dezembro 25, 2009

Os mitos da Heliogenna

Nos dias que envolvem o solstício do final de ano (inverno para a Grécia e verão para o Brasil), há a celebração moderna da Heliogenna, sugerida inicialmente para 9 dias, mas também adaptada para 3, 2 ou 1 dias. A explicação do festival você pode ler lá no site, clicando AQUI. Mas o que eu gostaria de falar nesta postagem é sobre os mitos.

Vendo o que se celebra, percebemos principalmente Hélio, Faetonte, Selene, Éos, Hécate, Hades e Perséfone. Então embora a ligação entre Hélio (sol), seu filho Faetonte (brilhante), Selene (lua) e Éos (aurora) seja mais óbvia, algumas pessoas poderiam perguntar o que os demais têm a ver com eles. Hécate, a do toucado cintilante, talvez seja mais fácil, por ela ser uma das filhas da noite e deusa da lua, carregando uma tocha. Mas esses deuses também têm mitos em comum, que vamos já saber. Também vamos perceber que é curioso não termos Ártemis incluída na Heliogenna, mesmo ela sendo considerada uma deusa lunar e figurando nos mitos correspondentes. Embora, se incluíssemos Ártemis, tivéssemos que trazer o solar Apolo também. Provavelmente não fazemos isso por conta de ser um festival dirigido a deuses de gerações anteriores à geração deles.

Seguem os breves relatos:

Hélio-Hades-Perséfone-Hécate

Em certo sentido, o deus do submundo Hades ("o invisível, o que dá a invisibilidade") parece muito mais um reverso de Hélio ("o visível, o que torna visível") do que do deus celeste Zeus. Quando Hades raptou Core, que assim virou Perséfone, ela gritou por ajuda, mas ninguém ouviu, exceto Hécate, na sua caverna, e Hélio. Depois o eco de sua voz alcançou sua mãe Deméter. Por nove dias ela andou pela terra com duas tochas nas mãos, à procura da filha. Na terceira manhã, Hécate - também com uma tocha - lhe trouxe notícias, dizendo que ouviu o grito, mas não ouviu quem tinha sido. Deméter perguntou então a Hélio e este lhe disse o que aconteceu. Aí vem todo um enorme relato de Deméter deixando o Olimpo e punindo a terra com a ausência de colheitas, e Iambe e Metanira em sua estada em Eleusis etc, que não cabe agora, e sim em outro festival. Quando Perséfone reencontra sua mãe, elas ficam abraçadas e, em seguida, vem Hécate acolher Perséfone também, passando a ser companheira delas.

Hélio-Hécate-Perséfone

A mãe de Hélio, Téia, recebia presentes de ouro, como Perséfone. A esposa de Hélio, Perse ou Perseida (com quem teve quatro filhos), era um outro nome de Hécate, "deusa que brilha amplamente". Perséfone também poderia ser uma forma mais cerimoniosa de Perse. Outra amada do deus-sol era Neera, "a nova", ou seja, a lua nova, em sua fase mais escura. Com ela, Hélio teve duas filhas. Com Climene (também chamada de Merope, "a de face virada", referência ao eclipse), ele teve sete filhas e um filho, Faetonte.

Hélio-Faetonte

Faetonte era um jovem deus do sol que uma manhã subiu no carro do pai, ergueu-se alto demais e caiu, à semelhança da estrela-da-manhã que se levanta muito cedo e logo desaparece. Ele caiu no rio Erídano e, às suas margens, suas irmãs solares o prantearam. De suas lágrimas surgiu o âmbar.

Hélio-Selene-Hécate-(Ártemis)

Hélio era irmão de Selene e de Éos. O nome Selene está ligado à palavra "selas" (luz) e "mene" (feminino de "men", que significa lua, o mês lunar). Com Zeus ela teve Pândia, "a que brilha inteiramente, a inteiramente brilhante", referência à lua cheia. Selene e Hélio eram tão fraternais quanto Ártemis e Apolo, nunca se casando entre si. Aliás, Apolo e Ártemis tinham um epíteto de Hécaton e Hécate, respectivamente, o que nos liga de novo a Hécate, "a distante", embora ela seja uma das deusas mais próximas da humanidade - como a lua é mais próxima da terra do que os planetas. A história de Ártemis como deusa da lua crescente, fechando o trio Selene-Hécate-Ártemis, parece se dever mais ao fato de ela ter um arco, que lembra o crescente, e ser irmã do solar Apolo, já que isso não se aplicava à Ártemis Táuria, Arcadiana ou Efésia.

