dezembro 14, 2010

É só um trovão...

(Ia postar isso ontem, mas a Internet caiu devido às chuvas.)

Anteontem minha 'sobrinha canina' entrou debaixo da minha cama e deitou-se com o focinho para fora, olhando para mim. Levantei-me para pegar água e ela veio atrás, parando à porta da cozinha para me esperar. Voltei ao quarto e ela seguiu-me, entrando novamente debaixo da cama. Fiquei ao computador com ela ali o tempo todo, até o momento em que soou um trovão. Ela saiu do seu canto, olhou para trás, de onde veio o barulho (da janela), eu olhei para ela e disse "É só um trovão, pode voltar". Ela olhou pra mim, deu meia-volta e retornou para debaixo da cama.

Mais tarde, lembrando da associação que a filhotedelua faz de sermos "pets" dos deuses, fiquei pensando nesse caso e imaginando quem seria a deidade que fala pra mim "é só um trovão, pode voltar" quando algo que não espero me deixa confusa. Seria Atena? Ártemis? Zeus?

Sei que às vezes me distraio, como esta semana que demorei a perceber que o princípio-ativo do xarope fitoterápico que tenho tomado para tratar minha tosse é de hera. Justo em dias dionisíacos, não atentei para o fato de o nome científico da planta expresso na caixa - "Hedera helix L. (Acaliaceae)" - ser o da planta desse deus. Mas, no geral, penso nEles em todos os momentos possíveis.

Dia 9, Dionísio me conduziu uma jogada do Mystic Dreamer Tarot e foi mais claro que o raio de Seu pai. Heráclito dizia que Apolo nunca é direto no oráculo ("O senhor de Delfos não fala nem esconde, mas dá um sinal."), então não sei por que eu não tinha pensado antes em recorrer a Dionísio.

Mas não, não achei que fosse Ele quem me diria que "é só um trovão", então voltei a pensar. Óbvio que a primeira a vir à minha mente com essa postura racional diante do desconhecido foi Atena. Aquela que olha para o Poseidon sacudidor-de-terra e acha que Ele é só um terremoto e que já o venceu uma vez antes, podendo vencê-lo de novo. Ou que, conhecendo bem seu pai Zeus, sabe que trovões acompanham-lhe os raios e que - apesar do estrondo - Ele é um deus (dono) tudo de bom.

Porém, ao pensar no "pode voltar", isso não me soou muito de Atena. Como estrategista, um aviso sonoro é um sinal para uma investida, e não algo que vá te fazer ignorá-lo e recuar em seguida. Não há como desfazer uma jogada. Um lance já feito não "pode voltar".

Quando esse tipo de reflexão me toma, o exercício que faço é tentar ser mais intuitiva com a energia presente do que racionalizar os sentidos de uma forma muito "logos". Até porque, pelo logos, a primeira parte da sentença poderia vir de Apolo (a luz da consciência) e a segunda de Dionísio (o deus do duplo retorno).

Então olhei para a minha estante e a estátua de Perséfone brilhou entre as outras. Ela, que vive indo e voltando do submundo - de "debaixo da cama" - e que vive em companhia daquele que costuma ser temido bem mais do que a simples trovões de chuvas ocasionais, inclusive por ser um deus daquilo que nos parece mais definitivo ('de-finito', o fim): a morte.

Olhando dessa forma, poderia ser praticamente qualquer deidade. Hera poderia me mostrar que os trovões de Zeus não assustam, Hermes poderia estar me ensinando a não temer e a vencer as adversidades, Ártemis poderia estar me abrigando entre suas crias, Deméter poderia estar exercendo seu papel de mãe, Héstia me mantendo centrada, Afrodite me chamando ao leito, Têmis me devolvendo o equilíbrio, entre outros.

No fundo, quando temos tantos "donos", todos vão cuidar da gente quando preciso. Nós ficaremos debaixo desse céu onde Eles repousam, ficaremos escondidos numa caverna sob o Monte Olimpo, nos refugiremos nos labirintos do palácio minóico, mergulharemos nas profundezas das águas oceânicas, adormeceremos na escuridão do misterioso reino das sombras, e - em todos esses caminhos - Eles poderão nos proteger e guardar; basta estarmos em busca da realização do nosso 'daimon'. E é esse daimon que me faz agir como a espécie de animalzinho que eu for a cada momento: canina, felina, equina, humana...

