maio 24, 2013

Mito, História, Religião

"Onde eu vejo interessantes incorporações de arquétipos que normalmente seguem jornadas similares às dos antigos heróis e que trazem ideias tanto sobre a virtude quanto sobre o vício para uma audiência moderna, outros vêem 'apenas' relatos de ficção. Onde outros vêem os antigos heróis como pessoas históricas dignas de veneração, eu sou simultaneamente cética de sua historicidade enquanto aceito a sua importância no contexto helênico. Eu apenas assumo uma abordagem um pouco mais metafórica. Se você é do tipo que tem que ver ossos e túmulos, não me importo. Eu simplesmente não preciso disso para assimilar a Verdade das histórias.
Isso significa que penso que os deuses são apenas personagens de historinhas? Claro que não. Isso significa que eu acho que os personagens nas histórias são deuses? De novo, não. O Thor dos quadrinhos e do cinema é um alienígena. O Thor dos Eddas é um deus. De fato, a maioria das representações cinemáticas de Apolo me causa arrepios porque elas não condizem com meu entendimento nem das fontes materiais primárias nem do modo que ele tem interagido comigo. [...]
Muitos de nós olha para a mitologia, digamos, dos abraâmicos, como uma coisa metafórica. Duvidamos e somos céticos de coisas como um Adão e uma Eva históricos, um arbusto que queima e não se consome, uma inundação global e um homem com uma arca. E, de fato, uma abordagem literária da bíblia cristã é algo que é tão alheia à minha crença, que eu não entendo como uma pessoa pode acreditar nisso. Mas as pessoas acreditam e, enquanto isso as tornar melhores seres no mundo e enquanto isso as preenchê-las/realizá-las sem prejudicar os outros, não tenho problemas com isso. Claro, isso me confunde e não é a minha praia, mas não posso dizer a elas no que acreditar mais do que elas podem dizer pra mim o mesmo. Do meu ponto de vista, se os mitos vão ser metafóricos, eles vão ser metafóricos e pronto. Não posso apontar a mitologia de outra pessoa e dizer 'isso aí é metafórico, mas a minha é histórica', porque eu não posso provar isso e não posso fazer isso fazer sentido pra mim.
Mas, de novo, ver os mitos como metáforas não significa que eu acredito que os deuses são apenas personagens de historinhas. Eles são meus deuses. Eu falo com eles, eu sinto sua presença, eu conheço pela experiência que eles são Reais. Eles não são reais para mim como o Samwise Gamgee. Eles são reais pra mim como meu gato é real, mas eles normalmente falam conosco em metáforas e relatos/histórias. O problema, acho, é que - como acontece com os católicos e os protestantes - estamos usando o mesmo material como fonte e muito da mesma linguagem, feriados sacros e nomes para o divino, mas não estamos praticando a mesma religião.
É útil discussões como esta para sermos respeitosamente curiosos sobre os pontos nos quais discordamos. Na minha experiência, é uma boa forma de encontrar algo em comum ou ao menos de cultivar compreensão mútua onde há pouca coisa em comum." 
(por Sunweaver, trechos de http://www.patheos.com/blogs/agora/2013/05/making-light-help-me-joe-campbell-youre-my-only-hope/, tradução da Álex)

Esse assunto dos mitos e da ficção é algo que é sempre útil repetir. Volta e meia vemos coisas como comentários sobre uma personagem em uma postagem sobre uma deidade. Tipo uma vez que alguém publicou uma imagem clássica de Atena e um indivíduo comentou "deusa inútil, vive deixando os Cavaleiros em perigo", claramente confundindo-a com a personagem de cabelo roxo do anime Cavaleiros do Zodíaco. Provavelmente há também os que acham que a deusa Diana conviveu com a Mulher Maravilha e que a Xena namorou Ares. Ou, trazendo algo mais atual, vemos as pessoas que se perguntando de que deus são filhas e querendo atravessar uma espécie de véu das brumas após terem lido a série de Percy Jackson e os olimpianos...

