julho 30, 2013

Antigos Cultos de Mistério - parte 2

Os antigos cultos de mistérios não eram uniformes, havia diferenças importantes entre eles, com relação inclusive à sua organização social, mas nenhum se aproxima do modelo cristão de uma igreja ('ekklesia'), e muito menos se poderia falar de "religiões" separadas e autossuficientes. Ainda assim, de uma forma didática, podemos separá-los em três tipos principais de organização na prática dos mistérios: o praticante itinerante ou carismático; o clero pertencente/ligado a um santuário; e a associação de cultuadores na forma de um "clube" (o 'thiasos').

O primeiro, o itinerante carismático, possuía um estilo de vida mântico e místico. Tratava-se de um vidente e sacerdote andarilho, que lidava com purificações e iniciações. Nos papiros Derveni, ele é caracterizado como "aquele que torna sacra a habilidade" - um artesão da religião, ou seja, alguém que aprende o ofício de um mestre, de um 'pai' real ou espiritual, e depois trabalha sozinho, para seu próprio lucro, por sua conta e risco. Não havia o apoio de uma corporação ou de uma comunidade. Alguns exemplos seriam Apolônio de Tiana, Epimenides, e Empédocles. Nos antigos mistérios, o itinerante carismático era mais encontrado nos ritos de Dioniso e da Méter. Um documento antigo (210 AEC) dá ordens para que "aqueles que realizam iniciações para Dioniso no país" viajarem para a Alexandria para se registrarem e declararem "de quem eles receberam as coisas sagradas, até três gerações, e entregar o exemplar selado no hieros logos". Ou seja, eles deveriam saber quem era não só o seu "pai" espiritual, mas também o "avô" e o "bisavô". Quando Dioniso aparece disfarçado de um estranho da Lídia na casa de Penteu ("As Bacantes", de Eurípides), ele estaria oferecendo seu serviço de místico e executando milagres, dizendo ter recebido sua iniciação através de revelação direta do deus. No século III AEC, Mileto descreve que as mulheres que "realizam iniciações para Dioniso na cidade ou no interior" deveriam se reportar aos sacerdotes oficiais de Dioniso naquela cidade e pagar uma taxa. O culto à Méter Theon na Grécia também começou de uma forma similar, com especialistas itinerantes, conhecidos como 'metragyrtai' (mendigos da Mãe) que declaradamente se sustentavam com seu ofício sagrado. 
  
O segundo tipo, o clero de um santuário, era mais comum no Egito do que na Grécia, já que os santuários gregos não eram unidades econômicas independentes, eram mais algo ligado à pólis ou de propriedade familiar. Mas os oráculos do período arcaico e os santuários de Asclépio no período clássico se tornaram organizações bem sucedidas desse tipo. Os sacerdotes que oficiavam ali podiam ser claramente distinguidos como itinerante por terem uma estabilidade local e uma relativa segurança, mas ao mesmo tempo eles tinham que aceitar certa hierarquia. Havia santuários à Méter assim, como o de Pessinus, na Anatólia, onde existiam sacerdotes eunucos (os 'galloi'). Ser um dos 'galloi', além de ser um modo de vida reconhecido e lucrativo, fazia os indivíduos ficarem atados à sua deusa e a seu santuário para o resto da vida. Segundo os mitos contam, os Mistérios de Eleusis, na Grécia, só poderiam ser celebrados num lugar selecionado pela própria Deméter, caracterizando-o também como um culto ligado a um santuário específico. O termo 'adelphos' (irmão) era usado para aqueles que recebiam sua iniciação juntos, nem tanto em um sentido de afeto emocional (afinal, em Eleusis, centenas de milhares de pessoas eram iniciadas juntas), e sim mais no sentido de ser parte de uma espécie de clã.

O terceiro tipo, que pode ser chamado de "clube", era o 'thiasos' ou simplesmente 'koinon' ("comum"), ou seja, uma associação, uma "comunidade". Os detalhes diferem, mas essencialmente eles eram a união de iguais em torno de um interesse comum. Os indivíduos permaneciam independentes, na sua família e pólis, mas contribuíam com seu interesse, seu tempo, sua influência, e parte de sua propriedade particular, para aquela causa em comum. Esse tipo de associação tem um status legal e um lugar para reuniões (normalmente uma propriedade comunitária), mas não havia hierarquia estável e nem um líder carismático. Os devotos se dedicavam ao deus e a seus amigos iniciados (os 'symmystai'), num apego mútuo entre eles, realizando atividades comuns, sacrifícios em conjunto, refeição cerimonial, e procissões - que deixavam claro quem fazia parte do grupo. Existiam vários 'thiasoi' a Dioniso, embora muitas vezes dependentes de um fundador ou presidente rico, ou ligado a uma casa, porque a competição ('Agon') era estimulada para promover a honra ('timé') entre os 'symmystai' de um 'thiasos', honra esta premiada principalmente com generosas contribuições financeiras. Também os egípcios, quando emigravam para outras terras, fundavam uma espécie de 'thiasos' grego, na forma de associações de 'sarapiastai', 'isiastai' e 'anubiastai' (iniciados nos mistérios de Sarapis, Ísis e Anúbis, respectivamente). Nos mistérios de Mitra, não encontramos nem itinerantes carismáticos, nem 'thiasos' públicos, nem templos com clero, pois tudo se centrava numa iniciação realizada por clubes secretos (algo semelhante aos maçons, com graus hierárquicos de iniciação) e num número limitado de participantes (cerca de vinte membros); mas, sendo "clubes", podemos incluí-los neste terceiro tipo.


