de nós – você não consegue alcançar um senão pelo outro. Devemos encontrar o divino no monstruoso, o profano no sagrado, sermos destruídos para conhecer a medida completa da vida – somente quando estamos no limite, sem nada mais a perder e nenhum pensamento pelo qual poderíamos ganhar, seremos verdadeiramente livres, verdadeiramente vivos. A filosofia heróica é a que Orfeu ensinou aos gregos; como sofrer bem e ansiar pela morte."

E então o Mr. VI (do blog Cold Albion) acrescentou: "Como filho da terra e do céu estrelado, o iniciado é elevado na morte – todos os heróis estão mortos afinal, voltando para interceder e conectar; rostos familiares como máscaras nas quais podemos ver nossa própria semelhança e reconhecer nossa natureza como mortais daimonicamente imortais."

Para mim, cair como um cabrito no leite é como mergulhar na fonte da qual você bebia, é imergir na totalidade do elemento que te dava vida, tornar-se um com aquilo que te alimentava. A energia divina te impregna e você "se tornou divino em vez de mortal", ao alcançar os bosques sagrados e receber a honra de ter vinho e leite libados em sua memória. "Três vezes abençoado" como o Dioniso trinascido, você encontra seu elemento e ganha nova vida. Isso é uma das coisas que acontecem quando trilhamos os caminhos órficos e dionisíacos.

Quanto ao nosso amigo, espero que beba da ciência dos deuses, livre das dores e limitações do corpo físico, e possa repetir que "o próprio Baco me libertou"...


(Fontes -
http://thehouseofvines.com/2014/09/07/all-the-good-stuff-is-real-but-isnt-myself-included
http://thehouseofvines.com/2014/09/07/orphic-rap-battle/
http://www.cold-albion.net/2014/09/orphic-slogan-thoughts/ e
http://isites.harvard.edu/fs/docs/icb.topic212431.files/The_Orphic_Lamellae.pdf)

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