dezembro 23, 2012

Formas de Devoção


Existem dois conceitos hindus que li num livro de bhakti yoga que servem para várias crenças religiosas e que trouxe para compartilhar com vocês.

O primeiro é com relação a como nos aproximamos da deidade. Diz-se que existem cinco tipos de "bhavas":

  • No Shanta, você se aproxima do deus com uma mente pacífica e plácida (é o nível mais elevado de 'bhava', o da paz). Exemplo: o personagem Bhishma no épico Mahabharata.
  • No Dasya, você se aproxima do deus como um servo. Exemplo: Hanuman no épico Ramayana, que era devoto de Rama.
  • No Sakhya, você se aproxima do deus como um amigo. Exemplo: Arjuna com Krishna no Mahabharata.
  • No Batsalya, você se aproxima do deus como um filho. Exemplo: Yosoda com Krishna.
  • E no Madhura, você se aproxima do deus como um amante. Exemplo: Radha com Krishna, humanos como Chaitanya Deva (santo hindu e reformista social), Jay Deva (poeta do Gita Govinda), Mirabai (santa hindu e poetisa), e o próprio Jesus que pregava o amor e falava da igreja como a esposa do cristo.

Apesar de termos exemplos literários de cada tipo, não precisamos utilizar só um deles, podemos ter uma relação com deus que se mistura a de um amante, um amigo, um filho etc. Mas, ainda assim, essa visão é útil para tentarmos observar como cada grupo se coloca. Poderíamos pensar que nas religiões afro se pratica mais o Batsalya, já que as pessoas dali são "filhos" de orixás. E serve também para analisarmos os nossos próprios helenos conhecidos. Será que Odisseu não se encaixaria no Sakhya em sua relação com Atena? E as/os amantes mortais (voluntárias/os) dos deuses não estariam praticando o Madhura? Já pensou com qual desses 'bhavas' você se identifica mais?

O outro conceito diz respeito aos caminhos de devoção. Existem seis tipos de "bhakti":

  • No Sravana, ouvimos, lemos, assistimos filmes sobre as glórias e manifestações da deidade. Assim como os muçulmanos acreditam que ouvir/ler o Alcorão ajuda alguém a se tornar devoto verdadeiro de Alá. É a melhor forma de 'bhakti' para as pessoas comuns. 
  • No Kirtana, cantamos, pois a poesia e a música têm um impacto na mente, que se afeta profundamente ao se cantar as glórias da deidade. Essa é uma parte essencial da religião sikh, e do vaishnavismo, no qual os devotos cantam o nome de Krishna no maha-mantra.
  • No Smarana, nos lembramos da deidade, com sentimentos divinos constantes e meditação contínua. É a forma mais elevada de 'bhakti'.
  • No Padasevana, servimos aos pés da deidade, como fez a deusa Parvati aos pés de Shiva e a deusa Lakshmi aos pés de Vishnu. Uma vez que não enxergamos os deuses, a alternativa seria servir aos pés de uma estatueta ou - melhor ainda - servir aos seres humanos e ao universo como uma manifestação de uma deidade escondida.
  • No Archana, prestamos culto à deidade através de um símbolo ou de uma estátua ou mentalmente. Nesse caso, existe o perigo de se degenerar para a idolatria e para um ritualismo mecânico.
  • E no Vandana, prostramo-nos (deitamo-nos) diante do símbolo ou da estatueta da deidade.

Para nós helenos, caberia-nos no princípio os tipos Sravana e Archana, depois procuraríamos desenvolver o Padasevana com os seres humanos (como uma 'xenia' aos mortais para refletir uma 'charis' com os deuses), sendo que poderíamos incluir também o Kirtana, e - claro - tentaríamos alcançar o Smarana. O Vandana seria relizado apenas com os deuses ctônicos.

Porém, que fique claro que a profundidade desses conceitos dentro do hinduísmo não é transferível para o helenismo, estou apenas utilizando-os de uma forma didática aqui. Até porque conheço apenas a definição de cada um, sem grandes implicações, portanto não se faz necessário sequer decorarmos esses nomes, uma vez que não pertencem à nossa crença.

Seria apenas o caso de refletirmos sobre o nosso tipo de prática de um modo um pouco mais comparativo "teologicamente". Espero que isso fique compreendido, e que essas informações que achei tão interessantes tenham sido úteis também para vocês.

E, já que estamos no ritmo da teologia comparada, vamos ficar com um pouco de Rumi (poeta persa muçulmano), que provavelmente praticava o Madhura:


"Ruínas
são lindas
quando tocadas
pelo Sol dourado.

Assim também, o coração partido
se torna lindo

como um espelho despedaçado captura
e expande dentro dos milhares 
um único

raio de luz..."

(Rumi, século XIII)


outubro 12, 2012

Cobrir para Revelar


Há um certo movimento entre os politeístas, especialmente em honra a Héstia, mas também a outras deusas (Hera, Afrodite, Perséfone...), de mulheres cobrindo a cabeça com véus, lenços, bandanas etc. Isso tem raízes históricas e motivos diversos. Ainda assim, é importante lembrar logo no começo deste texto, que o véu não é um requisito (ou seja, não é obrigatório) e que nenhuma das mulheres que o utilizam pregam que outras o usem (apenas apoiam as que o decidem usar por vontade própria).

Para começar, o ato de cobrir os cabelos aparece em várias religiões, como - por exemplo - as desta imagem: 

A ideia de usar véu é muito associada aos islâmicos e aos cristãos extremamente conservadores, como os menonitas. Mas essa prática começou antes do próprio monoteísmo. Existe evidências de que os muçulmanos/islâmicos apenas mantiveram a tradição de várias religiões politeístas da área onde surgiu o islamismo. E o conceito de mulheres cobrindo suas cabeças aparece como norma cultural desde a Assíria:
"Para conseguir distinguir as mulheres livres e honráveis das escravas e concubinas, estabeleceram-se leis. As mulheres respeitáveis foram levadas a usar o véu enquanto aquelas consideradas não-respeitáveis eram forçadas a andar com a cabeça descoberta. Assim, o véu se tornou um símbolo exclusivo de respeito; um privilégio que era negado a escravas, prostitutas e concubinas." (Alexandra Kinias, tradução minha)
No livro "Aphrodite's Tortoise: The Veiled Woman in Ancient Greece", o autor mostra que o véu era uma extensão consciente da casa e era normalmente chamado de 'tegidion', que significa 'pequeno telhado'.

Algumas mulheres das outras religiões mencionadas dirão que cobrem a cabeça em sinal de submissão à vontade de Deus. Mas cobrir a cabeça não significa necessariamente submissão. As mulheres judias costumam dizer que cobrem as cabeças para se lembrarem de que existe algo acima e além delas, no qual elas precisam prestar atenção. 

Às vezes queremos ser mais espiritualizadas e ficamos só na vontade, mas quando você acrescenta um lembrete físico do seu caminho, isso vai te fazer recordar dele e de como você deveria estar se portando nesse caminho que escolheu. Você sente que não está sozinha na vida, tem algo acima de você, há deuses te cercando, te ajudando, e que estão sempre ali porque você pode senti-los. Internamente, é como usar um manto de poder espiritual que nos deixa mais confiantes. Pode até dar uma sensação de status, como uma coroa.

Outra razão para usar o véu, oposta ao status, é a da modéstia. Os dicionários costumam definir modéstia como algo moderado, sem vaidade, simples, e que tem relação com a conduta e com a maneira de se vestir. Como a máxima diz "nada em excesso", isso poderia se incluir na questão de não mostrar a todo mundo suas belas madeixas, só a alguns para quem você escolhe desvelar-se. Se nós encorajamos o direito das pessoas a usarem tatuagem e piercing, porque não lhes damos também o direito a vestir-se com recato e cobrir a cabeça? Se até os naturistas sabem respeitar quem não quer ficar nu? A diversidade humana é muito mais extensa do que conseguimos imaginar, e nossas crenças prezam pelo respeito a esse amplo espectro. 

Esse vestir-se com modéstia traz também um efeito mágico das deusas donzelas-guerreiras. É como se as camadas de roupas te dessem a impressão mental de uma armadura (ou elmo), de um tornar-se intocável. Antigamente, os corseletes e corpetes eram considerados modestos, depois é que virou item sensual, talvez justamente por esse efeito de armadura. Uma vez que eles comprimem o corpo, que são durinhos, podem dar essa sensação armada. O fator sensual fica acrescentado por conta de suas curvas e decotes, e por dar uma vontade extra com a demora que há em desamarrá-los para descortinar o conteúdo. Por isso muitos vêem a modéstia como algo 'sexy'.

Há também a opção de se usar o véu apenas no ritual. É como um sinal para que, se alguém te ver te véu, ele/ela vai saber que você está envolvido em um trabalho sagrado. Quando você coloca sua roupa branca, seu peplos, seu chiton, sua roupa limpa, para participar de um ritual, você está enviando ao cérebro um sinal de que não está num espaço comum, que algo especial vai acontecer.

Da mesma forma que há tal efeito no ritual, se você passa o dia de véu, isso vai te lembrar que o seu cotidiano é especial, que o seu caminho é sagrado. Mas a dificuldade em usar o véu fora do espaço do nosso 'temenos' é que vivemos em uma cultura que não apóia essa prática, e que frequentemente pode achar que você é muçulmana, em vez de reconhecer sua crença real.

Outro efeito dado pelo véu, segundo observação de relatos de politeístas, é que a maioria delas se sentia mais madura, mais adulta - mais mulher, menos menina -, com todos os poderes e responsabilidades inerentes a isso. E, quando escolhemos o sinal de nossa maturidade (colocar o véu), isso tira o estigma biológico de marcar a idade adulta com a menstruação. Hoje, em que podemos escolher não menstruar, não faz sentido deixar de participar de ritos de passagem e de rituais relacionados à lua só por não estarmos 'sangrando'. Não somos menos mulheres por isso. Se nos seus pensamentos, no seu discurso, na sua abordagem com a vida, você se vê mais como mulher do que menina, o véu ajudaria a personificar esse sentimento. 

Nessa mesma pesquisa/observação, notou-se que quase todas as politeístas que cobriam a cabeça eram reconstrucionistas de algum tipo. E algumas helenas usam o véu quando estão fazendo trabalhos domésticos, como sinal de devoção a Héstia. Além de ser mais higiênico cozinhar com os cabelos cobertos.

