Por conta de uma dúvida postada no grupo dos helenos no facebook sobre a Méter Theon, ou Magna Mater, pediram-me, em mensagem privada, para contar mais sobre suas "orgia". Originalmente, "orgia" (ὄργια, plural de 'orgion' - ὄργιον) eram ritos de êxtase característicos dos cultos de mistério gregos.
"Diferentemente da religião pública ou das práticas religiosas do lar, os mistérios eram abertos apenas a iniciados, portanto 'secretos', e muitos aconteciam à noite. As orgias eram parte dos Mistérios Eleusinos, dos Mistérios Dionisíacos, e do culto à Cibele. Por serem secretas, noturnas, e não-documentadas, elas foram objeto de especulação e tratadas com suspeita, principalmente pelos romanos, que tentaram suprimir os bacanais em 186 AEC. Embora se pense que orgias envolvam sexo, a sexualidade e a fertilidade estavam relacionadas ao culto, e o objetivo principal das orgias era alcançar uma união em êxtase com o divino." (wikipedia)
Para falar do assunto, usarei como fonte principal o livro de Walter Burkert, "Ancient mystery cults". Mas, antes de começar a explicar o tema, vamos primeiro desfazer alguns estereótipos e 'pré-conceitos' sobre os cultos de mistério:
1) "Os cultos de mistério são tardios, do final do período helenístico ou período imperial, conduzindo à Idade Média" - Não, os Mistérios de Eleusis, por exemplo, floresceram por volta do século VI AEC em diante. O culto à Magna Mater desde o período arcaico, o culto de Ísis em Roma era no século I EC, o culto mitraico no século II EC, e por aí vai.
2) "Os cultos de mistério têm origem e estilo oriental, é como uma espiritualidade oriental numa forma helenizada" - Não, ainda que a Magna Mater fosse a deusa frígia Cibele e Ísis fosse egípcia e Mitra iraniano, eles refletiam o culto de mistério que já existia em Eleusis e nos mistérios de Dioniso. Além disso, a Anatólia, o Egito e o Irã antigos eram mundos separados, não eram exatamente 'orientais'.
3) "Os cultos de mistério é uma busca pagã por uma espiritualidade mais elevada, que teria levado ao cristianismo" - Não, apesar de o cristianismo ter assimilado muito do paganismo e do pensamento platônico, não se pode dizer que os cultos de mistério eram algo predestinado a virar cristianismo, pois há diferenças radicais entre os dois sistemas.
4) "Os cultos de mistério são uma espécie de rito de passagem realizado num ambiente noturno" - Não, os mistérios antigos não eram ritos de puberdade em nível tribal, sua admissão não dependia de idade ou sexo ou classe, não havia mudança externa visível (só interiormente, na relação do iniciado com as deidades), podiam ser feitos repetidas vezes, e não eram obrigatórios (era escolha pessoal, não algo prescrito pela família ou pela tribo ou clã).
5) "Podemos falar em 'religiões' de mistério" - Nem sempre, pois os mistérios eram uma forma especial (e opcional) de culto, oferecido dentro do contexto maior da prática religiosa. É semelhante a falar sobre a peregrinação para Santiago de Compostela dentro do sistema cristão (não uma religião à parte). Portanto, "religião de mistério", como um sistema fechado, não seria um termo adequado. Porém, se você considerar "religião" como uma forma pessoal de culto, aí sim cabe falar dessa forma.
De onde vêm os cultos de mistério?
Os mistérios eram uma forma pessoal de culto, cujo pano de fundo é constituído pelas religiões "votivas" (a prática de fazer votos), algo que é tão comum que pouco se fala hoje em dia: fazer promessas de ofertas aos deuses em troca de seu auxílio em alguma questão. Cada objeto ofertado testemunha uma história pessoal, de ansiedade, esperança, prece, realização etc. Para a classe superior, o risco maior era a guerra, então se faziam votos para controlá-la; para a classe média, eram as incertezas nos negócios, os períodos de viagem maritma, os riscos no parto, e os sofrimentos recorrentes das doenças.
Isso nos ajudava a lidar com as incertezas do futuro, a administrar o tempo através de um 'contrato', com a estrutura do "se... então...": Se a salvação da ansiedade e incômodo atuais ocorrer, se o sucesso ou lucro esperado for alcançado; então uma renúncia especial e definida seria feita, uma perda limitada em interesse de um ganho maior. Uma tendência à perpetuação também era presente, pois o mortal incluía na sua prece o pedido para que a deidade concedesse a ocasião para ele estabelecer outra vez o relacionamento ("me lembrarei de ti e de outra canção também"). Não raro, as inscrições votivas também se referiam a intervenções sobrenaturais na tomada de decisões, em sonhos, visões, ou ordens divinas, mencionando depois a experiência bem-sucedida.
Mesmo que nem todos os pedidos fossem 'atendidos' sempre, o fato é que a religião votiva provinha ajuda ao dar esperanças, socializar ansiedades e sofrimentos, encorajar o indivíduo a tentar mais uma vez, fazê-lo encontrar interesse e apoio dos sacerdotes e companheiros de culto. O voto era feito em público, a oferta pela realização era feita em público, e muitos se beneficiavam do investimento.
Mas, na religião votiva, "fé" (pistis) e "salvação" (soteira) não implicava em "conversão" no sentido cristão, ainda que um indivíduo pudesse mudar sua orientação e se voltar para um deus específico após ter seu pedido atendido por ele. Nesse caso, ele "incluía" a nova deidade, e não "substituía" a anterior, por isso não é uma "conversão". E a crença era de troca, não de uma "fé" em alguém que vai te ajudar sem você fazer nada além de acreditar.
A relevância de se falar em religião votiva para os cultos de mistério é tripla:
1) A prática pessoal nos mistérios, em motivação e função, era paralela à prática votiva, pois era como uma nova forma de buscar salvação (salvação aqui no sentido vivo de "âncora", de "salvar dos perigos", "salvar das águas turbulentas" etc, não no sentido de salvar da morte em um mundo posterior), de buscar um contato mais íntimo e pessoal com a deidade, visando uma mudança de mentalidade através da experiência do sagrado.
2) O aparecimento de novas formas de cultos de mistério com novos deuses é exatamente o que se esperaria como resultado dessas funções práticas.
3) A expansão das assim-chamadas 'religiões orientais de mistério' ocorreu primeiramente como forma de religião votiva, com os mistérios às vezes formando apenas um apêndice ao movimento geral.
[continuaremos o assunto na próxima postagem]
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