Saindo um pouquinho da fórmula de textos mais abrangentes que podem ser assimilados até por quem está começando, hoje venho trazer algo um pouco mais profundo, ainda que também tentando falar disso de uma forma mais universalmente compreensível, para que todos possam absorver e aproveitar propriamente do assunto.
Parmênides era um sacerdote de Apolo. Seu poema "Da Natureza" tem uma construção incomum, que alguns estudiosos acreditam se tratar de uma técnica para criar um efeito encantador, podendo ser usado para a cura ou para levar as pessoas a outro estado de consciência. Sabemos que algumas formas de se conseguir esse estado (e o xamanismo pode confirmá-las) é a repetição, a dança, a música. Mas existe uma particularidade nesse poema, que é o fato de durante toda a jornada narrada pelo autor ele não mencionar nenhum som, apenas aquele que é feito pela carruagem conduzida pelas filhas do Sol: o som de uma flauta de tubo como a de Pã, uma "siringe" ("pipe" em inglês, "syrinx" em grego). A flauta "syrinx" fazia um som parecido com um apito, um som chamado "syrigmos".
O curioso aqui é que, para os gregos antigos, o som de flauta e apito era também o som do silvo feito pelas serpentes. Tomando um pouco do hinduísmo, sabemos que o poder serpentino da Kundalini - quase completamente adormecido nos seres humanos - faz um som de silvo quando começa a despertar. Em um papiro grego antigo, guardado na biblioteca de Paris, conta-se sobre uma jornada cósmica a outro estado de consciência até a origem da vida humana, o sol. Nessa jornada, o orientador do iniciado diz que ele precisa produzir um som de silvo/flauta/apito ("syrinx") como parte do exercício de controle de respiração para ajudar a entrar no estado do despertar da consciência. Seria um chamado "mágico" conhecido como "o som do silêncio".
Esse som do silêncio seria o som da criação. O som feito pelas estrelas e planetas enquanto eles rotacionam e transladam nas órbitas. A famosa "harmonia das esferas". É assim que nos aproximaríamos do sol como uma deidade. Fazer o caminho do sol (celebrando o ciclo semanal de Apolo, os dois solstícios anuais etc) para - quem sabe - passear na carruagem de Hélio um dia.
Por isso que o som do silvo tem uma ligação tão especial com o sol. Também por isso (embora não só por isso) que a serpente - a exemplo da Píton - é tão próxima de Apolo. E ele a princípio não a destrói, apenas a tira do caminho, a "atira longe" (como vemos nos hinos), e, mesmo quando a mata, o faz para absorver os poderes proféticos que ela representa, e assim adquire um novo epíteto, como Apolo Pítio. Quando li sobre isso no livro de Peter Kingsley ("In the Dark Places of Wisdom"), anos antes eu já havia feito uma excursão noturna na lua cheia, no zoológico de Belo Horizonte, onde pudemos tocar uma moderna pitón albina nas mãos do tratador - e nessa mesma noite sonhei com Apolo vestido em peles (e, sim, meus oráculos realmente melhoraram depois daquele dia).
Voltando ao som da "siringe", ele também era associado às práticas de Asclépio, quando o enfermo se deitava e tinha um sonho de cura do deus, naquele estado liminar entre o dormir e o despertar. Asclépio (filho de Apolo) é outro que traz uma serpente em seu bastão. Dizia-se que o som do silvo ("syrigmos") era o som da presença de Asclépio. Na Índia, era também antes de se entrar no samadhi, aquele estado entre o dormir e o despertar, que havia uma vibração poderosa soando como um silvo, ligada ao despertar da kundalini.
Para muitos antigos, a jornada para uma realidade superior era feita através do silêncio, no silêncio e para dentro do silêncio. A última senha era o som da siringe, o som do silêncio. E, antes de chegar nessa realidade superior, era preciso que convencêssemos os deuses de pertencermos a aquele lugar. Por isso as famosas palavras do "eu também sou uma estrela, vagando e girando junto a vocês, brilhando para fora das profundezas". Como o sol.
Dependendo do quão alto ou quieto é o som, ele pode parecer um apito ou uma rajada de vento, mas - de qualquer forma - não é um som qualquer. Um oráculo de Apolo na Anatólia afirma isso também. Ele fala que, após o contato com a fonte do som, não há mais separação. E isso é algo muito importante para entendermos a receita da imortalidade: a proximidade com o sol. O sol se põe e nasce de novo, assim seus iniciados devem trilhar o caminho do sol.
Não é surpresa que haja imagens representando um tubo pendurado no sol (quem leu Jung e o mito aborígene do vento produzido por um falo do sol, vai lembrar). Na antiguidade, essa imagem era a de um tubo musical, de uma flauta.
Em um hino órfico, o sol recebe o título de "syriktes" (o flautista, o tocador de siringe). O som que Parmênides relata da carruagem do sol em movimento parece, então, algo mais fácil se compreender.
Mas agora vamos tirar algo prático disso tudo. A questão é: nós OUVIMOS isso o tempo todo! Pode não ser como o silvo de uma serpente, talvez se pareça mais com um chiado de televisão com o som abaixado num quarto vazio. Se você ler sobre experiências fora-do-corpo ou experiências de quase-morte ou mesmo estados alterados de consciência, normalmente você vai notar o relato de um estágio vibracional, quando energias fluem do corpo fazendo sons de murmúrio, junto a sensações de entorpecimento ou anestesia acompanhando as vibrações. A intensidade dessas vibrações e sons varia muito, de algo suave até a eventos além do físico. Os relatos podem incluir o ouvir vozes, ouvir chamarem seu nome, sentir-se pesado ou afundando, sentir leveza, sentir uma energia fluindo pelo corpo, ouvir passos ou perceber a presença de alguém, experimentar um balançar interno, uma rotação ou movimentos de qualquer tipo, ouvir sinos, engrenagens, músicas, o vento etc.
Não faz muita diferença que crença a pessoa professa ou a que grupo religioso pertence. Duas cordas na mesma frequência sonora vão vibrar juntas, é só testar com o seu violão afinando duas cordas na mesma nota e tocando só uma. Isso é física, não é filosofia. Da mesma forma, entrar em consonância com a música das esferas faz você vibrar junto com elas.
Se você quiser tentar, deite-se num quarto silencioso. Um pouco antes de adormecer, você vai ouvir algo dentro da sua cabeça. No começo você vai dizer "ah tá, é ESSE som..." e depois, quanto mais perto do sono, mais perceptível vai se tornar a experiência. E, sim, é o mesmo som desde seus ancestrais, desde os helenos antigos, e desde sempre.
Agora só nos resta agradecer a Apolo e a Asclépio com um belo de um "Ô iê Peã!". :-)
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P.S.¹: Se você procurar por "syrinx", vai ver que é também o nome do órgão vocal dos pássaros.
P.S.²: Já reparou como os encantadores de serpente usam flautas para despertá-las?
Fazer o caminho do sol se eu ñ me engano naquele livro As Crônicas dos Kane tinha falando + ou - sobre isso.... eu vou tentar fazer isso:
ResponderExcluir"Um pouco antes de adormecer, você vai ouvir algo dentro da sua cabeça. No começo você vai dizer "ah tá, é ESSE som..." e depois, quanto mais perto do sono, mais perceptível vai se tornar a experiência. E, sim, é o mesmo som desde seus ancestrais, desde os helenos antigos, e desde sempre.