Ao menos sei que o bom disso tudo é que sempre haverá quem nos diga, com uma voz tranquila e confiante, que aquilo é só um trovão e que podemos voltar para onde escolhemos ficar.

Nessas horas é que agradeço por não ser um bichinho abandonado... Ou dependente de um único dono.

novembro 29, 2010

O presente é um tempo desembrulhado.

Conheço uns quatro ou cinco caminhos diferentes para ir e para voltar do meu compromisso matutino que fica a 25 minutos de carro de onde moro. Sei onde vai dar se eu virar antes ou se eu me distrair e perder uma entrada, de modo que posso optar continuar por ali e chegar aonde quero do mesmo jeito. A ida normalmente me exige que eu vá pelo caminho de menos trânsito, porque saio meio em cima da hora. Quanto à volta, todo dia me treino na escolha de por onde vou retornar para casa.

Bom, eu sei que isso não é o típico da maioria das pessoas que escolhe algo pacífico e previsível, que você possa ligar seu piloto automático e pensar em outras coisas da sua vida. Mas eu gosto de treinar meu cérebro a mudar. E faço isso não só porque antes da minha virada de Saturno o meu sol em Touro morria de medo de mudanças. Faço isso porque a gente precisa aprender a se adaptar a novas situações. Por mais interminável que algo pareça, ele não será para sempre. Nem as alegrias nem as tristezas.

Dia desses uma amiga comentou aleatoriamente comigo que me acha alguém com uma capacidade enorme para se adaptar. Foi bom ler isso. Principalmente porque nem sempre foi assim, e hoje se tornou algo um tanto quanto natural de mim.

Penso na figura do guardião da "República" de Platão, que comia o que tinha e dormia onde dava. O desapego, a coragem, a paciência, a imperturbabilidade, são coisas que me atraem...

Enfim, o fato é que, a partir do período em que você começa a vencer certas coisas na sua vida que lhe prendiam à matéria, esse tipo de vontade por responder apenas ao momento presente aumenta. Lembro de Sócrates andando pelo mercado e observando de quanta coisa ele não precisa. Ando assim ultimamente. Enquanto alguns amigos se debatem por acumular pertences, eu anseio pelo dia de me livrar da maioria dos meus. Eu adoro dar presente, jogar coisa fora, ver espaços livres serem criados, reciclar transformando cacareco em arte para embelezar a vida...

Se eu só conhecesse um caminho para os destinos que traço, se eu me detesse a seguir apenas aquela rota, isso sim seria para mim um obstáculo, uma pedra, um atraso, cacos de vidro na trilha dos pneus, reforma na rodovia que altera o seu curso.

O meu caminho é aquele em que motoristas negligentes me obrigam a reagir rápido. É a minha forma de chegar sentindo que atravessei por um campo de batalha e alcancei o outro lado com honra, merecimento e dignidade. Os motoristas lentos ou descuidados são como aquele adversário que é também teu professor. Aquele que ensina você a permanecer alerta. Não o alerta da tensão, mas o alerta da consciência.

Porque meditação não é só sentar em silêncio e esvaziar a mente. Meditação é prestar atenção ao que você faz, como você faz, como o mundo é, o que as deidades lhe mostram, o que você pode aprender de cada minuto, como cada ato é uma manifestação sagrada, como assimilar os acontecimentos como forma de auxiliar na sua evolução e aumentar seu conhecimento de si, do universo e dos deuses.

É justo por causa dos obstáculos e da percepção das vias que posso escolher todos os dias que a vida vai se tornando mais plena de sentido, como um fractal que forma um belo colorido global.

Ao sabermos disso, cada dia se torna como aquele vento que de repente sopra mais doce. E toda a espera se torna um preparo para melhor enfrentar a travessia que virá. Pois um dia eu sei que ela vai vir... Conto com isso. Até lá, convém treinar. E depois que chegar, treinar em dobro, porque a ação já vai ser real e imediata.