Hoje a nossa forma de cobrir os cabelos pode ser por véu, bandana, lenço, echarpe, entre outros. Na Grécia Antiga, usava-se uma túnica chamada chiton (χιτών) e, por cima dela, o himation (ἱμάτιον), que podia ser puxado para cima da cabeça, cobrindo várias partes, como na figura:


Com todas essas considerações, acredito que o que podemos concluir como benefício de se usar o véu é que isso encoraja outras mulheres politeístas a re-examinar nossos valores, no que acreditamos, se nossas convicções são fortes e importantes o suficiente para trazer questionamentos ao mundo de fora, se respeitamos a escolha do modo de vestir de cada pessoa.

Nós crescemos sem muitas das habilidades que nossos antepassados tinham. Nós não tecemos mais, não saímos pra caçar, não duelamos com espadas, nem navegamos mais (na água, não na Internet). Não dominamos mais todas essas artes, perdemos parte dessa herança. E não é culpa do feminismo que deixou de dividir as tarefas, e sim da industrialização que tirou a necessidade de caçarmos pra comer, de tecermos pra nos vestir, de combatermos por um pedaço de terra, de conduzirmos um barco pra viajar. Ao menos alguns costumes, como o do uso do véu, pode trazer nosso pensamento de volta a algo ancestral e autêntico, dando visibilidade real ao nosso caminho com os antigos.

Ainda assim, é difícil utilizar o véu fora do espaço sagrado de ritual, pois ainda existem perseguições a mulheres que usam véu, tanto que há um movimento internacional ("Covered in Light" - Cobertas de Luz) para conscientização dessa discriminação contra mulheres que escolhem cobrir suas cabeças. O movimento pede justamente para mostrar solidariedade a elas cobrindo a cabeça, e reunindo fotos de pinturas famosas de todas as épocas - nas quais as mulheres retratadas mostram que a beleza de mulheres com véu atravessa o tempo e a história.

Como chamei a atenção no início e ao longo do texto, o uso de véu não é uma exigência nem uma recomendação, e sim uma escolha e um direito. Quem decidir usar, deve ser respeitada. Quem não quiser, também será apoiada. Como dizia Epiteto, "cada um deve chegar ao divino por seu próprio caminho". Não tem por que impormos uma coisa ou outra.

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Fontes (em inglês):
With all due Modesty
Veiled Pagans
Tichel, tichel, tichel
Shaming tactics against Hellenic recon women who wear a head covering

outubro 06, 2012

Saúde mental... como ajudar?


Esta semana uma politeísta dos EUA mentalmente enferma veio a falecer em um incêndio em seu quarto, aparentemente provocado por ela mesma. Isso suscitou em muitos de nós uma reflexão sobre como poderíamos agir em situações semelhantes, como grupo, como apoio religioso mesmo. Afinal, era iminente que algo acontecesse, já que para os mais próximos ela falava sobre o fogo como meio de acessar o divino, embora ao mesmo tempo viesse ordenando pedras linearmente numa mesa como se quisesse se reorganizar, como se buscasse por aquilo que nos traz de volta a uma realidade saudável. Talvez por isso que não se imaginava que as coisas chegariam a tal ponto. O fato é que - como no caso de muitas aflições mentais - algumas pessoas achavam que ela só estava se comportando mal ao dizer que era esposa de Hermes, e não que fosse um problema real. Achavam que era apenas uma "drama queen" e não alguém que precisava de ajuda. Mas se alguma coisa boa surgiu do evento trágico, foi a reflexão que suscitou em nós, que nos provocou a pensar sobre nossa própria organização como rede, como um todo. Até porque foi um choque. Eu havia conversado com ela algumas vezes, e fiquei sentida de alguma forma. 

O fato é que até os estudiosos têm dúvidas sobre o uso da religião no tratamento de distúrbios mentais, se é algo útil ou prejudicial. Algumas pesquisas mostram que religiões relacionadas com possessão e exorcismo são mais prejudiciais a longo prazo do que as que se baseiam em prece e meditação. Há um estudo que mostra um templo na Índia utilizado para a cura, onde as pessoas passam um tempo lá - o que me lembrou muito Epidauro, de Asclépio. No estudo, aplicaram um teste psicológico antes e depois do período no templo, e o teste na saída chegou a mostrar melhores de 12%. Mas outras pesquisas relatam como a superstição de origem religiosa pode abalar ainda mais a razão de uma pessoa.

Nossa crença é de certa forma relacionada com a filosofia, o que poderia fazer alguns pensaram na "filosofia clínica" que afirma "mais Platão, menos Prozac"; e, embora eu não goste de como eles lidam com isso e saiba que algumas questões não podem ser tratadas só filosofando, há algo bem útil relacionado com o pensamento básico de a filosofia nos ajudando a lidar com o mundo. Quando tomamos os mitos por si, eles têm coisas muito estranhas que só entendemos quando lemos a análise que os filósofos fazem daqueles mitos. 

E, mais recentemente, temos as teorias da psicologia analítica dos junguianos e pós-junguianos considerando a mitologia uma forma de acessar nossas verdades interiores e nos tornar seres humanos melhores. Podemos listar uma série de escritores que seguem este caminho. Mas mesmo Jung dizia que: devemos aprender tudo sobre o máximo de coisas, mas na terapia devemos ser apenas um ser humano diante de outro ser humano. Muitos entendem isso como "estude mitologia, mas saiba que a pessoa que você está tentando ajudar não é Héracles ou Perséfone, são apenas elas mesmas".

Se olharmos alguns personagens míticos, encontraremos Héracles na sua loucura matando a esposa e filhos, e depois sendo purificado ou reparando o ato através do trabalho. Isso poderia nos fazer pensar sobre ter um emprego ou tarefas para fazer a fim de curar nossa enfermidade. Isso se parece muito com o que pretende a arte-terapia e a terapia-ocupacional.

Por outro lado, temos Odisseu fingindo estar louco para não ser convocado para a guerra em Tróia. Palamedes descobre o truque de Odisseu. Ou seja, a loucura pode então ser simulada, e é talvez por isso que alguns familiares têm uma resistência em acreditar que se trata de uma doença e considera aquilo apenas um "mau comportamento".

Dioniso era um estranho para os gregos, eles temiam o desconhecido, a diferença. As pessoas com distúrbios mentais normalmente se sentem desconfortáveis com um estranho, e elas mesmas se sentem estranhas no mundo. Alguns pais também pensam que nem todo comportamento de uma pessoa com enfermidade mental é por causa da doença, eles acham que algumas de suas respostas são coisa de criança, preguiça, "falta de Deus" e coisas do tipo. Eles procuram por médicos que dizem que é uma psicose, procuram por sacerdotes que dizem que é um problema espiritual, e acabam acreditando nos dois ao mesmo tempo.

Em outras religiões, há também uma sintomatologia psiquiátrica causada por ação sobrenatural, similar à possessão e usada como punição (vocês podem procurar pelo relato de Nabucodonosor ou mesmo o de Saul, na bíblia).

Então vemos que a mitologia às vezes ajuda e às vezes alimenta/aumenta os problemas; depende de como a utilizamos - se como uma ferramenta/muleta ou se como uma fuga/tábua-de-salvação. No caso da garota que tentou alcançar o divino ateando-se fogo, as informações (sabe-se lá de qual fonte de estudos mitológicos/espirituais) que ela acessou só pioraram sua disposição original.

Talvez a melhor forma de agir como grupo religioso seria apoiar as pessoas como faríamos fora da religião (listo algumas dicas abaixo, ainda nesta postagem), e mostrar a elas que há exemplos na Antiga Hélade que eram solucionados assim como eles podem solucionar suas questões com a ajuda que terão dos amigos e dos Deuses; como as coisas acontecem por uma razão; como deveríamos tomar as rédeas das nossas vidas como heróis, realizando um feito por vez; como até os deuses (como Dioniso) não eram totalmente compreendidos também; como erros do passado podem ser purificados e reparados... e toda essa maravilhosa visão ética de mundo que o modo heleno antigo de viver nos ensina.

É difícil propor algo de forma geral assim sobre esse tema, mas poderíamos nos unir para ajudar caso a caso se nos propormos a procurar pelo auxílio do grupo quando vemos alguém precisando. Talvez, se tívessemos nos unido para ajudar a moça que morreu (em vez de julgá-la, falar com ela privadamente, deixar ela pra lá, parar de procurá-la para conversar), sua situação teria outro desfecho.

Ajudar 'online' é dificilmente muito efetivo, mas ainda podemos fazer algo. Se as pessoas sentirem nosso comprometimento em ajudar, se sentirem que têm apoio nos seus esforços para melhorar, se sentirem-se seguras para tentar coisas que de outra forma (sozinhas) seria assustador, se perceberem que não precisam passar pelos problemas sozinhas, já estaríamos ajudando. Nós podemos insuflar coragem à sua falta de esperança, mas provavelmente teríamos que verificar se nós próprios somos fortes para fazer isso. Às vezes ajuda ter o mesmo problema para compartilhar experiências, mas às vezes ajuda mais se fizermos elas perceberem que podem confiar na nossa força, como alguém que é capaz de "salvá-las".

Coisas que nós NÃO devemos fazer: ficar bravos com elas; evitá-las; julgá-las; dar conselhos que elas não pediram; prometer coisas que não podemos cumprir; falar sobre o problema delas o tempo todo; minimizar o problema tipo dizendo "sai dessa" (se pudessem, já o teriam feito); dizer que sabemos o que elas estão passando (outra pessoa nunca sabe o que estamos passando, ela não tem a mesma história e personalidade que temos); ficar falando sempre sobre o passado (seus problemas são aqui-agora).

Coisas que DEVEMOS fazer: aceitar o fato de que elas têm uma doença (muitas pessoas não vêem as doenças mentais como doenças, mas são); aprender/estudar sobre seus distúrbios e como lidar com isso; ajudá-las a identificar os sintomas (incluindo os físicos); ouvir com atenção; encorajar seu envolvimento em atividades que elas gostem (esportes, hobbies, atividades culturais), embora não em muitas de uma só vez (se elas se envolvem em muitas atividades, o excesso de demandas vai fazer elas pensarem são um fracasso - por não conseguirem cumprir todas); encorajá-las a procurar ajuda médica; sugerir que elas mantenham um registro escrito; entre outras coisas.