De qualquer forma, a unidade em todos esses grupos estava na ação e na experiência, e não na "fé" - no sentido de professar um Credo. O ritual não precisava de uma teologia explícita para ser efetivo. Mesmo que os órficos prescrevessem certo estilo de vida (como não ingerir ovos), que os mitraicos se identificassem com o seu deus, que os eleusinos evitassem comer o peixe salmonete, isso não era explicitado em nenhum tipo de Credo ou fórmula doutrinária. Eles também tinham a característica do segredo (afinal, eram Mistérios), então não tinham a intenção de propagar uma religião. Além disso, se um membro de um 'thiasos' quisesse deixar o grupo, ele poderia sair sem problemas, sem perda de identidade, sem medo de trauma, sem dramas e maldições. A ausência de demarcação religiosa e a consciência da identidade do grupo evitava qualquer fronteira rígida entre cultos distintos, assim como a ausência de qualquer conceito de heresia e de excomunhão. Os deuses não tinham ciúmes uns dos outros, eram mais como uma sociedade aberta. As pessoas podiam inclusive participar de vários cultos, como se sabe de uma sacerdotisa de Ísis que servia como 'iakchagogos' (a que conduzia a estátua de Iaco/Baco) no culto eleusino de Atenas e a filha de um sacerdote de Sarápis que atuava como 'kistophoros' (carregadora da cesta) a Dioniso. Isso não significava uma "conversão" tipo "queime tudo o que você cultuava antes", e sim um aprofundamento e extensão da sua natureza de devoção para uma nova intimidade com o divino/sagrado, tanto com aqueles com quem você já tinha familiaridade quanto com os que você passava a conhecer.

[continuaremos o assunto na próxima postagem]


julho 28, 2013

Antigos Cultos de Mistério - parte 1

Por conta de uma dúvida postada no grupo dos helenos no facebook sobre a Méter Theon, ou Magna Mater, pediram-me, em mensagem privada, para contar mais sobre suas "orgia". Originalmente, "orgia" (ὄργια, plural de 'orgion' - ὄργιον) eram ritos de êxtase característicos dos cultos de mistério gregos. 
"Diferentemente da religião pública ou das práticas religiosas do lar, os mistérios eram abertos apenas a iniciados, portanto 'secretos', e muitos aconteciam à noite. As orgias eram parte dos Mistérios Eleusinos, dos Mistérios Dionisíacos, e do culto à Cibele. Por serem secretas, noturnas, e não-documentadas, elas foram objeto de especulação e tratadas com suspeita, principalmente pelos romanos, que tentaram suprimir os bacanais em 186 AEC. Embora se pense que orgias envolvam sexo, a sexualidade e a fertilidade estavam relacionadas ao culto, e o objetivo principal das orgias era alcançar uma união em êxtase com o divino." (wikipedia
Para falar do assunto, usarei como fonte principal o livro de Walter Burkert, "Ancient mystery cults". Mas, antes de começar a explicar o tema, vamos primeiro desfazer alguns estereótipos e 'pré-conceitos' sobre os cultos de mistério:
1) "Os cultos de mistério são tardios, do final do período helenístico ou período imperial, conduzindo à Idade Média" - Não, os Mistérios de Eleusis, por exemplo, floresceram por volta do século VI AEC em diante. O culto à Magna Mater desde o período arcaico, o culto de Ísis em Roma era no século I EC, o culto mitraico no século II EC, e por aí vai.
2) "Os cultos de mistério têm origem e estilo oriental, é como uma espiritualidade oriental numa forma helenizada" - Não, ainda que a Magna Mater fosse a deusa frígia Cibele e Ísis fosse egípcia e Mitra iraniano, eles refletiam o culto de mistério que já existia em Eleusis e nos mistérios de Dioniso. Além disso, a Anatólia, o Egito e o Irã antigos eram mundos separados, não eram exatamente 'orientais'.
3) "Os cultos de mistério é uma busca pagã por uma espiritualidade mais elevada, que teria levado ao cristianismo" - Não, apesar de o cristianismo ter assimilado muito do paganismo e do pensamento platônico, não se pode dizer que os cultos de mistério eram algo predestinado a virar cristianismo, pois há diferenças radicais entre os dois sistemas.
4) "Os cultos de mistério são uma espécie de rito de passagem realizado num ambiente noturno" - Não, os mistérios antigos não eram ritos de puberdade em nível tribal, sua admissão não dependia de idade ou sexo ou classe, não havia mudança externa visível (só interiormente, na relação do iniciado com as deidades), podiam ser feitos repetidas vezes, e não eram obrigatórios (era escolha pessoal, não algo prescrito pela família ou pela tribo ou clã).
5) "Podemos falar em 'religiões' de mistério" - Nem sempre, pois os mistérios eram uma forma especial (e opcional) de culto, oferecido dentro do contexto maior da prática religiosa. É semelhante a falar sobre a peregrinação para Santiago de Compostela dentro do sistema cristão (não uma religião à parte). Portanto, "religião de mistério", como um sistema fechado, não seria um termo adequado. Porém, se você considerar "religião" como uma forma pessoal de culto, aí sim cabe falar dessa forma.


De onde vêm os cultos de mistério?
Os mistérios eram uma forma pessoal de culto, cujo pano de fundo é constituído pelas religiões "votivas" (a prática de fazer votos), algo que é tão comum que pouco se fala hoje em dia: fazer promessas de ofertas aos deuses em troca de seu auxílio em alguma questão. Cada objeto ofertado testemunha uma história pessoal, de ansiedade, esperança, prece, realização etc. Para a classe superior, o risco maior era a guerra, então se faziam votos para controlá-la; para a classe média, eram as incertezas nos negócios, os períodos de viagem maritma, os riscos no parto, e os sofrimentos recorrentes das doenças. 
Isso nos ajudava a lidar com as incertezas do futuro, a administrar o tempo através de um 'contrato', com a estrutura do "se... então...": Se a salvação da ansiedade e incômodo atuais ocorrer, se o sucesso ou lucro esperado for alcançado; então uma renúncia especial e definida seria feita, uma perda limitada em interesse de um ganho maior. Uma tendência à perpetuação também era presente, pois o mortal incluía na sua prece o pedido para que a deidade concedesse a ocasião para ele estabelecer outra vez o relacionamento ("me lembrarei de ti e de outra canção também"). Não raro, as inscrições votivas também se referiam a intervenções sobrenaturais na tomada de decisões, em sonhos, visões, ou ordens divinas, mencionando depois a experiência bem-sucedida.
Mesmo que nem todos os pedidos fossem 'atendidos' sempre, o fato é que a religião votiva provinha ajuda ao dar esperanças, socializar ansiedades e sofrimentos, encorajar o indivíduo a tentar mais uma vez, fazê-lo encontrar interesse e apoio dos sacerdotes e companheiros de culto. O voto era feito em público, a oferta pela realização era feita em público, e muitos se beneficiavam do investimento.
Mas, na religião votiva, "fé" (pistis) e "salvação" (soteira) não implicava em "conversão" no sentido cristão, ainda que um indivíduo pudesse mudar sua orientação e se voltar para um deus específico após ter seu pedido atendido por ele. Nesse caso, ele "incluía" a nova deidade, e não "substituía" a anterior, por isso não é uma "conversão". E a crença era de troca, não de uma "fé" em alguém que vai te ajudar sem você fazer nada além de acreditar. 

