As fontes literárias sobre os mistérios, por serem mistérios, são todas indiretas. Não se trata apenas de dizer que uma biblioteca específica sobre os mistérios nunca foi encontrada, porque na verdade ela nunca existiu. Os tipos de textos que restaram, dos quais se procura extrair alguma coisa sobre os mistérios, são principalmente três: escritos herméticos/gnósticos, papiros mágicos, e os romances gregos. Cada um tem seus próprios problemas em servirem como fonte.
A interpretação dos romances como textos de mistérios é algo meio recente. Eles não raro introduzem cenas elaboradas de rituais religiosos, com descrições vívidas da religião antiga, mas é difícil saber se isso era só por efeito literário ou indicava um envolvimento mais profundo real, e também saber se tratava-se de um tema isolado ou de símbolos que pertenciam à estrutura do todo. Um dos romances que mais tinham uma dimensão religiosa, o "Etiópica" de Heliodoro, não centra propriamente nos mistérios, mas no culto de Hélio. Ou seja, os romances serviam pelos detalhes ilustrativos, mas não podiam ser usados independentemente como chave para os mistérios.
No caso da literatura hermética/gnóstica, apesar de pré-cristã, ela não é pré-judaica, ela era ligada ao judaísmo helênico. O tratado de Poimandres que abre o Corpus Hermeticum, tem um "background" judaico-cristão. Nela, os elementtos pagãos são modificados pelo filtro de um sistema religioso que difere radicalmente do ambiente dos mistérios pagãos antigos.
O interesse nos papiros mágicos começou com um livro que contava dos mistérios de Mitra como se fosse uma viagem particular em busca de uma revelação oracular, e não um rito de mistério propriamente. Os livros mágicos encontrados no Egito praticamente não tem nenhuma relação com Eleusis ou Dioniso ou com a Magna Mater. Uma das grandes diferenças entre religião e magia aqui é que: enquanto os mistérios integravam o iniciado em um grupo, os magos "continuavam solitários entre seus sonhos de onipotência, almejando ao mesmo tempo finalidades práticas de conhecimento do futuro, posse de riquezas e concubinas" (Walter Burkert, Ancient Mystery Cults, pag.68). A cura ficava em segundo plano nos papiros mágicos, deixada para Asclépio ou para a medicina científica.
Aristóteles uma vez disse que aqueles que passam pelos mistérios não deveriam "aprender" ('mathein'), mas sim "serem afetados", "experienciarem" ('pathein'). Ainda assim, existem alguns testemunhos sobre a "aprendizagem" ou "transmissão" preparatória que acontecia nos mistérios. A palavra/razão/discurso ('logos') tinha um importante papel a desempenhar, e a prescrição de "não contar" o que se via nos Mistérios acontecia porque a verbalização tinha um papel central nos procedimentos. Era como um "relato sagrado" ('hieros logos'). O estóico Crisipo considerava a transmissão do 'logos' sobre os deuses (ou seja, a "teologia") como sendo a essência da iniciação. Isso pode ser percebido também em Empédocles, Parmênides, e no discurso de Diotima em "O Banquete" de Platão. Porém, mesmo havendo a possibilidade de existirem livros ou arquivos, não existia uma biblioteca de teologia; afinal, o culto da Méter e os Mistérios Eleusinos eram mais como uma tradição familiar.
O fato de existirem 'logoi' e até textos escritos nos mistérios, como em outros cultos pagãos, não significa que esses textos formassem a base de religião - do jeito que acontece com a bíblia, o torah e o alcorão no caso do cristianismo, judaísmo e islamismo, respectivamente. Conforme conta Platão em "Meno", quando Sócrates introduz a doutrina da metempsicose, ele finge ter aprendido isso de "homens e mulheres que são sábios sobre as coisas divinas", de "sacerdotes e sacerdotisas que zelam por serem capazes de dar um relato do que eles estão fazendo". Isso implica que existiam também sacerdotes e sacerdotisas que não zelavam pelo que faziam e simplesmente executavam suas manipulações sem nenhuma explicação, nenhum 'logos' a ser comunicado aos outros. Esse relato, no entanto, não era fixado pela tradição, e nunca se tornava um dogma; nem mesmo havia uma organização por trás para controlá-lo. No papiro de Derveni, há uma passagem em que o autor reclama de certos oficiantes dos mistérios privados que só tomavam dinheiro sem conduzir seus clientes ao conhecimento; clientes estes que eram tímidos e confusos demais até para fazer perguntas, e por isso que perdiam seu dinheiro e sua esperança de alcançar o conhecimento.
Existiam também três tipos de 'logoi': mito, alegoria natural, e metafísica.