É legal lembrá-las das coisas boas que elas têm, sorrir pra elas (ainda que por carinhas de internet), oferecer ajuda nas tarefas diárias (há coisas que é mais fácil para você terminar do que pra elas), mostrar que você sente muito pelo que elas estão passando, perguntar como podemos ajudar...  Também é importante demonstrar que você está percebendo o progresso delas, o que elas já conseguiram realizar, e que elas não precisam ter pressa - elas podem fazer um pouquinho por dia, e ainda podem ter a nossa ajuda para fazê-lo.


Não sei se sou uma boa fonte para falar dessas coisas, faz anos que não lido com psicologia, mas espero ter ajudado a despertar alguma percepção útil aqui. E espero sinceramente que não precisemos de mais "baixas de guerra" para nos apontar que deveríamos ser mais unidos como grupo para ajudar nossos semelhantes, ainda mais aqueles que compartilham de nossas crenças.


agosto 01, 2012

Convite de Rito a Selene, do grupo Thyrsos



"Encorajamento a todas as Casas dos Antigos Caminhos para abertamente honrar a Pasiphae
Rito a Selene na ocasião das Luas Cheias de agosto 
Nossa Oikos (Casa) está fazendo todos os preparativos e convida todo irmão e irmã heleno, cada Oikos dos Antigos Caminhos, para, nas duas noites de lua cheia, dias 2 e 31 de agosto, honrarmos Selene Pasiphae oferecendo-lhe pães, preciosa água pura, os hinos apropriados e preces que Ela merece.
Coletivamente e individualmente, instigamos cada um e todos a se dirigirem ao ar livre, sob a grande abertura do céu, usando suas roupas brancas, com luminárias em suas mãos, espelhando as estrelas do perpétuo Céu sobre a Terra, para honrarmos a irmã do nosso pai Hipérion.
Ela é como uma Deusa Guia, nesta escuridão que de qualquer maneira nos envolve, e nós invocamos Seus orientadores Aspectos de Renascença com a compreensão que eles fornecem, dando-nos o poder da limpeza no nosso espírito, alma e corpo.
Possam a Sabedoria e o Poder serem sempre generosamente oferecidos à nossa Casa!"
(Thyrsos, Gentis Helenos)
Θύρσος - Έλληνες Εθνικοί
Για την έρευνα,μελέτη και διάδοση του Αρχαίου Ελληνικού Πολιτισμού.
Thyrsos - Hellenes Ethnikoi
Pela pesquisa, estudo e divulgação da Antiga Cultura Helênica

junho 29, 2012

Máximas Délficas (parte 3) - Autoridade e Poder


Seguindo a lógica das postagens, falamos de riquezas e posses, o que tem muita relação com o poder e a autoridade, uma vez que tratamos de que o mal está nos excessos, e isso permeia este novo grupo de máximas, que inclui uma vigilância contra o orgulho excessivo, a arrogância, o desrespeito, a ganância cega por riqueza e poder.


3. Respeite os Deuses (Θεους σεβου)

'Sebou' é a forma imperativa de 'sebas' (respeito), então a Máxima diz que devemos respeitar os deuses, todos eles - sem especificar nome, origem, raça, cultura ou credo.
Os antigos respeitavam os deuses alheios, embora se tratasse de um respeito muito mais de estado mental do que de uma ação em si. Os problemas que temos com as outras religiões não é com os deuses delas - os quais devemos respeitar - e sim com as pessoas. Mesmo os questionamentos que fizemos da atitude do deus da bíblia se refere a escritos feitos pelos homens, que o descreveram daquela forma. A ação dos seguidores daquele deus não necessariamente refletem a vontade dele. 

42. Tenha respeito pelos suplicantes (Ικετας αιδου)

'Iketas' é uma forma plural que vem de 'ikesia', mesma origem de Zeus Ikesios e Zeus Iktaios, o patrono dos suplicantes, o deus que realiza os pedidos de justiça e proteção. Essa súplica não é um apelo geral e indiscriminado por ajuda, mas sim um pedido de se preencher uma necessidade imediata que é dirigida diretamente a alguém que está na posição de ajudar o suplicante. Recusar-se a atender os 'iketis' ou 'iketria' é uma contravenção que leva ao erro ('hamartia') e à poluição ('miasma') a quem recebe e ignora o pedido. A súplica está ligada às leis filantrópicas da hospitalidade ('philoxenia'). Já 'aidou' é o imperativo de 'aidos', a sensação de vergonha, de ser honrável, virtuoso, ter digna auto-estima, sentir respeito e dignidade. O oposto disso seria o 'anaideia' (desaforo, descaramento, desrespeito). Trata-se de uma consciência ética interna adquirida pela compreensão do nosso dever social, e não de uma lei que te força a agir de forma ética. Já falei da relação de Aidos com o amor e a decência ('kosmiotita') aqui, agora lembro da relação que Aristóteles faz de Aidos com a boa ordem ('eutaxia') e a prudência ('sophrosyne'). "Iketas aidou" nos ensina a não envergonhar os suplicantes e garantir que o devido respeito seja dado a eles.
Agora entra a questão de quem é um 'iketes', uma vez que para algumas pessoas mendigar é uma profissão e para algumas entidades assistenciais a caridade é lucrativa. Quais seriam então as coisas que poderíamos observar? Primeiro se o pedido vai para alguém que esteja em posição de ajudar (você pode ajudar e a pessoa está sendo sincera em pedir o que precisa?); segundo sobre a melhor forma de ajudar sem necessariamente ser o que foi pedido (por exemplo, alguém te pede dinheiro que você não sabe se é para comprar álcool e aí você prefere dar um lanche pra ele; ou você resolve o problema imediato da fome e causa o problema maior da dependência à ajuda dos outros, o que não seria uma solução para a súplica). Se você não está em condição de ajudar, piedade não é respeito; o verdadeiro respeito começa com o respeito próprio, reconhecer suas limitações e poderes. Até porque, grande parte das vezes, a solução para os problemas sociais é muito cara ou irreal.
Não precisamos entrar aqui em discussões políticas sobre o sistema. De qualquer forma, como é muito difícil saber com quem estamos lidando, é melhor tratar a todos com respeito. Acredito que, na maioria das vezes, a gente sente quando deve e quando não deve ajudar, e - nas vezes que, por costume, nos recusamos a ajudar e acabamos nos sentindo desconfortáveis - isso já é um sinal de que estávamos seguindo nossa intuição. No mais, é se colocar no lugar do outro, pois só assim vamos sentir e saber quem está realmente precisando e suplicando por meio dos deuses ou quem está apenas tentando se aproveitar e acomodado ao assistencialismo alheio.

48. Seja um amante/amigo da sabedoria (Φιλοσοφος γινου)

'Philosophos' todos sabem que significa amante ou amigo ('philos') da sabedoria ('sofia'), palavra cunhada por Pitágoras. 'Ginou' é o imperativo do verbo 'gignosko' (tornar-se). Então, "torne-se um filósofo" não significa que é para você fazer faculdade de filosofia, e sim que você se transforme em um amante/amigo da sabedoria, alguém que a busca. Através do acolhimento da sabedoria, surge a compreensão e o respeito pela ordem natural, por isso incluímos esta Máxima no grupo - porque a ausência de sabedoria (quando não a reconhecemos ou não a aceitamos) é o que leva à insolência e ao desrespeito aos Deuses. Às vezes as pessoas respeitam as coisas sem ter consciência, sem saber o que estão fazendo. Um amigo da sabedoria precisa estar consciente dos seus motivos e da sua posição, precisa estar sempre questionando as coisas em vez de aceitá-las como sempre foram. Um filósofo é, acima de tudo, um buscador da verdade. Ele vai testar a autoridade conferida e respeitar a verdadeira autoridade. Em todos os momentos há formas sábias e formas tolas de se abordar algo - precisamos escolher o jeito mais sábio. Obedecer cegamente não é sábio, a sabedoria não acontece no vácuo, ela surge da reflexão. Nosso ditado "manda quem pode, obedece quem tem juízo" serviria para pensarmos que respeitar a verdadeira autoridade (quem realmente "pode") é um sinal de racionalidade ("juízo"), nesse sentido filosófico.

53. Consulte os sábios (Σοφοις χρω)

'Sophois' se refere ao plural de pessoas que são sábias e prudentes, e 'khro' é o imperativo do verbo 'khrao' (prover com o que é necessário). Por conta de frases do tipo "khromeno en Delphis" (consulte o oráculo), de Tucídides, e "oi khromenoi" (os consulentes), de Eurípides, podemos traduzir como "consulte os sábios". Além disso, prover os sábios com o que eles precisam seria pensarmos que o que eles precisam é justamente compartilhar a sabedoria, pois - como amigos dela - queremos mais é que ela esteja em toda a parte. 
A grande questão é como reconhecer quem é sábio. Todo mundo tem alguma coisa para ensinar, muitos tem bastante conhecimento, mas poucos tem sabedoria. De qualquer forma, podemos pensar na ideia mais socrática de considerar aqueles que já passaram pelas mesmas coisas antes, e podemos consultar sua experiência no assunto que abordamos. Em Esparta, se não me engano, existia um juramento ('orkos') que cada jovem ('ephebos') fazia para ser introduzido na irmandade ('phratria'), no qual se incluía a promessa de preservar o que eles tinham recebido como herança e de garantir que eles não passariam menos do que aquilo para a próxima geração. Ou seja, os mais novos sempre recebiam ou igual ou maior porção de conhecimento, pois o tempo havia ensinado aos mais velhos mais do que eles tinham aprendido ao ingressar na comunidade, e era dever dos mais jovens aprender ainda mais antes da próxima geração.
Se consultamos os sábios, é também por conta da autoridade que eles têm, uma autoridade que vem não de hierarquia imposta/concedida, mas de experiência adquirida, uma autoridade natural, pelo direito dos anos como buscador da verdade e amante da sabedoria. E eles têm o poder de ajudar quem lhes consulta.

65. Honre quem é bom (Αγαθους τιμα)

'Agathous' vem do termo 'agathon' que a filosofia define como aquilo que é bom em termos do que é benéfico. Já falamos do 'agathós' no blog dos exegetas. 'Tima' vem de 'timé' (honra) e 'timao' (honrar), normalmente usado para denotar a honra dirigida aos deuses, ancestrais, anciãos, governantes, convidados e outros superiores. Então a Máxima nos diz para dar a devida honra aqueles que são bons, que são beneficentes, que trazem benefícios.
Ou seja, não é qualquer uma dessas pessoas que a honra/timé denota, mas apenas aqueles que são mesmo benéficos para a comunidade, os realmente bons/agathoi. A gente sabe que grande parte dos governantes atuais não são benéficos - são aquilo que falamos sobre os corruptos, anti-éticos, interesseiros e inescrupulosos na postagem anterior; aqueles que excedem a justa medida.