A relevância de se falar em religião votiva para os cultos de mistério é tripla:
1) A prática pessoal nos mistérios, em motivação e função, era paralela à prática votiva, pois era como uma nova forma de buscar salvação (salvação aqui no sentido vivo de "âncora", de "salvar dos perigos", "salvar das águas turbulentas" etc, não no sentido de salvar da morte em um mundo posterior), de buscar um contato mais íntimo e pessoal com a deidade, visando uma mudança de mentalidade através da experiência do sagrado.
2) O aparecimento de novas formas de cultos de mistério com novos deuses é exatamente o que se esperaria como resultado dessas funções práticas.
3) A expansão das assim-chamadas 'religiões orientais de mistério' ocorreu primeiramente como forma de religião votiva, com os mistérios às vezes formando apenas um apêndice ao movimento geral.

[continuaremos o assunto na próxima postagem]

junho 16, 2013

Sol, Som, Siringe, Silvo, Serpente

Saindo um pouquinho da fórmula de textos mais abrangentes que podem ser assimilados até por quem está começando, hoje venho trazer algo um pouco mais profundo, ainda que também tentando falar disso de uma forma mais universalmente compreensível, para que todos possam absorver e aproveitar propriamente do assunto.

Parmênides era um sacerdote de Apolo. Seu poema "Da Natureza" tem uma construção incomum, que alguns estudiosos acreditam se tratar de uma técnica para criar um efeito encantador, podendo ser usado para a cura ou para levar as pessoas a outro estado de consciência. Sabemos que algumas formas de se conseguir esse estado (e o xamanismo pode confirmá-las) é a repetição, a dança, a música. Mas existe uma particularidade nesse poema, que é o fato de durante toda a jornada narrada pelo autor ele não mencionar nenhum som, apenas aquele que é feito pela carruagem conduzida pelas filhas do Sol: o som de uma flauta de tubo como a de Pã, uma "siringe" ("pipe" em inglês, "syrinx" em grego). A flauta "syrinx" fazia um som parecido com um apito, um som chamado "syrigmos". 

O curioso aqui é que, para os gregos antigos, o som de flauta e apito era também o som do silvo feito pelas serpentes. Tomando um pouco do hinduísmo, sabemos que o poder serpentino da Kundalini - quase completamente adormecido nos seres humanos - faz um som de silvo quando começa a despertar. Em um papiro grego antigo, guardado na biblioteca de Paris, conta-se sobre uma jornada cósmica a outro estado de consciência até a origem da vida humana, o sol. Nessa jornada, o orientador do iniciado diz que ele precisa produzir um som de silvo/flauta/apito ("syrinx") como parte do exercício de controle de respiração para ajudar a entrar no estado do despertar da consciência. Seria um chamado "mágico" conhecido como "o som do silêncio".

Esse som do silêncio seria o som da criação. O som feito pelas estrelas e planetas enquanto eles rotacionam e transladam nas órbitas. A famosa "harmonia das esferas". É assim que nos aproximaríamos do sol como uma deidade. Fazer o caminho do sol (celebrando o ciclo semanal de Apolo, os dois solstícios anuais etc) para - quem sabe - passear na carruagem de Hélio um dia. 

Por isso que o som do silvo tem uma ligação tão especial com o sol. Também por isso (embora não só por isso) que a serpente - a exemplo da Píton - é tão próxima de Apolo. E ele a princípio não a destrói, apenas a tira do caminho, a "atira longe" (como vemos nos hinos), e, mesmo quando a mata, o faz para absorver os poderes proféticos que ela representa, e assim adquire um novo epíteto, como Apolo Pítio. Quando li sobre isso no livro de Peter Kingsley ("In the Dark Places of Wisdom"), anos antes eu já havia feito uma excursão noturna na lua cheia, no zoológico de Belo Horizonte, onde pudemos tocar uma moderna pitón albina nas mãos do tratador - e nessa mesma noite sonhei com Apolo vestido em peles (e, sim, meus oráculos realmente melhoraram depois daquele dia).

Voltando ao som da "siringe", ele também era associado às práticas de Asclépio, quando o enfermo se deitava e tinha um sonho de cura do deus, naquele estado liminar entre o dormir e o despertar. Asclépio (filho de Apolo) é outro que traz uma serpente em seu bastão. Dizia-se que o som do silvo ("syrigmos") era o som da presença de Asclépio. Na Índia, era também antes de se entrar no samadhi, aquele estado entre o dormir e o despertar, que havia uma vibração poderosa soando como um silvo, ligada ao despertar da kundalini. 

Para muitos antigos, a jornada para uma realidade superior era feita através do silêncio, no silêncio e para dentro do silêncio. A última senha era o som da siringe, o som do silêncio. E, antes de chegar nessa realidade superior, era preciso que convencêssemos os deuses de pertencermos a aquele lugar. Por isso as famosas palavras do "eu também sou uma estrela, vagando e girando junto a vocês, brilhando para fora das profundezas". Como o sol.

