junho 26, 2011

"Quando Ela Roda..."

Depois de ver uma pergunta sobre superstições ligadas à lua e de me pedirem no MSN para falar sobre os daimones, resolvi juntar um pouco de cada coisa nesta postagem, visto que são assuntos que estão em parte relacionados. Haveria muito o que falar sobre os daimones, então vamos nos restringir aqui ao papel deles dentro dessa questão lunar.

A lua, para Platão, era uma entidade mediadora entre o Mundo Inteligível (o das ideias) e o Mundo Sensível (o material). No mito das almas gêmeas, ele compara o Sol com o masculino, a Terra com o feminino e a Lua com o bissexual ou o hermafrodita, enfim, algo que participaria dos dois pólos.
Xenócrates dividia o Universo em três, uma parte para o Sol e as estrelas, outra para a Terra e as águas e uma intermediária para a Lua e o ar lunar. A parte solar seria habitada pelos deuses, a terrestre pelos humanos, e a lunar pelos daimones - que possuem uma natureza similar à dos deuses e humanos. Já daí pensaríamos na associação comum (mais moderna) que se faz da palavra daimone com demônio e consequentemente o temor pela lua. Mas vamos ver mais alguns autores...
Para Hipócrates, o médico, a lua tinha uma localização central, como o diafragma do corpo.
Plutarco, um tanto semelhante a Platão, via a lua como bissexual, acreditando que ela era preenchida pelo Sol e que era ela quem semeava na Terra - como hoje percebemos que a luz do sol que reflete na lua e esta influencia nas águas. Quando o Sol semeasse novas mentes na Lua, a Lua criaria novas almas e as semearia na Terra, que forneceria a "mobília" do corpo físico. O corpo era visto como algo impotente, a mente como algo incapaz de sofrer, e a alma seria algo intermediário, a mistura dessas duas coisas.

Os antigos em geral pensavam também na lua como uma estrela similar à terra ou uma terra similar a uma estrela, e a chamavam de "território de Hécate, que é tão celeste quanto terrena", afirmando também que Hécate era a rainha dos daimones, visto que sem os daimones não existe comunicação entre deuses e homens, assim como, sem a lua, o universo se desuniria. E Hécate, como sabemos, é comumente associada com as bruxas, o que também justifica a superstição que existe do 'não olhar fixo para a lua' para não se tornar um 'lunático'.

Hécate possui muitos aspectos, mas como aqui estamos focando essa relação com os daimones, vamos especificar um pouco mais: Hécate era senhora dos 'fantásmata', que poderiam ser, por exemplo, as almas sem descanso a quem foi negado entrar no Hades por falta de um enterro apropriado, as almas daqueles que morreram antes da hora ('áoroi'), as almas daqueles que morreram violentamente ('biaiothánatoi'), ou mesmo os daimones dos ancestrais. "Uma multitude de almas habita dentro de Hécate".

Outra coisa em que muitos deles acreditavam era que a Lua possuía três fendas: o Golfo de Hécate (onde havia punições), os Portões do Céu (os Campos Elísios) e os Portões da Terra (a casa lunar de Perséfone). Quando alguém morresse, primeiro a alma se separaria do corpo na Terra (reino de Deméter) e depois se separaria da mente na Lua (reino de Perséfone). Pensar nesses fins, que lembram o pós-morte, pode ter sido também associado a algo ruim que gerou superstições com a lua.

E, por falar na relação com Perséfone e da morte como um fim, outro sincretismo que se fazia com Hécate era o de equacioná-la, na antiguidade remota, às Moiras/Destinos (que eram a "Alma do Cosmos"). Plutarco relata um mito em que um daimon conta a Timarchus que existem quatro regiões dentro do universo, atadas por três 'links'. As regiões seriam a Vida, o Movimento, o Nascimento, e a Deterioração. A vida e o movimento seriam ligados por uma unidade no invisível, na superfície da esfera celestial; o movimento e o nascimento seriam ligados pela mente no sol; e o nascimento e a deterioração seriam liagdos pela natureza na lua. Cada uma dos Destinos presidiria sobre um desses laços: Atropos pelo da Esfera, Clotho pelo do Sol e Lachesis pelo da Lua.

O curioso é que parece que a lua só foi associada a Hécate no século I da Era Comum (quando já existia o cristianismo e os seus 'medos' naturais). Três séculos antes, ela era associada a Ártemis. Até porque pensamos em Ártemis como a lua crescente e Selene como a lua cheia (Hécate seria exatamente a ausência de lua, a lua nova ou 'lua negra', o finalzinho da fase minguante).

No mito de Er, citado em "A República", de Platão, a alma de Er fica dias reunindo informações, com ele aparentemente morto, e nesse tempo ele vê a Fortuna (Tyche) com sua Roda do Destino, decidindo sobre as novas encarnações das almas.

Então, se Hécate tem o papel de escoltar as almas e era igualada às Moiras, e se os deuses gregos eram retratados como jovens (como já mencionei em outro momento aqui no blog), faz todo o sentido a letra da música composta pelo Renato Rocha pro MPB4, sobre a lua: "A Lua, quando ela roda, é Nova" e "mente quem diz que a lua é velha".

Fica o vídeo para quem nunca ouviu ou quer lembrar:



Referência para o texto:
"Hekate Soteira: A Study of Hekate's Roles in
the Chaldean Oracles and Related Literature",
por Sarah Iles Johnston, 1990 (Parte I, Cap. 3).