109. Tema o poder/autoridade/governo (Το κρατουν φοβου)

'Kratoun' vem de 'kratos' (força, poder), independente de ser um poder dos deuses, do governo ou do poder pessoal, tanto que é a origem da palavra 'demokratia' (governo do povo) e virou nome de personagem fortão de videogame. 'Phobou' (tema, tenha medo) é o imperativo de 'phobos' (medo), o mesmo que dá nome a um dos filhos de Ares. O uso dessa palavra em vez de 'deos' (temor no sentido de reverência, admiração) acentua a força da atitude. Não se trata, portanto, de admirar e reverenciar a força/poder/autoridade (ou governo), e sim de temê-los mesmo. 
Podemos tirar várias reflexões dessa Máxima. Uma é que o poder é algo potencialmente perigoso, então há razão em temê-lo. Outra é que devemos escolher com sabedoria o que tomaremos como autoridade e ficarmos atento de que, ao transformá-lo numa autoridade, estamos lhe conferindo poder e passaremos a temê-la (o que, a meu ver, só os imortais seriam dignos de tal aceitação, e alguns humanos só depois de escolher com muito cuidado através da observação de ser alguém virtuoso em conhecimento, prática e sabedoria). Outra reflexão ainda é de que deveríamos evitar nos tornarmos autoridades, uma vez que o verbo 'fobomai' remete também a 'fugir de', então estaríamos fugindo (não da responsabilidade, mas) de sermos autocratas ou tiranos.  
Acredito que podemos olhar essa Máxima lembrando da que comentamos anteriormente: "honre quem é bom". Existem bons e maus governos, boas e más pessoas no poder, e o mais sábil é desenvolver um medo saudável, aquele mesmo medo que temos de nos queimarmos que faz lidarmos com o fogo de uma maneira segura. Governos e autoridades são coisas necessárias (como necessitamos do fogo) e o poder pode ser algo perigoso (como o fogo), por isso a cautela -- não a admiração ('deos'), mas realmente o temor ('phobos'), um "medo" saudável e seguro.

130. Não comece a ser insolente OU Não seja abusivo com a autoridade (Μη αρχε υβριζειν)

'Arkhe' tanto pode ser derivado do verbo 'arkho' (governar, supervisionar) quando da palavra 'arkhé' (começo, princípio). Elas são parecidas no sentido de supervisionar que as ofertas sejam as dos primeiros frutos e no sentido de a primeira causa ser a que domina e tem autoridade sobre as outras. Todas as teorias sobre o princípio de tudo (para Anaxímenes o ar, para Xenófanes a terra, para Heráclito o fogo, etc) concordam que a primeira causa está no 'kosmos', é parte dele, uma vez que o que está fora do cosmo é desconhecido para os humanos. Sócrates se perguntou "o que é 'arkhe' e como isso funciona uma vez que funciona como um princípio?" Para Aristóteles, o 'arkhé' é sempre divino, devido à sua capacidade de se auto-gerar e auto-sustentar e das coisas se originarem dele. 'Ybrikzein' é a forma imperativa de 'hybris', uma insolência ou impertinência de sentimentos exagerados de poder, que resultam na transgressão do 'métron' (justa medida) através da arrogância, ganância, excesso, perseguição cega por riqueza e poder. A 'hybris' é uma audácia e um desrespeito desavergonhado pela ordem ética do cosmo. Trata-se de um desprezo pelos deuses ('theoi') ou de uma violação das leis da natureza ('physis'). A híbris traz vergonha para a vítima, não por punição, mas porque - ao restaurar o equilíbrio do cosmo - o transgressor recebe em retorno a porção de disciplina e consciência que lhe faltou. Essa restauração é feita pela deusa Nêmesis, personificação da revanche, da vingança. Então, se pensarmos em autoridade e na primeira causa de tudo, podemos dizer que a Máxima lembra daqueles que pensam que tratando mal os outros vão garantir sua superioridade sobre eles, quando na verdade vão é atrair uma reparação sobre si. Não comece (arkhe) a transgredir (hybris), abusando (hybris) da verdadeira autoridade (arkhe), pois a origem das coisas está no cosmos divino e não em você. Para quem está familiarizado com os conceitos da 'hybris' (transgressão) e da 'arkhe' (origem divina das coisas no 'kosmos'), poderíamos entender essa tradução como "não cometa híbris com as primeiras causas" ou "não seja insolente com a autoridade dos deuses".
Existe uma distinção entre a híbris no sentido comum, no termo jurídico e no termo filosófico. Para a filosofia, a híbris é o que foge do métron, do padrão, e os excessos são reconhecidos ao examinar a causa da híbris. No senso comum, a híbris é qualquer insulto. No sentido jurídico, a híbris é a violação de normas sociais motivada por arrogância sem a devida causa. A híbris poderia ser vista como um "erro fatal" que inicia um processo de eventos trágicos como consequência. Porém, no sentido moderno, você xingar quem cortou a frente do seu carro na estrada é híbris na língua grega, uma híbris que não guarda o mesmo peso daquela do sistema legal/jurídico daquela da ideia filosófica.
Essa Máxima também poderia ser traduzida como "não seja a causa da hybris" no sentido do uso excessivo e inapropiado da violência que os tiranos fazem ao agir unilateralmente como se fossem deuses. Ser insolente com a autoridade, faltar com o respeito pelo poder, não é sábio porque os irrita ao ponto de eles cometerem atos de híbris. É como sacudir um pano na frente do touro - a não ser que a sua intenção seja mesmo a de irritar o touro para que ele ataque.
Isso, no entanto, é diferente de se opor ao tirano. Você pode se opor à autoridade de alguém sem precisar ser insolente. Há uma diferença entre insolência e desobediência. A híbris é uma "arrogância presunçosa que causa humilhação e vergonha" (Aristóteles), uma ofensa que vai além de um ataque verbal ou de um ato de desobediência. Os filósofos Cínicos, inclusive, achavam que o menosprezo e o insulto eram deveres sagrados contra a hipocrisia e a corrupção, da mesma forma que a sátira desempenhava um papel político importante. É fácil se erguer e criticar o governo ou uma figura de autoridade, mas a tarefa deles não era simples e nem era para qualquer pessoa. Se alguém tivesse verdadeiramente a solução para os problemas da sociedade, ele/a tinha o dever social de se levantar no ofício público e falar, mas aqueles que não tinham solução não teriam o direito de questionar a autoridade. Além disso, é fácil insultar fulano ou beltrano em vez de discutir os problemas reais e encontrar soluções reais para eles. As pessoas só querem ser críticos sentados na sua poltrona; que acham que nada está bom, mas que também não sabem qual seria a solução para os problemas. 
Assim, essa Máxima também pode chamar nossa atenção para as dificuldades em ser uma autoridade nesse mundo e nos fazer questionar o quão realística são as nossas expectativas quando nos sentimos compelidos a criticar ou insultar uma autoridade. Talvez os outros não verão essa Máxima sob essa luz, mas não custa levantar esse pensamento.


Há um diálogo - de um dos sete sábios que compuseram as Máximas - que diz assim:
"Quilon de Esparta (560 AEC): O que Zeus está fazendo?
 Esopo: Ele está rebaixando os orgulhosos e exaltando os humildes."

junho 24, 2012

Máximas Délficas (parte 2) - Riquezas e Posses


Como falamos de OIKOS (casa, lar, ambiente) na postagem anterior, vamos falar de PLOUTO (riqueza, abundância, prosperidade), o meio de sobrevivência de cada casa, pois este preenchia seus estoques e formava a base para os negócios que tornavam o lar auto-suficiente. Dentro da casa, Zeus Ktesios (Doméstico) preservava as riquezas do lar, da despensa. Cuidar das próprias fronteiras, da casa, das posses, tem a ver com os valores sociais que se opõem à corrupção e ao desperdício. As máximas moderam e se alinham aos valores helênicos, oferecendo essa sabedoria antiga.

Então, eis mais um grupo de máximas que podem gerar dúvidas para discussão:

64. Obtenha posses legitimamente (Δικαιως κτω) 
72. Governe suas despesas (Δαπανων αρχου)
73. Seja feliz com o que tem (Κτωμενος ηδου)
79. Trabalhe pelo que você pode possuir (Εργαζου κτητα)
110. Busque o que for proveitoso (Το συμφερον θηρω) 
117. Adquira riquezas de forma justa (Πλουτει δικιως) 
128. Não confie em riquezas (Πλουτω απιστει)

Desta vez, resolvi agrupá-las em vez de falar de cada uma separadamente, porque é necessário parearmos principalmente a diferença entre as máximas 64/79 que usam "kto" (posses) e as 117/128 que usam "plutos" (riqueza). 

Se essas traduções estiverem próximas do real, elas nos fazem pensar que há uma diferença entre 'posses' e 'riqueza' para os antigos helenos no que se refere à maneira que somos capazes de controlar certas coisas que chamamos de posses, enquanto a riqueza seria algo além do nosso controle. 'Kto' se relaciona à propriedade (κτέαρ) material, embora do ponto de vista antigo algumas pessoas se incluíam nisso (escravos, por exemplo). 'Plutos' estaria mais ligado à abundância do planeta, já que Pluto era um dos nomes de Hades, que é da família de quem dá fartura de comida ao mundo (Deméter). 

No Hino Homérico a Deméter, encontramos "Abençoado aquele entre os homens na terra a quem elas [as duas deusas] livremente ama: em breve elas mandam Ploutos como convidado à sua grande casa, Ploutos que dá a riqueza aos homens mortais." A palavra "riqueza" nessa linha está como ἄφενος (rendimentos, renda, riqueza, abundância), mas era comum os antigos falarem do deus para representar os dons: a 'ploutos' vem de Ploutos como os cereais/'demetria' (δημητρια) vêm de Demeter. 

Mesmo que você pense no mundo como um bem, o corpo (σώμα) do planeta não é um deus, é a manifestação do poder de deuses, da mesma forma que Pluto (riqueza) é uma qualidade de Hades e a Taxis (ordem) é uma qualidade de Zeus. Geia também pode ser considerado um conceito de Terra como elementos/dados (στοιχεία) primordiais, não como o planeta; Geia hoje poderia ser o firmamento de qualquer planeta, não especificamente o nosso. Mas, pensando assim, então os helenos acreditavam que Pluto poderia ser adquirido também - de forma justa ou injusta. Daí a máxima 117.