Dependendo do quão alto ou quieto é o som, ele pode parecer um apito ou uma rajada de vento, mas - de qualquer forma - não é um som qualquer. Um oráculo de Apolo na Anatólia afirma isso também. Ele fala que, após o contato com a fonte do som, não há mais separação. E isso é algo muito importante para entendermos a receita da imortalidade: a proximidade com o sol. O sol se põe e nasce de novo, assim seus iniciados devem trilhar o caminho do sol.

Não é surpresa que haja imagens representando um tubo pendurado no sol (quem leu Jung e o mito aborígene do vento produzido por um falo do sol, vai lembrar). Na antiguidade, essa imagem era a de um tubo musical, de uma flauta.

Em um hino órfico, o sol recebe o título de "syriktes" (o flautista, o tocador de siringe). O som que Parmênides relata da carruagem do sol em movimento parece, então, algo mais fácil se compreender.

Mas agora vamos tirar algo prático disso tudo. A questão é: nós OUVIMOS isso o tempo todo! Pode não ser como o silvo de uma serpente, talvez se pareça mais com um chiado de televisão com o som abaixado num quarto vazio. Se você ler sobre experiências fora-do-corpo ou experiências de quase-morte ou mesmo estados alterados de consciência, normalmente você vai notar o relato de um estágio vibracional, quando energias fluem do corpo fazendo sons de murmúrio, junto a sensações de entorpecimento ou anestesia acompanhando as vibrações. A intensidade dessas vibrações e sons varia muito, de algo suave até a eventos além do físico. Os relatos podem incluir o ouvir vozes, ouvir chamarem seu nome, sentir-se pesado ou afundando, sentir leveza, sentir uma energia fluindo pelo corpo, ouvir passos ou perceber a presença de alguém, experimentar um balançar interno, uma rotação ou movimentos de qualquer tipo, ouvir sinos, engrenagens, músicas, o vento etc. 

Não faz muita diferença que crença a pessoa professa ou a que grupo religioso pertence. Duas cordas na mesma frequência sonora vão vibrar juntas, é só testar com o seu violão afinando duas cordas na mesma nota e tocando só uma. Isso é física, não é filosofia. Da mesma forma, entrar em consonância com a música das esferas faz você vibrar junto com elas.

Se você quiser tentar, deite-se num quarto silencioso. Um pouco antes de adormecer, você vai ouvir algo dentro da sua cabeça. No começo você vai dizer "ah tá, é ESSE som..." e depois, quanto mais perto do sono, mais perceptível vai se tornar a experiência. E, sim, é o mesmo som desde seus ancestrais, desde os helenos antigos, e desde sempre.

Agora só nos resta agradecer a Apolo e a Asclépio com um belo de um "Ô iê Peã!". :-)


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P.S.¹: Se você procurar por "syrinx", vai ver que é também o nome do órgão vocal dos pássaros.
P.S.²: Já reparou como os encantadores de serpente usam flautas para despertá-las?

maio 24, 2013

Mito, História, Religião

"Onde eu vejo interessantes incorporações de arquétipos que normalmente seguem jornadas similares às dos antigos heróis e que trazem ideias tanto sobre a virtude quanto sobre o vício para uma audiência moderna, outros vêem 'apenas' relatos de ficção. Onde outros vêem os antigos heróis como pessoas históricas dignas de veneração, eu sou simultaneamente cética de sua historicidade enquanto aceito a sua importância no contexto helênico. Eu apenas assumo uma abordagem um pouco mais metafórica. Se você é do tipo que tem que ver ossos e túmulos, não me importo. Eu simplesmente não preciso disso para assimilar a Verdade das histórias.
Isso significa que penso que os deuses são apenas personagens de historinhas? Claro que não. Isso significa que eu acho que os personagens nas histórias são deuses? De novo, não. O Thor dos quadrinhos e do cinema é um alienígena. O Thor dos Eddas é um deus. De fato, a maioria das representações cinemáticas de Apolo me causa arrepios porque elas não condizem com meu entendimento nem das fontes materiais primárias nem do modo que ele tem interagido comigo. [...]
Muitos de nós olha para a mitologia, digamos, dos abraâmicos, como uma coisa metafórica. Duvidamos e somos céticos de coisas como um Adão e uma Eva históricos, um arbusto que queima e não se consome, uma inundação global e um homem com uma arca. E, de fato, uma abordagem literária da bíblia cristã é algo que é tão alheia à minha crença, que eu não entendo como uma pessoa pode acreditar nisso. Mas as pessoas acreditam e, enquanto isso as tornar melhores seres no mundo e enquanto isso as preenchê-las/realizá-las sem prejudicar os outros, não tenho problemas com isso. Claro, isso me confunde e não é a minha praia, mas não posso dizer a elas no que acreditar mais do que elas podem dizer pra mim o mesmo. Do meu ponto de vista, se os mitos vão ser metafóricos, eles vão ser metafóricos e pronto. Não posso apontar a mitologia de outra pessoa e dizer 'isso aí é metafórico, mas a minha é histórica', porque eu não posso provar isso e não posso fazer isso fazer sentido pra mim.
Mas, de novo, ver os mitos como metáforas não significa que eu acredito que os deuses são apenas personagens de historinhas. Eles são meus deuses. Eu falo com eles, eu sinto sua presença, eu conheço pela experiência que eles são Reais. Eles não são reais para mim como o Samwise Gamgee. Eles são reais pra mim como meu gato é real, mas eles normalmente falam conosco em metáforas e relatos/histórias. O problema, acho, é que - como acontece com os católicos e os protestantes - estamos usando o mesmo material como fonte e muito da mesma linguagem, feriados sacros e nomes para o divino, mas não estamos praticando a mesma religião.
É útil discussões como esta para sermos respeitosamente curiosos sobre os pontos nos quais discordamos. Na minha experiência, é uma boa forma de encontrar algo em comum ou ao menos de cultivar compreensão mútua onde há pouca coisa em comum." 
(por Sunweaver, trechos de http://www.patheos.com/blogs/agora/2013/05/making-light-help-me-joe-campbell-youre-my-only-hope/, tradução da Álex)

Esse assunto dos mitos e da ficção é algo que é sempre útil repetir. Volta e meia vemos coisas como comentários sobre uma personagem em uma postagem sobre uma deidade. Tipo uma vez que alguém publicou uma imagem clássica de Atena e um indivíduo comentou "deusa inútil, vive deixando os Cavaleiros em perigo", claramente confundindo-a com a personagem de cabelo roxo do anime Cavaleiros do Zodíaco. Provavelmente há também os que acham que a deusa Diana conviveu com a Mulher Maravilha e que a Xena namorou Ares. Ou, trazendo algo mais atual, vemos as pessoas que se perguntando de que deus são filhas e querendo atravessar uma espécie de véu das brumas após terem lido a série de Percy Jackson e os olimpianos...