Nessas horas penso em meu avô, que já morou com minha mãe até na fronteira com a Bolívia e de quem contavam que tinha sido salvo por São Jorge de uns "índios" perigosos dali. Vou um pouco mais além e penso nos meus pais de outra vida que passaram perrengues nada legais também. E penso como tudo um dia liga a gente a todo o resto. Nascer no 23 de abril e ainda pertencer a uma religião que evita o contato com aquilo que um dia já me matou, bem antes de saber dessas coisas, é só um exemplo.

Os motivos retornam. Os "motifs" (na literatura, elemento recorrente que têm um significância simbólica em uma narrativa; na arte visual, um elemento com tema padrão; na música, um fragmento sucessivo de notas; na tecelagem, aquele pedaço repetido que - unido - gera um trabalho maior). Enxergá-los nos ajuda a entender a nós mesmos.

Por isso é que eu decido não parar. Ainda há padrões a descobrir. Ainda há pedacinhos a encaixar. Quero e anseio por ver qual será o trabalho maior que se apresentará ao final, no tear. A agulha e a madeira muitas vezes me machucam, mas sem mim elas não trabalham, e é pelo bem do todo que elas o fazem. A gente só fica esperando estar preparado e ter feito o melhor de si, sem desfiar antes da hora...

Esse é um dos meus muitos jeitos de refletir.

novembro 04, 2010

Mulheres de Atena

₪₪₪ Esta postagem é inspirada em escritos (traduzidos, reescritos, resumidos e comentados) dos blogs da Ellen e da Glaux, bem como de um artigo de Lucy Corcoran, linkados ao final da mesma. Já os termos linkados no corpo do texto são para outras fontes de leitura (referências mitológicas e literárias). ₪₪₪

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Eis uma pergunta intrigante: "Se as mulheres eram inferiores em Atenas, por que eles tinham uma deusa como padroeira da cidade?"

Claro que os estudiosos proporiam várias maneiras de responder a isso, e uma delas é a possibilidade de que os gregos aceitassem mais o conselho bélico de uma mulher do que de um parceiro (essa é a visão de Wilamowitz, citado em Otto, 1979). Mas vamos lá voltar um pouquinho nessa concepção de Atena como deusa do masculino por conta de ela nascer diretamente do pai e por conta do que Ésquilo, um escritor (homem) da literatura antiga, coloca em sua divina boca para defender Orestes.

Esse evento pode ser interpretado como uma demonstração de que as mulheres podem ter uma amizade verdadeira com homens (e com mulheres também) sem ter que configurá-la em algo "colorido"/sexual, mas uma amizade mental, intelectual, de companheirismo, camaradagem, de projetos em comum. E Atena tinha isso com Orestes, Odisseu, Perseu, Aquiles, Diomedes, Tydeus, e tantos outros. O que não significa que ela não tivesse esse tipo de amizade com mulheres também!

Ademais, mesmo que no caso de Orestes ela tivesse ido contra a mãe dele, pode-se ver que, em vários outros casos dos homens que ela protegia, ela o fazia de uma forma que prejudicava outros homens: como ir contra Heitor para ajudar Aquiles, auxiliar Odisseus a enfrentar 300 homens, e até atirar uma pedra no pescoço de Ares para defender Diomedes. Mas a intenção deste texto é falar sobre da relação de Atena com as mulheres, então voltemos às suas amigas.

Ela era tão amiga/irmã/querida companheira de Pallas na infância que depois acabou incorporando seu nome (tudo bem que Atena matou Pallas acidentalmente enquanto simulava uma luta com ela, mas lembre-se que Zeus semelhantemente 'devorou' Métis, se formos pensar por esse lado). Ela também foi amiga de Perséfone e Ártemis, com quem ela brinca no Hino Homérico a Deméter (verso 424). Foi amiga de Khariklo (mãe de Tirésias), a quem concedeu presentes, no poema de Calímaco. Quando Cassandra procurou refúgio no santuário de Atena durante o cerco de Tróia e foi arrastada e violentada por Ajax, Atena fica furiosa e persegue o herói até matá-lo partindo seu navio com um raio emprestado de Zeus. E, mesmo tendo de punir Medusa transformando-a em monstro, ao final ela incorpora a cabeça da górgona ao seu escudo como um emblema.