Hesíodo falou disso em Os Trabalhos e os Dias. Ele exorta seu irmão a adquirir riqueza de forma justa através do trabalho após trabalho, mais do que tentar adquirí-la através de processos judiciais contra os outros, incluindo sua própria família, entre outras práticas injustas. Ele também critica os juízes que não julgam de forma justa ou aceitam propina, o que de novo nos traz algo das Máximas. Eis uma citação: "Aquele que causa dano a outro, causa dano a si mesmo, e planos malignos prejudicam mais ao próprio maquinador".

Hesíodo também diz: "Tanto deuses quanto homens ficam irritados com alguém que vive na indolência, pois por natureza ele é como um zangão sem ferrão que desperdiça o trabalho das abelhas, comendo sem trabalhar [...]. Através do trabalho, os homens aumentam suas riquezas [ἀφνειός] em quantidade e substância, e, trabalhando, eles são muito mais amados pelos imortais", o que nos lembra as Máximas 79 e 64. E mais: "A riqueza [ὄλβον] não deveria ser apoderada/apreendida, pois a riqueza dada pelos deuses é muito melhor, pois se um homem tomar grande soma por meio da violência os deuses logo o obscurecem e aquela riqueza só o servirá por pouco tempo". Não pensem aqui que os deuses são destruidores ao fazer isso, eles apenas estão guardando as leis naturais e ceifando o que semeamos.

"Nada em excesso" ou 'o que é demais nunca é bom'... Platão diz que a riqueza (usando a palavra "ploutos") é parente do luxo e da indolência, da pobreza de sentido e do vício, e ambos do descontentamento. Ou seja, 'ploutos' também pode nos tornar preguiçosos, e isso é verdade, especialmente no mundo moderno em que vamos de carro à padaria da esquina. Mas essas coisas estão ligadas aos nossos desejos e paixões, e "pathos" é a palavra primitiva tanto de paixão quanto doença/patologia. Assim, ficamos indolentes porque não desejamos ser ativos e não há necessidade de fazer nada se tivermos riqueza, ficamos encostados nas conveniências adquiridas e aí ou desejamos mais ou desejamos não perder o que já temos. Esses são "pathoi" (paixões, doenças) e não "ploutos". Nossos desejos e expectativas são a fonte do nosso descontentamento. Por isso a importância das Máximas 73 e 128, para sermos felizes com o que temos e não esperarmos nem dependermos das riquezas.

Lembramos dos estóicos quando falamos sobre refrear as paixões. As paixões/doenças (pathoi) que guardam relação com a riqueza (pluto) podem ser, por exemplo: "spane" - o desejo pelo que não podemos ter, ou um medo da escassez; "philargyria" - desejo e paixão por dinheiro (especificamente dinheiro, e não a riqueza 'pluto' em si); "phthonos" - inveja ou tristeza ao ver a riqueza dos outros; "akhthos" - fardo ou tristeza de ver o que é nosso ser tomado, a perda; "ania" - inquietação que cresce constantemente através da "ashkyne" - vergonha e medo da humilhação; "agonia" - pavor ou medo do desconhecido. Então, a Máxima 73 nos exorta a ser felizes com o que temos, sem essas invejas do que não temos e sem o medo excessivo da perda. Se uma família escolhe viver modestamente ou em luxo em seu 'oikos' (lar), é uma questão deles, não minha. A falta de virtude não é a riqueza nem a deidade da abundância em si, e sim as paixões, desejos, doenças, que residem nos mortais. Quando os estóicos e cínicos pregavam uma vida mais modesta, não era uma rejeição de 'plouto', e sim um refrear das 'pathoi' que são dirigidas às posses.

Já na Máxima 128, temos "apisti" (pistis = fé, confiança; a = forma negativa), logo: não confie, não bote fé. Daí podemos tirar várias compreensões. Uma delas é que não podemos confiar de que a riqueza que temos vai durar, e que as riquezas que temos (dinheiro, amizades, posses, qualidades etc) não podem ser tomadas como certas ou tratadas como algo que nunca iremos perder. Há quem diga "não preciso me preocupar em trabalhar ou em preservar o que eu tenho, porque as coisas simplesmente virão até mim por eu ter fé". Isso simplesmente nos leva (no melhor dos casos) a negligenciar as coisas ou (no pior dos casos) a uma obstinada destruição. Outra compreensão é a de que não devemos pensar que uma pessoa rica necessariamente é alguém com quem os Deuses foram favoráveis, supervalorizando as posses de alguém. Devemos olhar além da riqueza (ou da falta de riqueza) da pessoa ao avaliarmos suas virtudes. Há muitos casos históricos de gente querendo validar sua superioridade através do seu dinheiro. "Não confie, não bote fé" nelas. 

Voltando à distinção entre posses (kto) e riqueza (pluto), não podemos botar fé nas riquezas porque não podemos possuir algo inanimado. A riqueza (pluto) deriva diretamente da terra, está sujeita a leis maiores. Podemos possuir partes da terra, mas não a possuímos da mesma forma que possuímos um carro ou uma roupa.

O curioso é que Platão apresenta uma rejeição à plutocracia. Das cartas que escreveu antes de morrer, ele deixa claro que rejeita a corrupção e a falta de reforma nas leis por aqueles que detêm o poder. Então, entendemos que o que ele acha ruim (kakós) é o apetite e o desejo por riqueza (pluto) e não a deidade (Pluto). Platão rejeita a plutocracia sem filosofia, pois isso nos levaria a um governo desonrável. Ele estava mais encorajando a filosofia do que rejeitando a riqueza. Até porque, em outras passagens, vemos que ele estava ciente das ações dos aristocratas de Atenas, que contribuíam com muito de suas riquezas para a cidade. Os cidadãos mais ricos de Atenas tinham que executar "liturgias" - serviço público - provendo de fundos as maiores celebrações e produções teatrais e até provendo de navios e tripulação a marinha ateniense. Não existia isso de ficar sentado desfrutando da riqueza enquanto sua cidade e seu povo decaíam. Uma cidade cujas aquisições eram limitadas era uma cidade menos próspera de arte e artesanato, por isso temos mais monumentos e artefatos e poetas e filósofos em Atenas do que em Esparta. E a Máxima 72 não trata justamente de saber governar suas despesas?

Por falar em Esparta, nós entendemos que a tradição espartana tem a característica de desconsiderar o luxo, de tentar ter uma vida com o mínimo possível de posses, acreditando que isso irá auxiliar-nos em favor da virtude (areté); mas isso precisa ser esclarecido. Não é que os espartanos rejeitassem a riqueza na forma de terras e produção agrícola; eles rejeitavam é as demonstrações de ostentação da riqueza como ouro e jóias e enfeites. Tanto que, ao contrário do que poderíamos pensar, eles estranhamente preferiam um governo de oligarquia - de poucos indivíduos, suficientemente 'ricos' - a uma democracia - governo de todas as pessoas.

Heródoto e Tucídides ilustram uma distribuição injusta da riqueza entre espartanos dos séculos V e VI AEC. Heródoto relata de quando os espartanos tinham o direito cívico de possuir diferentes tipos de riqueza móvel, incluindo lingotes de ouro ou prata e moeda estrangeira. Baseado em Tucídides, ele mostra que um dos principais privilégios da sociedade espartana era o direito de participar em "market exchange" (troca de mercado que implica em transações com barganha e negociação de preços) e que o comércio de riquezas móveis existiam entre espartanos e também entre espartanos com não-espartanos.

Agora, trazendo para a nossa época, a questão é que o mundo atual é baseado em uma visão de mundo judaico-cristã que diz que os homens foram feitos à imagem de um deus e que "deixe-os ter domínio sobre o peixe do mar e sobre as aves do céu e sobre o gado e sobre toda a terra e sobre cada criatura rastejante que se arrasta sobre a terra" (Gênesis 1, 26). Quando se coloca o domínio do ser humano sobre toda a terra, isso significa que tudo no planeta, incluso as coisas vivas, estão sob os domínios - ou seja, são posses - do homem; e são posses por um 'direito divino' de domínio sobre a terra. Não é difícil perceber os resultados psicológicos e ambientais dessa ideia no nosso planeta. É bem diferente de ver o mundo natural como algo sagrado, como faziam os helenos, em vez de meras posses de proprietários humanos. É como se os dons concedidos a nós pela combinação do nosso trabalho e relação com a natureza não fossem presentes, e sim produtos daquilo que somente nós fizemos, uma recompensa resultado do que o homem fez e só. Parece que ninguém lembra que essas coisas são transitórias, mudam, se deterioram, se transformam... ou seja, só podem ser 'possuídas' por um dado tempo, sem termos verdadeiro controle sobre isso. Confia-se demais na abundância da natureza e esquece-se da Máxima 128.