Aqueles são personagens de ficção. Usam o nome e umas poucas características estereotípicas dos deuses originais, mas não são os deuses que cultuamos. Ao menos não os meus. É como o exemplo do Thor dos quadrinhos e o dos mitos. 

Se os deuses fossem ressoar nossa campanha contra o sujeito da C.D.H., eles olhariam para esses personagens cinematográficos e segurariam uma plaquinha "A Marvel não me representa". Ou isso:

[ Zeus ]

Outra questão é a própria simplificação dos mitos literários, como já falamos aqui no blog, achando que os deuses descritos na Ilíada em lados diferentes da guerra são inimigos até hoje. Falta leitura de fontes diferenciadas da literatura antiga, falta leitura de teóricos modernos recomendados, e falta experiência real com os deuses pela ortopraxia diária. Senão do que adianta apontar a incongruência das alegorias de religiões/crenças alheias e não questionar o simbolismo da sua própria? 

Quando a moça do texto acima cita Joseph Campbell no título do post, lembrando a história do "mitologia é como chamamos a religião dos outros", ela deixou claro do que iria falar. 

Muitos de nós devem se lembrar como foi sua mudança de paradigmas nessa área da vida. Eu me lembro que um dia achava que existia um só deus e que a reencarnação não fazia o menor sentido, achando um absurdo quem acreditava nisso - uma vez que a população aumentava e não apenas morria e voltava. Depois de um tempo, tudo foi mudando, não consegui mais conceber a ideia de um monoteísmo e não podia negar as evidências da reencarnação até para a física quântica. Um dia eu tirava dúvidas vocacionais no catolicismo, no outro não entendia como se podem repetir dogmas como os que ouvi de uma amiga adventista ao tentar explicar para outra uma espécie de hierarquia entre as 3 pessoas do seu deus. Mas um dia estivemos do outro lado, e - a exemplo do que acreditam os hindus - cada um tem o seu jeito e caminho para buscar a verdade e o sagrado. Por isso não costumo me envolver em discussões que atacam a crença que difere da nossa. Ataco a discriminação, a injustiça, a guerra santa, a tirania, o desrespeito, a imposição de interesses, mas não a fé, não aquilo que te faz querer ser melhor, não aquilo que te dá esperança e vira um sentido pra sua vida. Ninguém tem o direito de exigir que o outro pense igual a ele/a.

Dos meus amigos de adolescência, um foi ser padre em Roma, outro foi ser monge budista tibetano na Suíça, outro é bispo evangélico nos Estados Unidos, e eu conduzindo os helenos aqui no Brasil... E isso só dos amigos que eu sei onde foram parar. Como me disse uma amiga recente, essa é a minha "egrégora", foi com essas pessoas de destino tão aparentemente diverso - embora todos relacionados ao sagrado - que eu cresci. E talvez seja justo essa diversidade que tenha me atraído para um helenismo do métron, da justa medida, do equilíbrio, da reflexão racional... com um leve toque da tolerância que vejo no hinduísmo, mas o qual não me reverbera em outros pontos (para mim, deveras exigentes e pouco explicativos) de sua doutrina. 

E é essa reflexão racional e essa experiência real com o sagrado que me levam a saber distinguir os meus deuses dos seus homônimos personagens da ficção. Melina Eleni Kanakaredes Constantinides (que, por sinal, faz aniversário no mesmo dia que eu) pode ter dado uma belíssima Athena nas telonas, mas ainda prefiro os "olhos glaucos" da minha divina patrona. Aliás, como não amar uma divindade depois que você reconhece sua ação em sua vida e sente o 'en-thus-iasmo'  de 'ter um deus dentro'? Desejar a excelência virtuosa da areté se torna algo urgente para a gente se sentir cada vez mais próximo desse "mundo cheio de deuses" do qual falou Thales. 

E você, vai preferir ficar aí, acreditando num Kratos de videogame? ;-)

janeiro 13, 2013

Todos gregos


«Na Grécia Antiga, o costume religioso podia variar consideravelmente de lugar a lugar: 'pólis' (cidade) diferente, 'nomos' (costume) diferente, dizemos. E, ainda assim, todas as práticas eram reconhecidamente parte da mesma religião, com os mesmos deuses, a mesma mitologia, a mesma história. [...] minha comunidade é baseada na da Atenas clássica. Se você procurar por outros rituais, especialmente online, encontrará algumas variações: um grupo faz duas libações, outro circula o altar, outro celebra tanto a Dionísia Rural quanto o Lenaia, o outro prefere a cosmologia órfica à de Hesíodo e Homero. Essa variedade é, acredito eu, a marca de uma crença viva, uma que mobiliza as pessoas a honrar os deuses de coração e de uma forma vital, e de um jeito que faça sentido para suas famílias, suas comunidades. Pois, como Shelley disse uma vez (num contexto bem diferente), "Somos todos gregos".» 
(Drew Campbell - 'Old Stones, New Temples'; traduzido pela Álex)


Ano passado tivemos algumas sugestões de páginas de facebook querendo fazer parceria conosco. Eu sinceramente acho desnecessário que haja separações em vez de nos unirmos no RHB. Se o grupo fosse de outro país, eclético, alexandrino, tudo bem, mas se são todos brasileiros, reconstrucionistas e helênicos, e se sempre acolhemos bem todo mundo (acredito eu), não vejo razão - pois "Somos todos gregos". Além disso, vi dois problemas com essa situação. Um é que um dos grupos é uma tentativa de popularizar internacionalmente "o grupo de Fulano" criando grupos que representem o grupo dele em outro país. Acho estranho, até porque nesse caso sim acho melhor parceria (como temos com o grupo Thyrsos na Grécia e com a Hellenion nos EUA) do que impor seu próprio grupo em uma terra estrangeira que JÁ tem um grupo ali. O outro é o desconhecimento que ainda temos desses outros grupos mais novos. 