Hélio-Éos-Selene-(Ártemis)

Éos é a deusa da manhã, da aurora, a deusa do trono de ouro, e outro reverso feminino do sol, sendo uma irmã mais selvagem e turbulenta do que Selene, visto que as histórias de amor de Éos eram mais apaixonadas que as da própria deusa da lua. Dos jovens que ela amou, muitas vezes só se conhece o nome. Em uma das histórias, ela disputou Céfalo com a esposa dele, Prócris, uma heroína que tinha características lunares. Em uma ilha grega, contava-se que Céfalo se uniu a uma ursa, animal associado a Ártemis. Pode ser que Céfalo ("cabeça") seja a cabeça da constelação de Órion, outro amado por Ártemis e Éos.

[Consultas: livro "Os Deuses Gregos", de Karl Kerényi, e Theoi project.]

Espero que, além de fazer conhecer os mitos, isso auxilie as pessoas a não verem os deuses apenas como personificações (ainda mais tão diretas), como se houvesse apenas um deus para cada coisa no mundo ou que cada deus só regesse um único domínio da realidade...

dezembro 16, 2009

Coisas que me dão raiva (parte 1)

Hoje estava conversando com o Thiago sobre uma manifestação dos helênicos da Grécia em agosto passado e resolvi falar aqui sobre isso, já que nem todos leram as notícias relativas ao desrespeito dos cristãos gregos com as outras crenças. (Tudo bem que o assunto surgiu porque vimos um sujeito lindinho no vídeo e resolvemos assistir com mais atenção, rsrsrs!)

Cerca de 200 pessoas, incluindo cineastas, escritores, editores, músicos famosos, se reuniram em frente ao Museu da Acrópole a convite da YSEE (Supremo Conselho dos Gentis Helenos) para denunciar a intervenção da igreja cristã ortodoxa grega na cultura, com suas censuras que causaram desastres nas estátuas.

Já tínhamos comentado no fórum, na época, sobre a depredação do Parthenon, quando Costas Gavras fez um filme sobre a história do Parthenon, onde cenas (que foram sumariamente deletadas) mostravam como os cristãos esmagaram e devastaram decorações esculpidas lá para transformar o templo em igreja por acharem que nas estátuas dos deuses residiam demônios a serem destruídos. A civilização helênica pré-cristã era tachada de "maligna" e "merecedora de ser incendiada e lançada ao chão". Isso são fatos incontestáveis, que ninguém pode negar que aconteceram, embora os ortodoxos fanáticos neguem. Escolas de filosofia foram fechadas, vários livros foram incinerados por monges e bispos, e em muitas igrejas gregas de hoje você vê em suas paredes fragmentos de antigos templos demolidos. O líder da igreja cristã ortodoxa oriental pediu inclusive que o Parthenon fosse convertido a uma igreja cristã para que a celebração do seu jubileu fosse "mais glorioso". No berço da democracia não há sequer liberdade religiosa, e provavelmente a Grécia é o único país da Europa a agir assim, sem um Estado laico, já que o Ministro da Educação é também o Ministro dos Assuntos Religiosos.

Mas, voltando a hoje, o que nos irritou foi o que assistimos no vídeo de uma manifestação feita diante do Museu da Acrópole, pedindo que parassem essa teocracia. O povo fez máscaras superlegais, e fez uma imagem chocante de uma cabeça de estátua chorando sangue. Porque uma das coisas que eles mostram foi como os cristãos entalharam uma cruz na testa e no queixo de uma estátua de Afrodite, destruindo assim uma obra de arte, o item 1762 do museu.

Isso é uma falta de respeito absurda, não só à crença e liberdade de expressão religiosa de outros seres humanos, mas também à arte (à subjetividade, à criatividade, à estética), à criação individual do artista, querendo misturar domínios diferentes da esfera humana e impor o seu.

Quem quiser ver o vídeo, o link é este: www.youtube.com/watch?v=QqsMZJG6xJc e as fotos da manifestação estão aqui: diamartyriaakropoli.