No entanto, como o ideal helênico nunca morreu de verdade, podemos vislumbrar seus efeitos em vários autores mais próximos do nosso tempo. Como já falamos, o problema não é a riqueza, ou mesmo o dinheiro, que são necessários, mas sim como ele é usado - se para unir ou para dividir. Ele é um símbolo, no sentido original de 'symbolon' na Grécia Antiga: uma marca de identidade, uma moeda com uma imagem nela, que era quebrada em duas partes, de modo que você a identificava ao juntar as duas metades (semelhante ao que fazem hoje com aqueles colares partidos de almas-gêmeas). A riqueza, o dinheiro, a troca, estão presentes em todas as relações humanas. Ele representa onde depositamos os nossos valores. É só olhar para o que você compra, como você usa o seu dinheiro, com o quê você o gasta - isso diz muito sobre o que é importante para você. Normalmente não empenhamos nosso dinheiro em algo que não damos valor. 
"Toda troca com o uso de dinheiro (compra) é também uma relação social em virtude do emprego desse dinheiro, o qual desempenha sua função somente por referir-se à ação potencial de outras pessoas." [...] 
"O impulso para o ganho, a ânsia do lucro, de lucro monetário, o mais alto possível, não tem nada a ver em si com o capitalismo. Esse impulso existiu e existe entre [...] toda espécie e condição de pessoas, em todas as épocas de todos os países da Terra, onde quer que, de alguma forma, se apresentou, ou se apresenta, uma possibilidade objetiva para isso."
(Max Weber, 1913)
"[...] o dinheiro se tornou elemento básico e fundamental da sociedade moderna, interferindo na relação dos homens com seus deuses, assim como na busca de bem-estar e de salvação para os problemas físicos, afetivos, mentais e espirituais". [...]
"Sem trocas não é possível a vida em sua plenitude, porque aqueles que se preocupam apenas em dar tornam-se orgulhosos, independentes e isolados, acabando por se afastarem da sociedade, ficando incapacitados de criar vínculos de fraternidade e amor. Por outro lado, aqueles que apenas recebem nunca amadurecem, tornam-se extremamente humildes e crédulos, continuando permanentemente dependentes, podendo chegar até a atitudes de submissão fanática." (Waldemar Magaldi Filho, 2006)
"Vivemos numa época em que o aprender é programado, o habitar urbanizado, os deslocamentos motorizados, as comunicações canalizadas e em que, pela primeira vez na história da humanidade, quase um terço dos produtos alimentares consumidos vem de mercados longínquos. Numa sociedade superindustrializada a esse ponto, as pessoas são condicionadas a obterem as coisas e não a fazê-las. O que querem é ser educadas, transportadas, cuidadas e guiadas, ao contrário de aprenderem, deslocarem-se, curarem-se e encontrarem seu próprio caminho. O que pode ser fornecido e consumido toma lugar do que pode ser feito." (Ivan Illich, 1975)
"...o dinheiro deve ser usado como  recordação - lembrando que 'moneta' é derivado de 'moneo' que significa recordar, memorizar. Recordar, fazendo presente no coração o resgate da imaginação, o aflorar da dimensão arquetípica das riquezas que Plutão esconde no Hades, unificando as dimensões horizontais com as verticais na grande roda da vida e da morte. Sem esquecer que para chegar e sair do Hades é preciso reservar as moedas para pagar o barqueiro Caronte. E como o dinheiro é como uma tela na qual cada um projeta e até concretiza as suas fantasias, desejos, necessidades e aspirações existenciais, ele acaba exigindo do sistema monetário uma expansão infinita, podendo desembocar na total insensatez humana, demonstrado inúmeras vezes na história da humanidade, marcada por atitudes maníacas ou depressivas. Por isso, só pelo uso consciente do dinheiro é que as verdades ocultas e reveladoras do si mesmo poderão transparecer e serem manifestas no sentido da individuação." (Waldemar Magaldi Filho, 2006)
Citei duas vezes Magaldi não só por ter sido aluna dele, mas porque ele tem todo um livro falando da relação do dinheiro com a saúde e o sagrado.

Acredito que essas falas exemplificam o que abordamos em geral das máximas que nos ensinam sobre nossas relações com as posses e riquezas. Se essas relações estão incluídas nas Máximas, é por serem um aspecto importante a considerarmos na busca da excelência. Temos que obter nossas posses de forma legítima, as riquezas de forma justa, trabalhar por elas, não confiar no seu aspecto efêmero, governar as despesas, buscar o que é proveitoso/útil e ser feliz com o que temos. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas é para isso que estamos em constante busca e desenvolvimento da 'areté'...

Existe algo um tanto incongruente na nossa sociedade porque, por um lado o mercado estimula a acumulação de mercadorias e riqueza, avaliando as pessoas pela sua capacidade de consumo e poder de compra, mais do que pelo valor humano, sendo útil apenas quem dá lucro e retroalimenta o capitalismo, e, por outro lado, prega-se a ideia de que os ricos são pessoas egoístas, sem ética, corruptas, interesseiras. O maior risco é que a pessoa que detém posses confie demais na sua fortuna para satisfazer desejos de consumo e materiais (o horizontal) e se esqueça de alimentar o lado espiritual (vertical), acabando por coisificar a si mesmo e aos outros. É como a imagem que circula pela internet de "algumas pessoas são tão pobres que a única coisa que elas têm é dinheiro", uma riqueza material de alguém espiritualmente pobre. De novo, parece-nos uma questão do "nada em excesso", de "nem tanto ao mar nem tanto à terra", de equilibrar as várias dimensões da nossa vida.

Além disso, se a questão monetária não fosse um conceito importante, não existiria um deus do comércio... 

~ Moeda com Hermes de um lado e um bode do outro, 460-450 AEC. ~

junho 17, 2012

Máximas Délficas (parte 1) - Casamento

Ainda no clima do mês dos namorados, vamos refletir sobre três das Máximas Délficas que parecem um tanto controversas com relação ao casamento:
9. Pretenda se casar (Γαμειν μελλε)
Esta máxima não estipula que você case, apenas deixa aberto uma intenção. "Pretenda se casar" poderia ser entendido como "pretenda dar continuidade à sua vida, ter estabilidade e maturidade, ter uma família e se apaixonar", mas - historicamente - esse "pretenda se casar" era uma sugestão importante pelo fato de ser a maneira que se conhecia antigamente de gerar filhos como um dever cívico: o de produzir herdeiros legais e adultos preparados para desempenhar suas responsabilidades com a cidade. E é dessa forma que prefiro entender a sentença. (Ainda assim, para alguns filósofos gregos era melhor não se casar, para ter tempo de filosofar em vez de ter que cuidar dos deveres do lar...)
Uma alternativa pessoal de tradução que já encontrei foi "Casar-se é doce" (μέλι = mel), mas acredito que a diferença de 'meli' pra 'melle' é significativa o suficiente para não considerarmos que se trate da primeira.
É importante lembrar aqui que o casamento está no sentido de compromisso, não necessariamente do casamento em lei (ou seja, heterossexual). Trata-se de lembrar do mito das almas-gêmeas de Platão, em que as metades podem ser as duas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, mas que elas sempre querem se encontrar para serem completas novamente.
67. Seja mestre em banquetes nupciais OU Deixe o casamento prevalecer (Γαμους κρατει)
Acredito que essa máxima se refere à importância "psicológica" do casamento. Uma vez que o casamento na antiguidade implicava no início de um novo OIKOS/lar ("quem casa, quer casa"), a cerimônia (o banquete) era o que estabelecia a fundação da comunidade -- de 'oikos' para 'demos' e desta para a 'polis'. O que a máxima pode estar dizendo é que o casamento como princípio deveria ser a primeira preocupação nas nossas mentes. 'Gamous' é casamento (a cerimônia de matrimônio, o banquete de núpcias) em geral, não especificamente o seu, e - em algumas obras de Ésquilo, Tucídides e Platão - encontramos 'kratei' traduzido como 'prevalecer', então outra tradução poderia ser "Deixe o casamento prevalecer", pois as primeiras decisões devem ser tomadas dentro da nossa casa. Não adianta ser um excelente orador político na rua se dentro da sua própria casa as pessoas não sabem se governar e se organizar para o bem do lar.
95. Guie sua esposa OU A mulher é o princípio (Γυναικος αρχε) 
A intenção por trás disso é para cada pessoa da casa saber seu papel e desempenhá-lo. Na Grécia Antiga, principalmente em Atenas, o marido era encarregado da família e era quem tinha que interagir e fazer os negócios com as pessoas de FORA da casa. A esposa mantinha os negócios e os afazeres DENTRO de casa, embora o marido pudesse ser consultado e opinar também. Portanto, ela não conhecia muito da vida lá fora e precisava de orientação nesse aspecto. O que se entendia é que: contanto que ambos esposos fossem gentis e respeitosos um com o outro e desempenhassem seus papéis no melhor de suas habilidades, o lar tinha uma melhor chance de prosperar. Já hoje, se quisermos ter um lar harmonioso, suave e eficiente, dá para conseguir isso sem ter uma pessoa guiando a outra. Uma parceria seria capaz de preencher essa intenção em seu máximo. É uma questão mais cultural, que era o jeito que eles conheciam de dar certo (de fazer a casa e a cidade funcionar), e que hoje encontramos outra forma (provavelmente melhor). Além disso, antigamente aconteciam muitos casamentos arranjados, por razões cívicas e financeiras. Neles, as noivas (também principalmente em Atenas) eram adolescentes -- ou seja, precisavam mesmo serem guiadas pelos maridos que eram bem mais velhos, muitas vezes amigos dos pais da noiva. (Claro que idade não garante maturidade, mas aí é outra discussão...)
Agora, tem a questão da tradução também, que inverteria toda a máxima! 'Gynaikos' = mulher ou esposa; 'Arkhê' = governar, guiar (se vier de 'arkhô') ou começar, iniciar (exemplos: "en archê ên ho logos" = "no princípio era o verbo"; arquétipo = marca inicial). Nesse sentido, considerando que as mulheres dóricas eram as que traziam os guerreiros ao mundo, a tradução poderia ser "comece com a mulher" ou "a mulher é o começo". (Primeiro as damas!) "A mulher é o princípio", aliás, cabe bem melhor na ideia de religião baseada na natureza como é o paganismo, mais do que na ideia patriarcal das religiões abrahâmicas.

Pretendo trazer outras máximas agrupadas em assuntos para falarmos delas aqui. Se você quiser entender mais um pouco antes, leia as notas explicativas da tradução e a lista das 147 máximas dispostas no site http://www.helenos.com.br/Home/etica/maximas-delficas . Até lá!

junho 10, 2012

O Trânsito de Afrodite


Semana passada tivemos um alinhamento raro do planeta Vênus e esta semana teremos o dia dos namorados. Então imagino que caiba falarmos das andanças de Afrodite. E, no caso, da Afrodite na sua qualidade de mãe de Eros (o amor), nem tanto pelos seus outros epítetos. Mais especificamente, gostaria de falar sobre as suas companhias.

Quem é a "turma" de Afrodite? Com quem ela anda? Quem sempre a acompanha? Quais suas "amigas de infância"?
Graças
Detalhe das Graças, em foto de Helen Sotiriadis.
Quando Afrodite surgiu, ela foi recebida pelas três Horas. Elas quem a vestiram e a adornaram quando ela surgiu no mar. Essas foram as primeiras, que ainda andam com ela. As Horas são as deusas das estações e das porções naturais de tempo. Enquanto Deméter nos dá os frutos, na companhia das Horas, Afrodite nos dá as flores, com suas cores e beleza, principalmente a rosa, com sua essência voluptuosa e suas pétalas envolventes. Assim como os frutos têm sua hora de maturar e as flores têm sua hora de desabrochar, o amor precisa amadurecer para ser colhido, não pode ser forçado antes do tempo, antes da(s) hora(s). Afrodite e as Horas chegam juntas.

