maio 27, 2010

Os bisavós do mar

No Mounykhion 21 (dia 6 de maio deste ano) tivemos o sacrifício aos Tritopatores, espíritos ancestrais benevolentes. Queria ter postado sobre eles no dia, mas sempre é bom não deixar passar as coisas e ainda poder aproveitá-las nos próximos anos, então resolvi falar assim mesmo.

Os Patroios/Patroia são os deuses que recebem culto em uma nação ou família desde a época de seus antepassados ou, algumas vezes, tratam-se dos próprios ancestrais1. Zeus era, portanto, um "theos patrôios" em Atenas e também entre os heróis que traçavam sua genealogia com Ele fazendo parte de sua origem2.

Havia um santuário aos misteriosos Tritopatores/Tritopatreis (que pode significar 'bisavós' - três vezes pais), do lado de fora dos portões Dipylon da Acrópolis, ao lado do riacho Eridano, onde se eram feitas preces pedindo pelas crianças da família. Esse lugar era dedicado provavelmente aos espíritos ancestrais cultuados pelos atenienses ou aos espíritos do vento citados no mito órfico. Outra interpretação possível do nome dos Tritopatores seria 'aqueles que têm Tritão como pai', ou seja, os "sereios" (o masculino de 'sereia' é 'tritão'), conectando-os também a Atena, que era conhecida por Homero como Tritogenia (nascida de Tritão). De qualquer forma, eles estariam associados com a água, já que seu santuário ficava perto de um riacho, e há especulações sobre terem formas serpentinas - lembrando Erictônio/Ericteu/Cécrops, um homem com cauda de serpente. Os Tritopatores eram benevolentes e eram frequentes nos cultos menores com fortes raízes locais que floresceram na antiguidade3.

Você pode fazer uma prece aos Tritopatores se lembrando de como tem sido sua relação com seus antepassados e suas terras. Li uma bem bonita sobre o mar e um ancestral marinheiro/pescador, que continha um trecho o qual traduzo aqui:

Eu me dirijo a ele (ou ela) como posso, linha após linha, canção após canção; mas meu jeito de pensar nas coisas nunca é exatamente o jeito que tudo acontece, tão arrebatador é o som das coisas mais úmidas, tão ressonante é a voz de minha mãe perto do mar chamando alto meu nome. [...] Teu seja o trovão, a pesca que trago na mão; possa o meu caminho errante em bom senso e decência ser a quilha pela qual tu ainda navegas.4

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1 Luciano de Samósata - A Morte do Peregrino, 36 - "Então ele pediu incenso para jogar no fogo, [...] e -fitando o sul, disse: 'Espíritos de minha mãe e meu pai, recebam-me favoravelmente'."
2 Apolodoros - A Biblioteca, 2.8.4 - "...eles fizeram três altares para Zeus Paterno, e sacrificaram neles".
3 John Pollard - Seers Shrines and Sirens: The Greek Religious Revolution in the Sixth Century BC - traduzido e adaptado.
4 Brendan MacOdrum, 2 de novembro de 2006 - Prayer to Tritopatores - Ver completa em inglês clicando AQUI.

maio 09, 2010

Miasma e Catarse

Sugeriram-me falar sobre o Miasma, já que muitos ainda confundem tanto ele quanto a Hybris com uma noção de "pecado" que não cabe nesses conceitos, visto que o miasma é um termo sem peso moral, algo bem mais metafisicamente complexo do que uma transgressão que gera "culpa" - como entendemos o pecado. Miasma é uma poluição, contaminação, mas essa "poluição" a que o miasma se refere não necessariamente tem a ver com "sujeira", assim como "purificar-se" não é exatamente "se limpar".

Portanto, reunindo leituras que fiz de postagens da Eleuthera (2), do Ruadhan e outras fontes (livros e companhia), fiz um apanhado breve e geral aqui para vocês.

Antes de tudo, convém lembrarmos que há vários tipos de miasma: o do corpo (como doenças e morte), o da alma (como impiedade, vícios, crimes e a hybris), o da casa (como misérias, desgraças, calamidades), o da cidade (como pragas, injustiça, desastres naturais), o do planeta (como febres, epidemias).

Há também diversas causas do miasma, todas referentes à perturbação da lei natural e a mudanças da ordem da vida na Terra: contato com agentes estranhos (espíritos de gente assassinada, espíritos de pessoas que morreram com miasma, almas que não receberam os ritos fúnebres); contato com o nascimento ou com a morte natural; contato com certas ações criminosas ou injustas; contato com lugares que passaram por eventos trágicos ou violentos ou sacrílegos; ou resultado de ações que desagradaram aos deuses.

A lei natural é representada por Themis. Sempre que ela é transgredida, aparece Nemesis, sua antítese. As filhas de Nemesis - Erínias - são as agentes do miasma, trazendo consigo a ira.

Isso acontece porque é preciso haver justiça, ou seja, se existem ações criminosas, elas devem gerar reações recíprocas para o equilíbrio e a equidade. Então, realizamos a Catarse (purificação) para nos reconciliar com os agentes sobrenaturais que poderiam nos punir, assim como para nos purificar dos efeitos físicos que o miasma provoca.