A história de Aracne também precisa de uma observação, colocando-a em um prato de balança oposto ao de Penélope. A esposa de Odisseu recebe de Atena os dons da tecelagem, da astúcia, da narração de histórias... "Athena a dotou mais do que às outras mulheres com o conhecimento de trabalhos manuais e um coração compreensivo" (Antinoos, na Odisséia de Homero, c.2 - v.115). A artimanha de Penélope é uma forma de usar a arte da tecelagem dada por Atena como uma verdadeira estratégia militar - também domínio da deusa. Já Aracne, esta usurpa e usa de forma errada a arte tecelã. Ela se gaba de seu trabalho ser melhor que o de Atena e aceita o desafio de uma competição tipicamente arrogante e insolente. Enquanto Atena tece sua imagem majestosa, Aracne retrata casos escandalosos dos deuses. Por isso sua tapeçaria é rasgada, ela é punida e transformada em uma aranha.

O curioso é que, tanto no caso da Medusa quanto no de Aracne, o relato passa a impressão de "ciúmes", que para os escritores antigos como o romano Ovídio, seria a emoção mais feminina que há. Ou seja, não combina com a ideia de uma deusa tão amplamente vista como sendo de um campo exclusivamente masculino. Parece que a relação de Atena com as mulheres passava por características dos dois gêneros, enquanto nas suas conexões com os homens não entraria essa pitada de rivalidade que é vista como típica no caso de duas mulheres.

De qualquer forma, reduzir Atena a uma deusa dominada pelo masculino num mundo em que imperaria o patriarcado é realizar um verdadeiro desserviço a ela. E a questão de ser chamada de virgem e mãe (de Erictonios) - ao mesmo tempo - talvez seja porque esse "virgem" é no antigo sentido da palavra, aquele que caracteriza uma mulher que não pertence a homem algum (e não no sentido de alguém que renega sua feminilidade). Quando homens e mulheres são iguais, não há posse, e esse reconhecimento de igualdade que estamos tentando viver nos tempos atuais só nos conclama a honrar mais ainda Atena de uma forma que vai além da tal ideia de uma filha casta.

O que ela é, é sim uma figura complexa, e todos os que a têm como padroeira das universidades, da sabedoria, do poder feminino, com certeza irão defendê-la nesse ponto (e nos outros). Em sua obra The Homeric Gods, Walter Otto chama Atena de 'deusa sempre-próxima' ("ever-near"). Ele diz que Atena é "a consumação", "o presente imediato", "a ação aqui-e-agora", "a presença espiritual redentora", "a ação veloz", "a sempre perto".

Uma das mulheres de quem ela hoje é patrona a definiu uma vez como:
"a paz solene da neblina cinzenta da manhã, espalhando seu orvalho em todas as coisas vivas [...]. Ela é o livro exato que você acaba lendo no momento perfeito. Ela é o estado meditativo que acompanha a criação de toda arte. É bom procurar por Atena, mas é melhor saber que Ela já está com você. Ela é verdadeiramente a deusa que está sempre perto." (Glaux, tradução minha)
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Fontes:
http://www.mythphile.com/2010/10/the-goddess-athena-feminist-or-misogynist/
http://glauxnest.blogspot.com/2010/04/virgin-athena.html
http://glauxnest.blogspot.com/2010/04/ever-near-goddess.html
http://www.ucd.ie/pages/99/articles/corcoran.pdf

outubro 18, 2010

De quem você é 'fio'?

Blogagem Coletiva:


Brasileiro já é uma misturinha de coisas, que foram se formando num país humano, hospitaleiro e sem xenofobias. Acrescente-se a isso o fato de estarmos a 510 anos do descobrimento e de não termos apenas a ascendência sanguínea de uma vida atual, fora adotarmos pessoas como mãe/pai ao longo do caminho.