Depois a deusa Peitho juntou-se ao grupo. Antes que você pense besteira pela coincidência do nome, Peitho vem do grego e significa algo como uma delicada persuasão, uma vitoriosa eloquência. Ela que nos dá a capacidade de encantar o ser amado com palavras convincentes. Mas, ainda que seja uma persuasão poderosa, ela é doce, suave, uma conquista por consentimento (nunca pela força). O amor do reino de Afrodite só existe quando é concedido por livre e espontânea vontade - mesmo que depois você se sinta deliciosamente acorrentado ao seu amante.

E, por falar em consentimento, outras que se uniram à turma foram as Cárites. O verbo "charein" significa rejubilar-se e o nome "charis" significa uma graça ou favor livremente oferecido. Não tem muito a ver com o significado condescendente que adotou a palavra 'caridade' na cultura judaico-cristã. As Cárites são Agléia (esplêndida beleza), Eufrosina (boa disposição, alegria de pensamentos) e Tália (fartura, abundância). É por conta dessa boa disposição que, quando vemos alguém todo sorridente, já dizemos logo que ele/a "está amando". Algumas fontes diziam que as Cárites eram filhas do rio Lethe, o rio do esquecimento, o que explicaria o fato de os amantes esquecerem-se dos problemas quando Afrodite e suas amigas os movem. Essas amigas, aliás, eram as responsáveis pela toalete de Afrodite. Segundo Hesíodo, elas as banhavam e untavam seu corpo com óleos perfumados de fragrância doce. Homero também relata que, após Hefesto surpreendê-la com Ares na cama, as Cárites banharam e untaram Afrodite e a vestiram em trajes belíssimos. Essa áurea perfumada acrescenta um certo charme irresistível nos domínios do amor. As Cárites adoravam dançar juntas, principalmente nas noites enluaradas. E a noite nos lembra a outra amiga de Afrodite: Aidos.

Aidos era filha da deusa  Nyx (Noite). Ela era a deusa da modéstia, da vergonha, do auto-respeito. Ela guardava com suas asas escuras os segredos do amor e dos amantes. O amor é associado ao período noturno, às noites de lua, e não às claras vistas do sol. Um amor de verdade, um amor 'afrodisíaco', implica na presença dessa outra amiga da deusa, com um elemento de modéstia. A maioria dos animais tem uma vida sexual reservada e regulada; alguns se entocam em cavernas para se acasalar, outros têm regras de quem no bando pode fazê-lo. Quando Platão diz que a Afrodite Urania (celeste) era a do amor nobre e a Afrodite Pandemos (do povo) a do amor comum/público, faz-nos pensar que, para os gregos, o que classificava um amor como nobre era justamente a presença da deusa Aidos no ato de amor. A capacidade de sentir vergonha -- ao contrário do que pode-se pensar -- faz o amor aumentar. Quando Aidos não está, não se trata de estar livre de vergonhas, e sim de uma falta-de-vergonha mesmo, o que não é nada legal. A vergonha de Aidos é a do auto-respeito, da sensibilidade, então não tê-la é diferente de ser desavergonhado, tem a ver com a modéstia de reconhecer-se e sentir-se entregue. A intimidade de compartilhar um segredo íntimo torna o relacionamento mais pessoal, mais amoroso. 

Nocivo mesmo seria o sentir vergonha de si próprio, perder o prestígio (essa não é uma vergonha "aidos", é "aischros"), algo feio, deformado, desonroso, e que Platão diz que não tem nada a ver com a experiência do amor de Eros. Segundo Dodds ("Os gregos e o irracional"), a cultura helênica não girava em torno da culpa - como é a dos cristãos - mas girava em torno dessa vergonha devastadora de perder a consciência tranquila e a consideração pública. Os gregos tinham princípios, e só alguém com princípios pode se sentir desonrado por ter sido irresponsável, egoísta ou covarde. Quem vive sem nenhuma convicção espiritual ou moral, não tem sequer a vergonha Aidos, que dirá a outra! Aquela vergonha esmagadora de "aischros" é o que a revolução sexual tentou combater, e não a vergonha auto-respeitosa de "aidos". Uma coisa é a repressão, outra é a modéstia. Com Aidos ao lado de Afrodite, o auto-respeito e o amor andam de mãos dadas. É Aidos quem nos faz enrubescer, e esse rubor, essa face corada, demonstra o quanto as deusas não atuam apenas na alma, mas agem também sobre o nosso corpo. Em "Os Trabalhos e os Dias", Hesíodo menciona o abandono da terra por Aidos e Nêmesis como a razão para os sofrimentos dos humanos, que ficam desamparados contra os males. Aidos é quem preserva a pureza da alma e torna o ato do amor de Afrodite algo numinoso, sagrado, em uma mistura de sexo, sensualidade e religião. Uma união do êxtase com o divino. Portanto, essa união deveria ser algo ritual e secreto, e não algo realizado de qualquer jeito num motel de beira de estrada e exposto na televisão...

Modéstia, aliás, me lembra o fato de a belíssima Afrodite ter sido dada em casamento a Hefesto, um deus que é considerado "feio", talvez por ser cocho. (Um parênteses aqui para lembrar de Machado de Assis e seu Brás Cubas resmungando da moça "Por que tão bela, se coxa? Por que coxa, se bela?", hehe!) Afrodite considerava indigno alguém que só concedesse sua beleza para alguém que fosse tão belo quanto ele mesmo. Você precisa ser modesto para não ficar 'se achando' - e correndo o risco de ser castigado por Ela por conta de seu orgulho e arrogância. Eis mais uma lição de Aidos através da escolha de parceiro amoroso que Afrodite fez. 

Graças
Hipócrates (segundo citação de Viktor Salis) dizia que "quem não ama, adoece", que "a mais grave fonte de doença é ser falso com seus sentimentos com os outros e consigo" e que "entregá-los a qualquer um e de qualquer jeito é plantar dentro de si a desvalia, que resultará numa alma e corpo doentes".
Assim, quando vocês foram celebrar o amor no dia 12 de junho, lembrem-se de todas as companhias que caminham junto a Afrodite, e espalhem o amor no momento certo, com as palavras certas, com disposição, fartura e beleza, resguardando o auto-respeito e a honra de estar na presença de verdadeiras deusas agindo na sua vida, movimentando sua alma, enrubescendo seu rosto e levando seu corpo a experimentar um êxtase sagrado e secreto.

Afinal, ela, Afrodite, é uma deusa que realmente deixa "flores nos lugares que pisou"...

Hermafrodito adormecido
Detalhe de Hermafrodito adormecido, foto de Helen Sotiriadis.

junho 05, 2012

Voa, voa, "brabuleta"...


"A asa é o elemento corpóreo que é mais assemelhado ao Divino, e a qual por natureza tende a se elevar bem alto e carregar o que gravita para baixo até a região superior, que é a habitação dos Deuses. O Divino é Beleza, Sabedoria, Bondade, e tudo o que é semelhante a isso; e por essas qualidades a asa da alma é nutrida, e cresce em ritmo acelerado; mas quando alimentada com o mal e a impureza e o oposto do que é bom, a asa desgasta-se e cai." (Platão, trecho de "Fedro")
Hoje estava vendo uns anéis em formato de asas e percebendo novamente como as pessoas só associam asas a anjos, como se estivéssemos cristianizando as imagens quando as ilustramos com asas. Para começar, até anjo vem do grego (angelos = mensageiro). Segundo, várias deidades gregas são representadas aladas: Eros, Psiquê, Nikê, Hermes, Hypnos, Íris... Terceiro, a simbologia das asas é muito mais antiga do que se imagina. A associação mais comum é da alma com asas e, em casos particulares, com borboletas. Então é desse mais geral até esse mais específico que vou recordar aqui: almas - asas - borboletas.

No Egito Antigo, uma ave com cabeça humana correspondia à alma de cada pessoa. Em concepções populares da África do Norte, o corpo possuía duas almas, sendo que uma seria o suporte onde a outra 'pousaria' na forma de um pássaro, abelha ou borboleta. Para os yacutes, tchuvaches e outros povos da Estônia, a alma sai pela boca de quem dorme, para viajar, sob a forma de um inseto ou borboleta. A maioria dos povos turco-mongóis acredita que a alma pode viver separada do corpo sob a forma de um animal, inseto, pássaro ou peixe. 

As asas nos lembram o alçar voo, a leveza, o alívio, a liberdade. Quando o xamã sai do corpo é nesse sentido de liberação e poder. As asas nunca são recebidas e sim conquistadas - através de ritos iniciáticos. Os taoístas acreditavam que só os que tinham a leveza e o poder de voar chegariam às Ilhas dos Imortais - o corpo sutil alçaria voo como um embrião de imortal; por isso seus hábitos seriam parecidos com os das aves. O Rig-Veda hindu diz que "a inteligência é o mais rápido dos pássaros" e um dos Bramanas diz que "aquele que compreende tem asas". No cristianismo, claro, os anjos são alados e o Espírito Santo é representado por uma pomba. Em suas escrituras, fala-se sobre as asas de Deus, as quais designam seu poder, beatitude e incorruptibilidade (vide, por exemplo, o salmo 16,8 "tu me protegerás às sombras de tuas asas"). E, se o homem é imagem e semelhança desse deus, ele teria suas próprias asas, mas as teria perdido ao pecar; caso se redima, as recupera para elevar-se ao divino. Como vimos na citação do início da postagem, essa ideia cristã muito provavelmente teve origem no Fedro de Platão. Já as asas dos calcanhares de Hermes simbolizaria o viajante noturno, o voo onírico, o instante dinâmico. Os santos budistas também tinham essa ideia de 'pés ligeiros' a viajarem pelos ares; e os contos de fadas também falam das botas de sete léguas. As asas nas omoplatas lembram espiritualização, as nos calcanhares lembram dinamismo. Na literatura, tanto o poeta quanto o profeta desenvolveriam asas no momento de sua inspiração.