Martin Nilsson, que costuma negligenciar a importância do mito para a religião, ao falar sobre Eleusis, admite que "o mito tinha um efeito pervasivo incomum na religião de Deméter". Mas o mesmo podemos dizer da Méter, de Dioniso, e de Ísis. No caso dos mistérios órficos de Dioniso, o mito mais relevante para eles é o do seu nascimento de Perséfone e seu massacre pelos Titãs. A maioria dos mitos ligados aos mistérios, aliás, é de um deus que passa por um 'sofrimento': Perséfone abduzida, Dioniso retalhado, Osíris morto; e depois um luto que termina com uma alegria do retorno: tochas brandindo pela retorno de Perséfone à sua mãe, o dia de júblio ('Hilária') no festival da Magna Mater, a festa pela alegria de Ísis ao reencontrar Osíris. Essa rota da catástrofe à salvação parece lembrar o iniciado para ser confiante, pois assim como o deus se salvou você também vai se livrar dos seus apuros. Mas cuidado para não confundir isso com ressurreição inspirada num ciclo agrário (como pensava Frazer), pois não há evidência de Átis ter ressuscitado, Osíris continua entre os mortos, Perséfone vai e volta todo ano... Ou seja, não há nada que explicite uma ressurreição, embora existam relatos de deuses que podiam morrer e voltar nos mitos não relacionados com os mistérios. Hércules sofreu, morreu, ascendeu ao Olimpo, mas não se criou um mistério de Héracles por isso. E nos Mistérios de Mitra não tem nenhum mito de um "deus que sofre". Plutarco dizia que os sofrimentos de Ísis, ao serem reencenados, deveriam ser uma lição de piedade/devoção e um consolo para homens e mulheres que se vissem em situação similar de sofrimento. O mito também comunicava uma experiência viva que era reencenada: se Deméter jejuou de tristeza no mito, o iniciado de Eleusis também se abstinha de comida até a primeira estrela ser vista no céu; se Deméter acendeu tochas nas chamas do Monte Etna, eles também carregavam tochas; se ela se sentou num banquinho e velou sua cabeça, mantendo o silêncio e depois rindo e provando do kykeon, eles também o faziam. Os seguidores de Ísis a imitavam batendo no peito e pranteando Osíris, pra depois comemorarem quando ele era encontrado novamente. Os castrados da Méter também personificavam Átis e, uma vez que acreditava-se que Átis tivesse morrido debaixo de um pinheiro, essa árvore era levada ao santuário com fitas penduradas em seus galhos para representar as ataduras com as quais a Méter tentou estancar o sangue de Átis, e ela o enfeitou com flores primaveris, como as flores que se penduravam nas árvores. Nos mistérios de Dioniso, os iniciados usavam guirlandas de álamo preto porque acreditava-se que essa árvore crescia no mundo inferior, lar do Dioniso Ctônico. Quando Platão fala da amizade que surge entre os companheiros de iniciação nos mistérios, esse tipo de comunidade é chamada de "parentesco de almas e corpos" ('syngeneia psychon kai somaton').
A alegoria normalmente era considerada uma espécie de raciocínio sofístico, um exercício de retórica, em vez de um genuíno sentimento ou perspectiva religiosos, mas existem dois caminhos na elaboração de uma alegoria: há a conceituação abstrata vestida com uma roupa quase-mística de um lado, e há um relato tradicional que é parcialmente decodificado com referência a um sistema mais racional de pensamento. Na verdade, é a visão de mundo pré-socrática, centrada na Natureza ('physis'), e refinada (embora não alterada) pelos estóicos, que vem a ser o sistema de referência para a alegoria grega. Na era helênica, a alegoria era inclusive normalmente chamada de "mística". Os seguidores de Heráclito acreditavam que "a natureza deseja ser ocultada", se referindo aos segredos dos mistérios. A alegoria, portanto, era mais necessária nos mistérios do que em cultos menos secretos. Se a natureza era "misteriosa", então toda alegoria feita em um contexto religioso poderia ser chamada de "mística". Se tentarmos focar não no uso retórico das metáforas e sim no próprio fenômeno refletido em seu uso/aplicação, podemos fazer duas observações: primeiro, ao alegorizar os mistérios em termos de natureza, os sacerdotes e sacerdotisas poderiam dar um relato do que estavam fazendo. Por exemplo: em Eleusis, poderia-se reconhecer Deméter como a Mãe Terra e Perséfone como um grão que é levado para baixo da terra e retorna de uma maneira cíclica a cada ano; no Egito, Osíris estava ligado ao Nilo e Ísis à Terra; as iconografias mostram Mitra como um sol; nos mistérios da Magna Mater, os 'galloi' se cortavam para representar as feridas causadas na terra pelo arado - ou seja, esse aparente "ato de loucura" tinha uma explicação alegórica. Foi assim que a alegoria abriu caminho para a liturgia (do grego λειτουργία, "serviço/trabalho público").
No caso da metafísica, ela seria um nível mais elevado de interpretação. Aqui, acreditava-se que os princípios do universo não poderiam ser incorporados; ou seja, nem a terra nem a água poderia ser divinas por si só, e sim seriam permeadas por potências superiores. Os princípios de criação e união e os de dispersão e aniquilação trabalhariam juntos na matéria, a qual receberia seus impactos. Assim, os eleusinos estariam menos preocupados com o destino de Kore (mito) e a semeadura do grão (alegoria) do que com alguns procedimentos do hierofante no grande festival noturno. O estranho fenômeno da castração nos cultos à Méter não era só por conta do debulhar (mito) ou do cortar da terra (alegoria), mas trazia uma fascínio mais sublime relacionado à evolução do ser transcendente: o iniciado não pode mais gerar porque ele já chegou ao seu ápice em termos de procriação e agora precisa se estabilizar da forma mais segura possível para poder voltar às suas origens - além de representar uma tentativa de deter o fluxo de mudanças que conduziria a uma transformação do mundo a algo não mais ligado à natureza.
[continuaremos o assunto na próxima postagem]
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