novembro 19, 2014

Em defesa de Hades

Por Dawn Black, traduzido e adaptado pela Alexandra:

Quando recontam o mito da abdução de Perséfone, normalmente o fazem de uma forma limitada e um tanto equivocada.

Primeiro, Hades não é o belzebu grego. Ele não governa um inferno. Os helenos não associam a morte com o mal. A morte é algo que acontece com todo mundo, não importa o quão bom ou mau alguém é ou quantas coisas boas ou ruins lhe aconteceram.

Segundo, se ele rege o submundo para onde vão os mortos, não é porque ele gosta de gente morta ou porque ele é cruel e sinistro. Ele ganhou essa função quando Zeus, Poseidon e ele tiraram na sorte quem iria ficar com qual reino (Céu, Mar, Submundo). Ou seja, foi pelo acaso de um sorteio, não propriamente por afinidade.

OK, é verdade que os antigos se aproximavam dele com cuidado, evitando jurar em seu nome e chamando-o por apelidos para não atrair sua atenção, porque ninguém estava com pressa em morrer. Mas Hades não é a morte (a morte é Thanatos), Hades não mata e nem ordena a morte (isso fariam as Moiras). E, apesar de presidir as punições dos que fizeram algo errado, não é ele quem julga também (os juízes são Minos, Radamantis e Éaco, e algumas pessoas que cometem crimes graves vão direto para o Tártaro sem passar por eles). 

Coitado, é como se Hades fosse um gerente que tivesse que lidar com os clientes que lhe culpam pela burocracia que já existia antes de ele assumir o posto. 

De acordo com muitos relatos, Hades é bastante ‘relax’, ‘de boa’. Um dos seus apelidos é “o hospitaleiro”, afinal é sua função prover hospitalidade aos mortos, e ele faz isso muito bem. Ele não parece ter um temperamento tão forte quanto o de seus irmãos Poseidon e Zeus, e só se registrou ele ficando bem irritado umas poucas vezes, tipo quando Pirithous tentou sequestrar Perséfone (e está amarrado numa cadeira até hoje) ou quando pessoas interferiam com as práticas funerárias. De fato, na maioria das vezes ele parece bastante tranquilo, inclusive aceitando acordos de trocar uma alma pela outra ou mesmo soltando almas ocasionalmente (tipo Eurídice), embora isso nunca tenha funcionado muito bem. 

Então, temos um cara num emprego difícil, vivendo no escuro e cercado de lamentadores, seria legal ter uma companheira por perto. Ele sai procurando e escolhe Perséfone. E aí, senhoras e senhores, aí ele pergunta a Zeus se pode. Ele faz o que sempre se fez: pediu a permissão do pai da garota. Pode ser que Zeus não seja pai de Perséfone, mas ele é o rei dela e serve. Zeus diz tipo ‘vai fundo’ e ele diz a Hades que este vai ter que agarrá-la às escondidas, porque Deméter é uma daquelas mães helicopterizadas; daí eles pedem ajuda à vovó Gaia e ela ajuda de bom grado a conseguir que a garota ficasse sozinha para que ele pudesse apanhá-la e levá-la para casa.

Vejam isso aconteceu num mundo no qual os homens tomavam esposas como espólio de guerra e isso era normal e OK. No mundo celta também era normal, os homens roubavam o gado do pai e pediam de resgate a filha. Não se consultava a moça.

Uma das coisas que dá nos nervos na língua inglesa é chamarem o rapto (“rapt”) de Perséfone de estupro (“rape”). Não sabemos se isso aconteceu, se ela consentiu ou não, o mito não fala o que ele fez com ela quando chegaram na casa dele. O mito só fala da abdução, do arrebatamento ("rapture"). Hoje em dia ‘arrebatamento’ está associado com júbilo e movimento para cima, não para baixo, mas com certeza isso é influência cristã. O arrebatamento tem a ver com ser transportada para outro plano, não necessariamente o céu e a felicidade.