A Catarse [Katharsis] pode acontecer através de: purificações menores e anteriores às preces/ritos (como lavar as mãos e rosto, tornar a água lustral etc); purificações após o contato com o parto ou a morte de alguém; purificação da atmosfera de algum lugar; expulsão de agentes de miasma; purificação através de curas e remédios; purificação da alma em forma de música e dança; purificação de uma casa e seus membros; purificação de uma vítima de crime violento; purificação de alguém que matou sem intenção; purificação da alma para fins de culto; rituais específicos de purificação (Diasia, Thargelia etc).

Vamos ver então miasmas e catarses específicos de cada caso:

1) Morte natural - os olhos e boca do cadáver ficam fechados e o corpo dele é lavado com água do mar ou salgada (se houver feridas de morte violenta, elas devem ser limpas e cobertas); os parentes do morto devem ser purificados antes dos ritos fúnebres e depois que o período de luto passar (mulheres grávidas não podem ter contato com o corpo do morto); visitantes devem se purificar após sair do velório (lavando suas mãos em água salubre ou lustral que esteja do lado de fora da porta da casa); a casa deve ser purificada com água do mar três dias depois da morte; o suprimento de água da casa deve ser trocado e o fogo do altar deve ficar apagado e só será aceso novamente no terceiro dia de catarse; o morto pode receber ovos e comidas no túmulo (ovos têm enxofre, que é bom para expulsar miasma).

2) Parto - nem a mãe nem o bebê são fontes de miasma, e sim o ato de nascer é que tem tais propriedades, então o lugar onde ele ocorre é tratado da mesma forma como o do caso acima, com algumas diferenças: a casa é purificada no quinto, no décimo e no quadragésimo dia após o nascimento; as pessoas que tiverem contato com a mãe nos cinco primeiros dias também precisarão se purificar.

3) Intercurso Sexual - esse é um miasma de natureza menor e costumava se relacionar mais aos fluidos masculinos do que aos femininos. Deve-se tomar banho antes de se apresentar diante dos deuses para preces/ofertas/ritos. No caso de crimes sexuais, cujo miasma era maior, o ritual era outro, com detalhes ainda desconhecidos, mas acredita-se que consistia de sacrifícios no templo de Apolo.

4) Assassinato - o pior dos miasmas, que não vinha apenas como punição ao assassino, mas também à sua família, descendentes e até à cidade de residência dele. É por isso que assassinos eram exilados, pois o contato com ele poderia levar à infertilidade das pessoas, animais e plantações. Com relação ao local do crime, temos o exemplo de quando Odisseu limpa sua casa (com enxofre e fogo) do miasma de ter matado os pretendentes de Penélope. Outra forma de purificação é pelo sacrifício ritual de um Pharmakos (bode-expiatório). Neste caso, a catarse tinha dois momentos: primeiro o assassino teria que ser liberto dos desejos de vingança da alma do assassinato, depois teria que ser purificado do miasma do próprio crime.

5) Lar - como o miasma afetava famílias e gerações e atraía coisas ruins para o lar, e como às vezes o parto e a morte aconteciam na casa, esta precisava ser purificada.

6) Terra/Água/Atmosfera - os helenos se preocupavam com a harmonia entre alma, corpo e meio-ambiente, então as condições sanitárias da cidade e do planeta também nos importam. Acreditava-se que certos lamaçais, brejos e pântanos continham propriedades de miasma e causavam febre nas pessoas dali, assim como se acreditava que usar a mesma água usada por alguém com miasma poluiria a outra pessoa também. Pragas e epidemias eram resultado de miasma na atmosfera, então se deveria acender fogueiras com unguentos de cheiro doce e coroas de flores para purificar o ar.

[ Abrindo um parênteses aqui, é bom ressaltar que menstruação NÃO é miasma, a quantidade de sangue presente num fluxo (que combina mais pedaços de tecido e mucos do que sangue) às vezes é maior que o sangue que sai de um corte acidental no dedo. Essa ideia de impureza relacionada a coisas femininas veio de séculos de influência judaico-cristã, que não estavam presentes no helenismo. O que recomenda-se é: no caso de cortar o dedo, lave a ferida, faça preces a Asclépio, bote um band-aid e esqueça; no caso de menstruação, tome um banho relaxante, troque seu absorvente/tampão/toalhinha, faça preces a Higéia e Réia e esqueça. Siga então para o seu ritual tranquila. ]

É verdade que os partos no mundo antigo não eram tão esterilizados como hoje, assim como os ritos fúnebres não deveriam ser muito higiênicos e que, em compensação, hoje a gente provavelmente polui muito mais o meio-ambiente. No entanto, miasma não significa falta de higiene e catarse não significa limpeza do corpo.

Ainda assim, não há razão para se apavorar com a questão do miasma a ponto de achar que não pode fazer nada e tem que parar com todos seus rituais por medo de estar impuro. Tente olhar pelo lado da saúde, do equilíbrio e da justiça, de uma forma bem prática.

Para cada tipo de miasma há uma maneira de se realizar catarse, e não existe nenhuma pessoa ou crime que não possa ser purificado.

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PS.: A Sarinha já falou dos pensamentos dela sobre o miasma, clique AQUI para ler.