Não raro já observei pessoas perambulando por lugares dos quais depois se decepcionaram e largaram - normalmente com algum estresse e chateação. Por isso, imagino que seria útil um 'checklist' para pensarmos bem antes de decidirmos nos envolver com um ou outro grupo sobre o qual estamos incertos. Há algumas coisas que podemos identificar e ficar com um pé atrás quando isso acontecer. Assim a gente evita o famoso "ah, se eu soubesse disso na época...". A primeira coisa é pesquisarmos não apenas o site de um grupo, mas também o relacionamento entre os membros e se existem 'ex-membros' (e o motivo de estes terem saído). A partir daí podemos incluir, por exemplo:

1. Tome cuidado com auto-proclamações. Do tipo quando eles dizem que são descendentes diretos de Hércules, de Ulisses, do Batman (rs), de tradição milenar com ensinamentos repassados diretamente de Triptólemo etc; e desconfie se eles exigem que você os chame por títulos magnânimos e vivem se gabando por terem tantos anos de estudos e diplomas e falar dezenas de dialetos, passando o tempo todo lembrando as pessoas disso.
2. Atente para os custos para se filiar ou continuar sendo membro. Gente que cobra os olhos da cara normalmente criou a organização mais para gerar receita do que para dar um ensinamento espiritual genuíno.
3. Estranhe se você ouvir conversas sobre os 'poderes sobre-humanos' dos líderes; do tipo "eles sabem tudo de você", "eles nunca erram", "se eles disseram para fazer assim, é melhor obedecer" etc.
4. Se eles dizem de quem você pode ou não pode ser amigo, fuja. Amizade não precisa ser exclusiva entre os membros de um grupo/crença, ainda mais por alguém ter 'mandado' sem você nem ter conhecido a pessoa ou experimentado um relacionamento com ela por si mesmo.
5. Desconfie se eles dizem que alguns livros são "proibidos" (não "evitados") porque tais livros vão lhe fazer mal, vão atrasar sua evolução espiritual, vão lhe fazer ter pesadelos terríveis, vão macular sua alma (:P) etc.
6. Evite-os se eles fazem uma tempestade em copo d'água quando alguém comete algum engano e/ou crucificam a pessoa por isso, deixando todos desconfortáveis e com aquele receio constante de errar.
7. Fuja dos extremos ao perceber que eles estão SEMPRE tensos e estressados (sem se permitirem um gracejo de vez em quando, isso pode ser insegurança) ou SEMPRE alienados e 'ligados na bateria' (sem levar as coisas a sério e sem procurar um equilíbrio).
8. Repare se eles não parecem ser todos fiéis ardorosos de certos aspectos de Ares, de Éris e dos Titãs (ou seja, se estão sempre combatendo os inimigos, promovendo discórdia e se envolvendo em guerrinhas de poder).
9. Veja se eles zombam de quem pede auxílio para entender alguma experiência espiritual particular dizendo que a pessoa está "viajando" e trata-a como se o relato fosse ridículo ou estúpido e como se comentar sobre isso fosse perda de tempo. Se não existe nem o básico da educação e respeito, não se pode esperar que surja algo melhor.
10. Observe se eles não mantém uma hierarquia muito rígida, baseada na instalação do medo de se confrontar alguém e na proibição de se avançar muito rápido nos níveis da "ordem".
11. Estranhe se, ao mesmo tempo em que eles ficam tentando angariar seguidores fazendo rituais para questões mundiais (por exemplo: a paz, o combate à fome, o meio ambiente), eles mesmos não cuidam sequer das questões internas (por exemplo: a concórdia entre si, a saúde dos membros, a educação para coleta de lixo em casa).
12. E, por fim, siga sua intuição e o bom senso! Sentir-se incomodado nem sempre é por conta da nossa inexperiência, muitas vezes é um sinal de coisa errada apitando nossa percepção interior.

Talvez, se os novos grupos tiverem propostas diferentes que não a reconstrução da religião helênica antiga, e se - com o tempo - a gente perceber que eles são corretos, aí tudo bem sermos grupos distintos e parceiros. Pode até virar uma rede bem útil e funcional! 

Assim estaremos seguindo dois princípios de Sólon: "Não se associe com pessoas que fazem coisas ruins" e "Não seja precipitado em fazer amigos, mas não os abandone uma vez feitos".

Afinal, não é a ética um dos principais aspectos a serem observados pelos helenos? ;D

dezembro 23, 2012

Formas de Devoção


Existem dois conceitos hindus que li num livro de bhakti yoga que servem para várias crenças religiosas e que trouxe para compartilhar com vocês.

O primeiro é com relação a como nos aproximamos da deidade. Diz-se que existem cinco tipos de "bhavas":

  • No Shanta, você se aproxima do deus com uma mente pacífica e plácida (é o nível mais elevado de 'bhava', o da paz). Exemplo: o personagem Bhishma no épico Mahabharata.
  • No Dasya, você se aproxima do deus como um servo. Exemplo: Hanuman no épico Ramayana, que era devoto de Rama.
  • No Sakhya, você se aproxima do deus como um amigo. Exemplo: Arjuna com Krishna no Mahabharata.
  • No Batsalya, você se aproxima do deus como um filho. Exemplo: Yosoda com Krishna.
  • E no Madhura, você se aproxima do deus como um amante. Exemplo: Radha com Krishna, humanos como Chaitanya Deva (santo hindu e reformista social), Jay Deva (poeta do Gita Govinda), Mirabai (santa hindu e poetisa), e o próprio Jesus que pregava o amor e falava da igreja como a esposa do cristo.

