janeiro 24, 2012

O voo da flecha (Apolo e o xamanismo)


Continuando o assunto da postagem sobre o êxtase apolíneo, e puxando o tema levantado pela Inês no blog Cerealia, quero trazer alguns trechos de Mircea Eliade no "História das crenças e das ideias religiosas", volume 1:
«Tem-se falado do "delírio pítico", mas nada indica os transes histéricos ou as "possessões" do tipo dionisíaco. Platão comparava o "delírio" (maneîsa) da pítia à inspiração poética das musas e ao arrebatamento amoroso de Afrodite. Segundo Plutarco: "O Deus contenta-se em colocar na pítia as visões e a luz que ilumina o futuro; é nisso que consiste o entusiasmo".»
Mais para frente, no texto:
«O "êxtase" apolíneo, embora provocado às vezes pela "inspiração" (isto é, a posse) pelo deus, não implicava contudo a comunhão efetuada no enthousiasmós dionisíaco. Os extáticos inspirados ou possuídos por Apolo eram conhecidos sobretudo por seus poderes catárticos e oraculares. (Em compensação, os iniciados nos mistérios de Dioniso, as bakkheia, jamais davam prova de poder profético.) Observou-se o caráter "xamânico" de certas personagens semimíticas, tidas como adoradoras por excelência de Apolo. O hiperbóreo Ábaris, sacerdote de Apolo, era dotado de poderes oraculares mágicos (por exemplo, a bilocação). Heródoto escreve que ele "passeou por toda a Terra e a sua famosa flecha sem tomar nenhum alimento", mas, desde Heráclito afirmava-se que Ábaris voava sobre uma flecha. Ora, a flecha, que desempenha determinado papel na mitologia e na religião dos citas, está presente nas cerimônias xamâncias siberianas; ela é igualmente a verdadeira arma de Apolo.»
E ainda:
«Walter Otto observava que a obtenção dos conhecimentos ocultos "está sempre associada a uma exaltação do espírito", e isso é verdadeiro mormente para o êxtase xamânico, o que explica a importância capital da música e da poesia em ambas as tradições. Os xamãs preparam seu transe cantando e tocando tambor; a mais antiga poesia épica centro-asiática e polinésia teve por modelo as aventuras dos xamãs em suas viagens extáticas. O principal atributo de Apolo é a lira; ao tocá-la, ele encanta os deuses, os animais selvagens e até as pedras.»
Eliade cita alguns personagens cujos mitos apresentam transes extáticos plausíveis de serem confundidos com a morte, bilocação, metamorfoses, descidas ao submundo etc, como: Arísteas de Proconeso, Hermotimo de Clazômenas, Epimênides de Creta, Pitágoras e Orfeu. Então vamos ver quem eram esses que ele mencionou...


Aristéas de Proconeso: Heródoto conta que o 'Ari' fez uma viagem durante a qual foi tido como morto - sumiu sem deixar rastros - e depois voltou, desaparecendo outra vez. Heródoto soube disso por meio dos citas, que souberam pelos issédones. Nos 3 livros "Arimaspea", escritos por Arísteas/Aristéas, os issedos contam sobre um povo fantástico (os arimaspos) que tinham um olho único na testa e viviam no extremo norte da Europa; os arismaspos contam sobre uns guardiões de ouro (os grifos); e os grifos contam sobre seus vizinhos (os hiperbóreos).

De Hermótimo de Clazómenas se dizia que sua alma abandonava o corpo para viajar livremente, e assim ficava por muito tempo antes de regressar. (Assim contavam Plutarco e Plínio, o Velho.) Os antigos diziam também que ele seria uma encarnação anterior de Pitágoras.

Sobre Epimênides alegavam também se dizia que ele podia viajar para fora do corpo e que tivera vidas passadas. Dizem que uma vez ele dormiu por 57 nos dentro de uma caverna.

De Pitágoras e Orfeu, acredito que nem preciso falar.

Um fato pessoal curioso é que, no sonho que tive com Apolo após tocar uma piton albina e lhe fazer uma prece (numa visita noturna ao zoológico de Belo Horizonte em plena lua cheia), ele estava vestido nos ombros com uma pele de animal peludo, numa época em que eu desconhecia sua relação com o xamanismo. Se à primeira vista pode nos parecer incompatível, quando pensamos melhor, faz muito sentido a relação racional do helenismo - dizem que Apolo é o "mais helênico dos deuses" - com uma prática extática como o xamanismo. Mesmo na época em que eu era assistente de xamã, era comum aparecerem deuses gregos nas minhas viagens ("exaltações do espírito", como disse Otto), embora o próprio Apolo só tenha me aparecido numa meditação durante uma aula de yoga, e não em uma viagem xamânica.

Para mim o xamanismo nunca foi uma "religião", e sim uma prática, que está presente em várias religiões. Assim como o reconstrucionismo também não é religião em si, mas uma abordagem, uma forma/maneira de se praticar uma religião politeísta antiga, seja helênica, celta, nórdica, egípcia etc. Por isso não existe uma incompatibilidade a ponto de se engessar em um ou outro sistema de crenças para não causar desequilíbrio. Se Apolo te conduz a uma catarse, um delírio, um transe, uma inspiração, um arrebatamento, um entusiasmo (palavra grega que significa 'ter um deus dentro'), reprimir-se com medo de estar extrapolando os limites da razão é negar um presente cheio de encantos e fechar os olhos a "as visões e a luz que ilumina o futuro".