Ainda que o protesto tenha sido há 4 meses, essa é uma questão que já acontece há anos e continua acontecendo e está sendo bem difícil de mudar. Acho que todos se lembram do rolo que foi nas Olimpíadas de 2004 na Grécia, quando fizeram bonequinhos ridículos com nomes de deuses como mascotes e botaram um líder ortodoxo na abertura (onde desfilava-se a história dos jogos que começaram com Zeus) para "reforçar" que aquela parte pré-cristã era tudo mitologia etc e tal.

Sou uma pessoa calma, paciente, mas nunca injusta ou desumanamente passiva. Como diria Milton Nascimento, "não posso, não devo e quero viver como toda essa gente insiste em viver, e não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal".

Fica a minha indignação. Amo a Grécia Antiga, mas a atitude dos líderes de 98% de cristãos da Grécia moderna me dá raiva.

dezembro 07, 2009

Acreditar e ser grata

Um dia desse eu estava conversando sobre esse negócio de explicação racional pras coisas... Desde a época em que fui fazer psicologia que algumas amigas se preocuparam em me ver perdendo a para ficar com a ciência, como se fossem incompatíveis. O fato é que, mesmo que você pense que tudo tem explicacao, chega uma hora em que, destrinchando as explicações ao nível mais elementar, em algum momento a explicação vai se limitar a um "é assim porque é assim". E quem fez ser assim?

E mais: se eu escuto algo de um filme que alguém deixou ligado e pensei que era alma, mesmo assim o fato de eu ter ouvido exatamente aquele trecho em particular não poderia ser uma mensagem pra mim em vez de mera coincidência? Talvez o que Jung chama de 'sincronicidade'.

Claro que, se vem um freudiano ou outro ser do tipo, diria "foi sua mente que projetou", mas, se eu não mando na minha mente (como aprendemos das feridas narcísicas), quem manda? Se fazemos coisas que não queremos, se dizemos que "não era eu, não sei o que me deu" porque o inconsciente tinha guardado e vieram à tona, por que algumas coisas ficam e outras não? E por que nos sonhos me surgem coisas que aparecem do nada depois, no dia que as sonhei? Mesmo que cheguemos à explicação dos arquétipos, não tem muita diferença uma marca-antiga (arquétipo) de um deus interior compartilhado.

Aqui eu poderia seguir falando da diferença entre 'tudo ter uma explicação' e 'tudo ter um motivo', mas não vou. Não quero teorizar agora, quero compartilhar experiências.

Eu já tentei não acreditar no que alguns chamam de coisas "esquizotéricas", até porque eu não vejo materializações de espíritos e porque tem muita coisa que me aconteceu que eu saberia facilmente explicar dentro das ciências não-ocultas, mas então me lembro de todas as outras que eu não explico/entendo e me volto novamente para o fato de que me sinto melhor acreditando. Sabe por quê? Porque não me sinto ingrata!

Tem coisas que são 'coincidência' demais, então ignorá-las me parece uma espécie de ingratidão. Imagina se você compra um presente para alguém e a pessoa vira para você e diz "ah, apenas coincidiu de você ter dinheiro e eu estar precisando e consequentemente gostar de ganhar" em vez de ela achar legal você ter se lembrado dela e comprado exatamente o que ela queria... Eu não quero dar uma de mal-agradecida com os deuses/ancestrais/daimons/etc que colocam as coisas no meu caminho.

Acredito que, mesmo que eu abandonasse o politeísmo, provavelmente ainda assim eu seria de algo dos moldes da conscienciologia, que não acredita em deuses mas acredita na consciência eterna, que você tem a mesma consciência que fica reencarnando e a qual é capaz de fazer muitas coisas sobrenaturais/inexplicáveis. E o engraçado é que eles não acreditam que um ser superior criou isso, é como se a consciência tivesse aparecido da evolução/ordem natural ou existisse desde sempre e pronto. Para algumas pessoas que conheço, é incompativel a ideia de um ateu que acredite em reencarnação, mas eu acho que compreendi o mote deles nesse aspecto.

Mas, enfim, o fato é que a vida sem um quê de mistério não faria sentido. A gente só comeria, dormiria, procriaria e bateria ponto no trabalho. Sem nada levar nem nada deixar. Que graça teria isso? Eu prefiro ser tomada por supersticiosa do que por uma ingrata descrente e desprovida de intuição e instinto. É uma escolha minha, um valor que carrego e, para mim, uma virtude.

Álex

IMAGEM: 'Pandora', de Jules Joseph Lefebvre (1882).