Quanto ao simbolismo da borboleta, podemos pensar na saída da crisálida como uma saída do túmulo, uma ressurreição em outra forma, desta vez alada: a alma liberta de seu invólucro carnal. Entre os astecas, a borboleta é um símbolo da alma que escapa pela boca de quem está morrendo. Se uma borboleta brinca entre as flores, eles entendiam como a alma de um guerreiro morto em batalha, o qual acompanhava o sol até o meio-dia e depois descia à terra em forma de colibri ou borboleta. No Zaire central, fala-se de uma analogia da vida humana ao ciclo da borboleta: lagarta pequena na infância, lagarta grande na maturidade, crisálida na velhice, casulo no túmulo, borboleta quando alma liberta, e ovos de borboleta quando reencarnando. Entre algumas populações turcas na Ásia central, as quais sofreram influência iraniana, acreditava-se que os defuntos poderiam aparecer na forma de uma mariposa. Nos afrescos de Pompeia, Psiquê era representada como uma menininha alada, semelhante a uma borboleta - talvez também porque a mesma palavra grega "psique" servia para significar tanto "alma" quanto "borboleta".

Quando uma borboleta passa por mim, sempre me vem a imagem de alguém que já morreu, então considero uma saudação que aquela pessoa me faz, através daquelas asinhas que farfalham ao meu redor. Não sei vocês, mas eu reconheço a figura das asas como algo muito mais profundo e anterior à simples associação aos anjos. E espero que todos tenham essa liberdade de desenhar asas nas almas sem sentirem que estão sendo influenciados por uma crença que na verdade foi antes influenciada pela nossa. Fora que a filosofia de Platão fica acima de qualquer filiação religiosa...

Assim termino esses 'pensamentos em voz alta', e adejo meus cílios em um beijo de borboleta a todos que aqui me leram.


(PS.: O título à moda de Chayene da novela fica só por publicidade. *rsrs*)

maio 15, 2012

Até os contos de fadas são helenos

Duas traduções em uma, a primeira de uma notícia recente em grego e a segunda da wiki em inglês:

Chapeuzinho Vermelho tem 2.600 anos e... é grega!
Antropólogos e biólogos uniram forças para decidir a origem dos contos de fadas e focaram a atenção nas variações transferidas de uma cultura para outra. Branca de Neve e os Sete Anões, Cinderela, e principalmente Chapeuzinho Vermelho e outros heróis da infância atraíram e mantiveram a atenção dos cientistas sobre eles.

A conclusão, que veio de um extenso processo, é de que cada parte do enredo vem de uma fonte comum e única.

O Dr Jamie Tehrani, antropólogo da Universidade Durham, e sua equipe cuidadosamente examinaram 35 versões conhecidas da Chapeuzinho Vermelho. A narrativa europeia apresenta o relato de uma menininha, cujo lobo mau se disfarça como sua vovó favorita e tenta lhe fazer mal. Os chineses trocam o animal perigoso e astucioso para um imenso tigre. No Irã, por causa do preconceito religioso, o caso é estrelado por um menininho.

Então, ao contrário da visão de que o conto que acompanha os pequeninos em todas suas refeições infantis surgiu no século XVII, Dr Tehrani argumenta fortemente que todas essas mudanças tem um ancestral comum de mais de 2.600 anos.

"Na época, os famosos e amados contos de fadas se tornaram algo como um corpo humano. O relato mais antigo encontramos nas fábulos de Esopo, de 6 séculos AEC. Temos certeza de que em algum lugar jaz a razão para esse ancestral supostamente descender de 'O Lobo e as crianças'."

De acordo com a pesquisa, então, o tataravô de Chapeuzinho Vermelho foram todos os contos de Esopo!

Quem era Esopo?

Esopo era um antigo contador de histórias grego, um dos principais a "ensinar mitologia". As evidências anedóticas sobre sua vida não são nada práticas e muitos ainda duvidam de sua existência. Os mitos eram sempre orais, então nem mesmo se salvou um registro escrito deles. Esopo apareceu no século VI AEC e provavelmente nasceu de uma família de escravos em 625 AEC na Frígia. Sua morte provavelmente foi em Delfos, quando em 560 AEC foi enviado para lá pelo Rei Croesus para consultar um oráculo. Ele teria sido acusado de heresia e sentenciado à morte, sendo destruído no topo do monte Parnaso.

Os contos de fadas armazenados em nossos cérebros...

O professor alemão da Universidade de Minnesota Tzak Zipes, que devotou muito de sua vida procurando a origem dos contos de fadas que fascinaram todas as crianças a despeito de raça, religião e origem, fala sobre a excelente qualidade dessa pesquisa: "Acho que todos esses contos podem ajudar os pais a entender como explicar o risco e o aumento dos atos de violência. É claro que as adaptações são diretamente relacionadas ao nosso meio-ambiente. Por essa razão, toda a informação é transferida de geração a geração e armazenada em nossos cérebros. Dessa forma, os mitos de Esospo, que 'viajaram' pelo mundo e foram adaptados às épocas modernas, ainda estão entre nós! "
(Fonte: http://www.thebest.gr/news/index/viewStory/12343225/04/2012, tradução da Álex)


Cinderela também é grega
"Rhodopis" (Ροδώπις) é a versão antiga e original do conto da Cinderela. Registrada pela primeira vez no século I AEC pelo historiador grego Strabo, ela é considerada o mais antigo relato de Cinderela.

# Enredo:
Rhodopis (a "de bochechas rosadas"), uma escrava grega, trabalha na casa de seu mestre egípcio. Embora gentil, seu mestre mais velho passa a maior parte do tempo dormindo, e - portanto - não fica sabendo do tratamento ríspido dado à escrava pelas mãos de suas outras servas. Por Rhodopis ser bela e estrangeira, as outras caçoam dela e lhe dão ordens pela casa.
Depois de seu mestre ver Rhodopis dançando habilmente sozinha, ele lhe dá um par de sandálias trançadas de rosas. As outras servas ficam ressentidas desse tratamento dele e tratam Rhodopis de forma mais severa do que antes.
Um dia, o faraó Ahmose II convida o povo do Egito a uma celebração no rio Mênfis (Memphis). As outras servas impedem Rhodopis de ir com elas, dando-lhe uma longa lista de tarefas para completar.
Enquanto ela está à beira do rio lavando roupa, suas sandálias se molham e ela as coloca ao sol para secar. De repente, o falcão Hórus se arremete abaixo, agarra uma das sandálias, e voa com ela.
Rhodopis guarda a outra sandália em suas vestes.
Durante a celebração no Mênfis, o falcão solta a sandália no colo do faraó. Percebendo que era um sinal de Hórus, ele decreta que todas as donzelas do reino devem experimentar a sandália, e que ele se casará com aquela cujo pé couber nela.
A busca do faraó pela dona da sandália o leva até a casa de Rhodopis. Embora ela esteja cavalgando quando vê o barco do faraó, ele a vê e pede a ela para experimentar a sandália. Depois de demonstrar que cabe nela, ela puxa o outro lado do par, e o faraó declara que se casará com ela.
Esopo tem uma breve menção nesse relato. Quando ela era uma escrava antes de ir para um lar egípcio, Rhodopis teria conhecido Esopo, que lhe contou muitas histórias.

# Contexto histórico:
O geógrafo grego Strabo (64/63 AEC a +/- 24 EC) foi o primeiro que relatou o conto da garota greco-egípcia Rhodopis, considerado como a primeira variante do conto de Cinderela. Outro relato de Rhodopis sobreviveu nas escritas do autor romano Aeliano (175 - +/- 235 EC), mostrando que o tema de Cinderela continuou conhecido pela antiguidade. Talvez as origens da figura desse conto de fadas pode ser traçada a uma cortesã trácia de verdade, Rhodopis, que viveu na época do faraó Amasis (570-536 AEC) e conheceu o antigo contador de histórias Esopo. Rhodopis é também a esposa do épico Asam, que morreu e ressuscitou e recebeu uma nova esposa chamada Rhodopa.
(Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Rhodopis, tradução da Álex)

[Imagem]: pintura em prato grego de 490-480 AEC


março 11, 2012

A dança como ritual (2º texto)



Os helenos acredita(va)m que a dança foi inventada pelos Deuses, como um presente dado aos mortais, e, portanto, associavam-na a cerimônias religiosas. Os textos antigos da época indicam que a dança era levada em alta consideração, principalmente por suas qualidades educativas. A dança era fundamental para os que se iniciavam em um círculo e ela terminava com os dançarinos encarando um ao outro. Quando não dançavam em círculo, eles seguravam suas mãos alto ou ondeavam-nas para um lado e para o outro. Eles também costumavam segurar címbalos ou um lenço nas mãos. Enquanto dançavam, cantavam, às vezes em uníssono, às vezes em refrão, repetindo o verso cantado pelo dançarino líder. Os que assistiam se juntavam a eles, marcando o ritmo ou cantando. Os músicos compunham letras para se adequar à ocasião. 

Em Roma, Marte tinha os "sacerdotes saltarines", que saltavam para que as plantas crescessem, em março. Cada dançarino levava uma espada no cinto, uma lança na mão direita e um escudo trácio na mão esquerda. Faziam movimentos rítmicos ao som de uma flauta e cantavam hinos tradicionais. Os escudos eram cópias do escudo de Marte que caiu do céu e foi conservado no fórum como garantia da continuidade do império.

Na Grécia, a "Dança Pírrica" (Πυρρίχιος) era executada na Panatenaia, festival a Atena, onde os dançarinos armados representavam suas tribos. Diz-se que a própria Atena dançou esse ritmo em celebração pela vitória dos olimpianos sobre os gigantes (a Gigantomaquia). Como competição atlética, existiam três categorias; meninos, imberbes e homens. O prêmio de cada um dos três desafios era um touro e 100 dracmas (quase uns 10 mil reais, creio eu). Havia um patrocinador que pagava pelo treinamento dos dançarinos de sua tribo. Os bailarinos tinham uma coreografia com movimentos de ataque e defesa derivados das artes guerreiras. Os tocadores de aulos (uma espécie de flauta dupla) acompanhavam a dança.

Eis algumas pinturas com o tema da Dança Pírrica [clique nas imagens para aumentá-las]:

Alma Tadema - A Pyrrhic Dance (1869)
Jean León Gérôme - The Pyrrhic Dance (1885)

Nonnus, na Dionisíaca, conta do casamento de Harmonia, filha de Ares, no qual "seu pai [Ares] dançou de alegria por sua garota, despido de sua armadura, um Ares dócil [...]: ele sacudia seu elmo de crina de cavalo, tão familiar na batalha, e usava grinaldas sem sangue em sua cabeça, lançando uma alegre canção para Eros."

Se até os deuses da guerra dançam e Nietzsche afirmava só acreditar em deuses que soubessem dançar, por que não espelharmos o divino e entrarmos na dança com (e para) Eles?