Apesar de termos exemplos literários de cada tipo, não precisamos utilizar só um deles, podemos ter uma relação com deus que se mistura a de um amante, um amigo, um filho etc. Mas, ainda assim, essa visão é útil para tentarmos observar como cada grupo se coloca. Poderíamos pensar que nas religiões afro se pratica mais o Batsalya, já que as pessoas dali são "filhos" de orixás. E serve também para analisarmos os nossos próprios helenos conhecidos. Será que Odisseu não se encaixaria no Sakhya em sua relação com Atena? E as/os amantes mortais (voluntárias/os) dos deuses não estariam praticando o Madhura? Já pensou com qual desses 'bhavas' você se identifica mais?

O outro conceito diz respeito aos caminhos de devoção. Existem seis tipos de "bhakti":

  • No Sravana, ouvimos, lemos, assistimos filmes sobre as glórias e manifestações da deidade. Assim como os muçulmanos acreditam que ouvir/ler o Alcorão ajuda alguém a se tornar devoto verdadeiro de Alá. É a melhor forma de 'bhakti' para as pessoas comuns. 
  • No Kirtana, cantamos, pois a poesia e a música têm um impacto na mente, que se afeta profundamente ao se cantar as glórias da deidade. Essa é uma parte essencial da religião sikh, e do vaishnavismo, no qual os devotos cantam o nome de Krishna no maha-mantra.
  • No Smarana, nos lembramos da deidade, com sentimentos divinos constantes e meditação contínua. É a forma mais elevada de 'bhakti'.
  • No Padasevana, servimos aos pés da deidade, como fez a deusa Parvati aos pés de Shiva e a deusa Lakshmi aos pés de Vishnu. Uma vez que não enxergamos os deuses, a alternativa seria servir aos pés de uma estatueta ou - melhor ainda - servir aos seres humanos e ao universo como uma manifestação de uma deidade escondida.
  • No Archana, prestamos culto à deidade através de um símbolo ou de uma estátua ou mentalmente. Nesse caso, existe o perigo de se degenerar para a idolatria e para um ritualismo mecânico.
  • E no Vandana, prostramo-nos (deitamo-nos) diante do símbolo ou da estatueta da deidade.

Para nós helenos, caberia-nos no princípio os tipos Sravana e Archana, depois procuraríamos desenvolver o Padasevana com os seres humanos (como uma 'xenia' aos mortais para refletir uma 'charis' com os deuses), sendo que poderíamos incluir também o Kirtana, e - claro - tentaríamos alcançar o Smarana. O Vandana seria relizado apenas com os deuses ctônicos.

Porém, que fique claro que a profundidade desses conceitos dentro do hinduísmo não é transferível para o helenismo, estou apenas utilizando-os de uma forma didática aqui. Até porque conheço apenas a definição de cada um, sem grandes implicações, portanto não se faz necessário sequer decorarmos esses nomes, uma vez que não pertencem à nossa crença.

Seria apenas o caso de refletirmos sobre o nosso tipo de prática de um modo um pouco mais comparativo "teologicamente". Espero que isso fique compreendido, e que essas informações que achei tão interessantes tenham sido úteis também para vocês.

E, já que estamos no ritmo da teologia comparada, vamos ficar com um pouco de Rumi (poeta persa muçulmano), que provavelmente praticava o Madhura:


"Ruínas
são lindas
quando tocadas
pelo Sol dourado.

Assim também, o coração partido
se torna lindo

como um espelho despedaçado captura
e expande dentro dos milhares 
um único

raio de luz..."

(Rumi, século XIII)


outubro 12, 2012

Cobrir para Revelar


Há um certo movimento entre os politeístas, especialmente em honra a Héstia, mas também a outras deusas (Hera, Afrodite, Perséfone...), de mulheres cobrindo a cabeça com véus, lenços, bandanas etc. Isso tem raízes históricas e motivos diversos. Ainda assim, é importante lembrar logo no começo deste texto, que o véu não é um requisito (ou seja, não é obrigatório) e que nenhuma das mulheres que o utilizam pregam que outras o usem (apenas apoiam as que o decidem usar por vontade própria).

Para começar, o ato de cobrir os cabelos aparece em várias religiões, como - por exemplo - as desta imagem: 

A ideia de usar véu é muito associada aos islâmicos e aos cristãos extremamente conservadores, como os menonitas. Mas essa prática começou antes do próprio monoteísmo. Existe evidências de que os muçulmanos/islâmicos apenas mantiveram a tradição de várias religiões politeístas da área onde surgiu o islamismo. E o conceito de mulheres cobrindo suas cabeças aparece como norma cultural desde a Assíria:
"Para conseguir distinguir as mulheres livres e honráveis das escravas e concubinas, estabeleceram-se leis. As mulheres respeitáveis foram levadas a usar o véu enquanto aquelas consideradas não-respeitáveis eram forçadas a andar com a cabeça descoberta. Assim, o véu se tornou um símbolo exclusivo de respeito; um privilégio que era negado a escravas, prostitutas e concubinas." (Alexandra Kinias, tradução minha)
No livro "Aphrodite's Tortoise: The Veiled Woman in Ancient Greece", o autor mostra que o véu era uma extensão consciente da casa e era normalmente chamado de 'tegidion', que significa 'pequeno telhado'.

Algumas mulheres das outras religiões mencionadas dirão que cobrem a cabeça em sinal de submissão à vontade de Deus. Mas cobrir a cabeça não significa necessariamente submissão. As mulheres judias costumam dizer que cobrem as cabeças para se lembrarem de que existe algo acima e além delas, no qual elas precisam prestar atenção. 