Aqueles são personagens de ficção. Usam o nome e umas poucas características estereotípicas dos deuses originais, mas não são os deuses que cultuamos. Ao menos não os meus. É como o exemplo do Thor dos quadrinhos e o dos mitos. 

Se os deuses fossem ressoar nossa campanha contra o sujeito da C.D.H., eles olhariam para esses personagens cinematográficos e segurariam uma plaquinha "A Marvel não me representa". Ou isso:

[ Zeus ]

Outra questão é a própria simplificação dos mitos literários, como já falamos aqui no blog, achando que os deuses descritos na Ilíada em lados diferentes da guerra são inimigos até hoje. Falta leitura de fontes diferenciadas da literatura antiga, falta leitura de teóricos modernos recomendados, e falta experiência real com os deuses pela ortopraxia diária. Senão do que adianta apontar a incongruência das alegorias de religiões/crenças alheias e não questionar o simbolismo da sua própria? 

Quando a moça do texto acima cita Joseph Campbell no título do post, lembrando a história do "mitologia é como chamamos a religião dos outros", ela deixou claro do que iria falar. 

Muitos de nós devem se lembrar como foi sua mudança de paradigmas nessa área da vida. Eu me lembro que um dia achava que existia um só deus e que a reencarnação não fazia o menor sentido, achando um absurdo quem acreditava nisso - uma vez que a população aumentava e não apenas morria e voltava. Depois de um tempo, tudo foi mudando, não consegui mais conceber a ideia de um monoteísmo e não podia negar as evidências da reencarnação até para a física quântica. Um dia eu tirava dúvidas vocacionais no catolicismo, no outro não entendia como se podem repetir dogmas como os que ouvi de uma amiga adventista ao tentar explicar para outra uma espécie de hierarquia entre as 3 pessoas do seu deus. Mas um dia estivemos do outro lado, e - a exemplo do que acreditam os hindus - cada um tem o seu jeito e caminho para buscar a verdade e o sagrado. Por isso não costumo me envolver em discussões que atacam a crença que difere da nossa. Ataco a discriminação, a injustiça, a guerra santa, a tirania, o desrespeito, a imposição de interesses, mas não a fé, não aquilo que te faz querer ser melhor, não aquilo que te dá esperança e vira um sentido pra sua vida. Ninguém tem o direito de exigir que o outro pense igual a ele/a.

Dos meus amigos de adolescência, um foi ser padre em Roma, outro foi ser monge budista tibetano na Suíça, outro é bispo evangélico nos Estados Unidos, e eu conduzindo os helenos aqui no Brasil... E isso só dos amigos que eu sei onde foram parar. Como me disse uma amiga recente, essa é a minha "egrégora", foi com essas pessoas de destino tão aparentemente diverso - embora todos relacionados ao sagrado - que eu cresci. E talvez seja justo essa diversidade que tenha me atraído para um helenismo do métron, da justa medida, do equilíbrio, da reflexão racional... com um leve toque da tolerância que vejo no hinduísmo, mas o qual não me reverbera em outros pontos (para mim, deveras exigentes e pouco explicativos) de sua doutrina. 

E é essa reflexão racional e essa experiência real com o sagrado que me levam a saber distinguir os meus deuses dos seus homônimos personagens da ficção. Melina Eleni Kanakaredes Constantinides (que, por sinal, faz aniversário no mesmo dia que eu) pode ter dado uma belíssima Athena nas telonas, mas ainda prefiro os "olhos glaucos" da minha divina patrona. Aliás, como não amar uma divindade depois que você reconhece sua ação em sua vida e sente o 'en-thus-iasmo'  de 'ter um deus dentro'? Desejar a excelência virtuosa da areté se torna algo urgente para a gente se sentir cada vez mais próximo desse "mundo cheio de deuses" do qual falou Thales. 

E você, vai preferir ficar aí, acreditando num Kratos de videogame? ;-)