Até então, todas as ações de Hades com relação a Perséfone foram compreensíveis e não foi a pior coisa que poderia ter acontecido a ela. A coisa incomum mesmo foi a reação de Deméter. OK, não saber onde Perséfone estava e se preocupar foi perfeitamente normal, o que foi incomum foi sua recusa a aceitar o par, mesmo depois de vários outros deuses lhe encorajarem a aceitar, dizendo que Perséfone poderia estar em situação pior do que estar com o Governante de Muitos. Pode ser que fosse legal Hades ter falado com ela, mas ele é atado ao seu reino, a responsabilidade de lidar com Deméter no Olimpo é de Zeus.

Será que Deméter teria recusado a oferta de casamento se lhe dessem escolha? Provavelmente. Não porque Hades fosse um mau partido, mas porque Deméter é um olimpiana e Hades é do submundo, o que significaria que ela não iria mais ver Perséfone com ela morando lá com ele. Ela não a poderia visitar, ao menos que um psicopompo como Hécate ou Hermes a escoltasse e com a permissão de ambos os reis. Apenas alguns deuses tiveram passagem livre para transitar entre os reinos. Mãe e filha não se veriam mais.

Essa situação difícil de Deméter não era incomum no mundo antigo. Os pais davam as filhas em casamento, os maridos as levavam para longe e às vezes as mães não as viam mais. Era comum naquela cultura. E as mães lamentavam sim. Mas quando as mortais lamentavam, isso não resultava na fome mundial.

Perséfone também estava infeliz como milhões de garotas ficavam ao serem levadas da família e arredores para viver com um estranho num lugar estranho. No mundo em que vivemos, estamos tão mal-acostumados que nosso ultraje é um luxo. Como muitas, ela teria que se ajustar e talvez aprender a amar seu novo par e sua vida e (agora como poucas) aprender a abraçar sua impressionante posição como Anfitriã de Muitos, Rainha do Submundo. Esse é um título bem legal.

E, de acordo com todos os relatos, foi o que ela fez. Hades a traiu algumas vezes (ao que sabemos, duas) e ela as transformou em plantas e teve um cacho de filhos com pessoas que não eram ele, mas isso me parece um relacionamento divino normal. Talvez até mais saudável do que o de Zeus com Hera e de Afrodite com Hefesto (espero não ser atingido por um raio ao dizer isso).

E quanto a romã? Hades lhe deu antes de ela voltar para Deméter, com medo de que sua mãe não deixasse sua esposa legítima voltar para ele. Mas ela sabia que isso significaria que ela teria que voltar? E, se sabia, ele a forçou? Como se força alguém a comer? Pode ser que ela soubesse e quisesse voltar ou pode ser que ela fosse tão jovem e inocente que não soubesse o que significaria comer no submundo. A romã é a chave da questão se Perséfone se apaixonou ou não por Hades naquele ponto. E esse momento foi um bom tempo depois da abdução. Talvez nunca saberemos.

Claro que estou conjeturando e sei que os deuses não precisam da minha defesa, mas os mitos talvez precisem. É um desserviço quando feminimizamos os mitos, dando mais poder a Perséfone, transformando Hades num vilão maligno ou num cara charmoso e misterioso sedutor, ou ignorando as regras sobre quem pode ou não pode cruzar fronteiras. É preciso considerar a cultura, porque se ignorarmos ou removermos o contexto desses relatos, podemos perder o x da questão. Há verdade nesses mitos, afinal nos interessamos por eles, mas encontraremos muito menos se nossa visão for turvada pelo preconceito moderno ocidental. 

( Fonte: http://blog.sacredhearth.com/2014/10/in-defense-of-hades-a-closer-look-at-the-abduction-of-persephone/ )

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Nota da Tradução: Na hora de trazer para a nossa vida atual, claro que temos que ajustar às conquistas que tivemos, mas o que não podemos é julgar (e condenar) com olhos atuais sem considerar o contexto histórico - nesse sentido é que a adaptação dos mitos não serve, que é um 'desserviço'. Mas teve algumas coisas no texto original que eu retirei ou modifiquei exatamente por achar sexista (por isso está escrito 'traduzido e adaptado'); tipo dizer que o deus precisava de uma mulher "para iluminar" o lugar ou que o autor estava falando dos deuses "como uma dona de casa fofoqueira".
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