Às vezes queremos ser mais espiritualizadas e ficamos só na vontade, mas quando você acrescenta um lembrete físico do seu caminho, isso vai te fazer recordar dele e de como você deveria estar se portando nesse caminho que escolheu. Você sente que não está sozinha na vida, tem algo acima de você, há deuses te cercando, te ajudando, e que estão sempre ali porque você pode senti-los. Internamente, é como usar um manto de poder espiritual que nos deixa mais confiantes. Pode até dar uma sensação de status, como uma coroa.

Outra razão para usar o véu, oposta ao status, é a da modéstia. Os dicionários costumam definir modéstia como algo moderado, sem vaidade, simples, e que tem relação com a conduta e com a maneira de se vestir. Como a máxima diz "nada em excesso", isso poderia se incluir na questão de não mostrar a todo mundo suas belas madeixas, só a alguns para quem você escolhe desvelar-se. Se nós encorajamos o direito das pessoas a usarem tatuagem e piercing, porque não lhes damos também o direito a vestir-se com recato e cobrir a cabeça? Se até os naturistas sabem respeitar quem não quer ficar nu? A diversidade humana é muito mais extensa do que conseguimos imaginar, e nossas crenças prezam pelo respeito a esse amplo espectro. 

Esse vestir-se com modéstia traz também um efeito mágico das deusas donzelas-guerreiras. É como se as camadas de roupas te dessem a impressão mental de uma armadura (ou elmo), de um tornar-se intocável. Antigamente, os corseletes e corpetes eram considerados modestos, depois é que virou item sensual, talvez justamente por esse efeito de armadura. Uma vez que eles comprimem o corpo, que são durinhos, podem dar essa sensação armada. O fator sensual fica acrescentado por conta de suas curvas e decotes, e por dar uma vontade extra com a demora que há em desamarrá-los para descortinar o conteúdo. Por isso muitos vêem a modéstia como algo 'sexy'.

Há também a opção de se usar o véu apenas no ritual. É como um sinal para que, se alguém te ver te véu, ele/ela vai saber que você está envolvido em um trabalho sagrado. Quando você coloca sua roupa branca, seu peplos, seu chiton, sua roupa limpa, para participar de um ritual, você está enviando ao cérebro um sinal de que não está num espaço comum, que algo especial vai acontecer.

Da mesma forma que há tal efeito no ritual, se você passa o dia de véu, isso vai te lembrar que o seu cotidiano é especial, que o seu caminho é sagrado. Mas a dificuldade em usar o véu fora do espaço do nosso 'temenos' é que vivemos em uma cultura que não apóia essa prática, e que frequentemente pode achar que você é muçulmana, em vez de reconhecer sua crença real.

Outro efeito dado pelo véu, segundo observação de relatos de politeístas, é que a maioria delas se sentia mais madura, mais adulta - mais mulher, menos menina -, com todos os poderes e responsabilidades inerentes a isso. E, quando escolhemos o sinal de nossa maturidade (colocar o véu), isso tira o estigma biológico de marcar a idade adulta com a menstruação. Hoje, em que podemos escolher não menstruar, não faz sentido deixar de participar de ritos de passagem e de rituais relacionados à lua só por não estarmos 'sangrando'. Não somos menos mulheres por isso. Se nos seus pensamentos, no seu discurso, na sua abordagem com a vida, você se vê mais como mulher do que menina, o véu ajudaria a personificar esse sentimento. 

Nessa mesma pesquisa/observação, notou-se que quase todas as politeístas que cobriam a cabeça eram reconstrucionistas de algum tipo. E algumas helenas usam o véu quando estão fazendo trabalhos domésticos, como sinal de devoção a Héstia. Além de ser mais higiênico cozinhar com os cabelos cobertos.

Hoje a nossa forma de cobrir os cabelos pode ser por véu, bandana, lenço, echarpe, entre outros. Na Grécia Antiga, usava-se uma túnica chamada chiton (χιτών) e, por cima dela, o himation (ἱμάτιον), que podia ser puxado para cima da cabeça, cobrindo várias partes, como na figura:


Com todas essas considerações, acredito que o que podemos concluir como benefício de se usar o véu é que isso encoraja outras mulheres politeístas a re-examinar nossos valores, no que acreditamos, se nossas convicções são fortes e importantes o suficiente para trazer questionamentos ao mundo de fora, se respeitamos a escolha do modo de vestir de cada pessoa.

Nós crescemos sem muitas das habilidades que nossos antepassados tinham. Nós não tecemos mais, não saímos pra caçar, não duelamos com espadas, nem navegamos mais (na água, não na Internet). Não dominamos mais todas essas artes, perdemos parte dessa herança. E não é culpa do feminismo que deixou de dividir as tarefas, e sim da industrialização que tirou a necessidade de caçarmos pra comer, de tecermos pra nos vestir, de combatermos por um pedaço de terra, de conduzirmos um barco pra viajar. Ao menos alguns costumes, como o do uso do véu, pode trazer nosso pensamento de volta a algo ancestral e autêntico, dando visibilidade real ao nosso caminho com os antigos.

Ainda assim, é difícil utilizar o véu fora do espaço sagrado de ritual, pois ainda existem perseguições a mulheres que usam véu, tanto que há um movimento internacional ("Covered in Light" - Cobertas de Luz) para conscientização dessa discriminação contra mulheres que escolhem cobrir suas cabeças. O movimento pede justamente para mostrar solidariedade a elas cobrindo a cabeça, e reunindo fotos de pinturas famosas de todas as épocas - nas quais as mulheres retratadas mostram que a beleza de mulheres com véu atravessa o tempo e a história.

Como chamei a atenção no início e ao longo do texto, o uso de véu não é uma exigência nem uma recomendação, e sim uma escolha e um direito. Quem decidir usar, deve ser respeitada. Quem não quiser, também será apoiada. Como dizia Epiteto, "cada um deve chegar ao divino por seu próprio caminho". Não tem por que impormos uma coisa ou outra.

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Fontes (em inglês):
With all due Modesty
Veiled Pagans
Tichel, tichel, tichel
Shaming tactics against Hellenic recon women who wear a head covering