De qualquer forma, deixa eu começar por aí. Em termos de alma, sei bastante sobre uma vida anterior, mais ou menos sobre outra, e alguns relances de outras três. Elas incluíam Islândia, Rússia (Cáucaso), Grécia, Macedônia, Itália, América Indígena e Brasil colonial. E é engraçado como a alma afeta o corpo, já que - quando tentei estudar romeno e grego - os professores costumavam dizer que eu tinha cara de mulher dos Bálcãs mesmo, ainda que esta vida atual nada tenha a ver com essa região. Nesta, do pouco que sei, tenho ancestrais que vieram da França e de Portugal, ainda que nascer na Amazônia e ter grande parte dos parentes numa parte "macarrônica" do sudeste me faça sentir identificação tanto com os índios quanto com os italianos. Um outro fator que sinto formar minha história são as mães e pais que eu fui adotando: minha professora de canto e meu ex-sogro de origem alemã, minha orientadora de psicologia que tinha ascendência turca, minha xamanesa que era judia, e tantas outras pessoas queridas às quais me sinto conectada, ligada, atada, como o tal fio de uma coisa só. Então, acredito que esmiuçar todas essas influências seria um tanto extenso para o que realmente pretendo com esta postagem.

Existe um ritual, que todos conhecemos e não costumamos refletir sobre ele, que é o indício da existência de parentesco entre as pessoas envolvidas. É o famoso comer à mesa. Não é só sentar à volta da mesa. É sentar para comer. Quantas famílias não exigem que se coma em torno da mesa pelo menos uma vez ao dia (ou, no mínimo na ceia de Natal, no Hanukkah, na Ação de Graças, o que seja)? E por que isso? Muitas vezes estamos repetindo uma tradição sem pensar nela como a celebração de uma comunhão. As pessoas que se reúnem para comer estão anunciando que são da mesma carne e mesmo sangue, estão compartilhando pedaços (partes) de uma refeição completa (o todo) que as fazem ser também partes de uma coisa só. Estão declarando suas afinidades de "corpo e sangue" no "pão e vinho" ou "bolo e mel" ou "cevada e água" ou o que quer que seja servido. O importante é partilhar do banquete pela assimilação orgânica que se insere e toma conta do seu corpo em declaração de aceitação do laço que une quem ritualiza com você. Não é à toa que o altar é uma mesa. E a mesa é igualmente um altar. Nela se colocam os frutos da colheita e os sacrifícios (com ou sem sangue). É o tipo de coisa que não só aproxima deuses e homens, mas também os membros da comunidade (que, aliás, também tem o nome de "frátria", de irmandade). Logo, aceitar alguém à sua mesa é tomá-lo/considerá-lo como seu parente.

Talvez por isso que quando nos encontramos com amigos com os quais queremos manter um relacionamento mais próximo nos acabamos saindo para comer. Já repararam? E é por isso que acho importante ver pessoalmente os amigos virtuais nem que seja por um fim de semana, e não teve uma cidade em que fui que não rolou alguma refeição em grupo. Mesmo quando ia visitar alguém mais íntimo, em algum momento não sentávamos à mesa sozinhos/as.

Uma outra coisa nesse tema é a questão do fio, algo que inevitavelmente me lembra o tear dos Destinos. Apesar de o fio ser cortado, encerrando aquela vida, a morte não dá fim à existência da alma nem à sua história e relação com o sagrado de onde ela partiu. E, durante cada vida, cada fio se desenrola em outros e formas novos, ficando complexo, com várias raízes e pontas. Todo mundo é "filho" de alguém e todo mundo faz "fio" com alguém. Nesse sentido, não só adotamos gente como a nossa gente é adotada por outros. Provavelmente, muitos coroinhas viam os meus pais como seus novos tutores e muitos alunos também nos vêem assim. A rede de inter-relações é infinita. Fora o que dizem sobre existir no máximo seis pessoas entre você e qualquer outro alguém no mundo. Enfim, somos uma grande família (e, como toda família, gostamos mais de alguns do que de outros).

O dramaturgo Samir Yazbek, de origem libanesa, uma vez disse: "Aquilo que inicialmente tinha a ver com a minha história era passível de ser universal. Meu pai e minha mãe são também os pais e as mães das pessoas. Esse tema de raízes é muito presente no cotidiano brasileiro com essa grande influência de cultura de imigração".

Raízes. Não deve ser por acaso que, ao traçarmos nossa genealogia, desenhamos uma árvore. Tudo vem de uma coisa só: as folhas dos galhos, os galhos do tronco, o tronco das raízes, as raízes da terra, a terra do planeta, o planeta do universo, o universo... dos deuses, imagino. E os deuses talvez de um Uno semelhante ao ovo cósmico primordial, quem sabe? De qualquer forma, tudo se ramifica e retorna, tudo volta a se juntar algum dia. Independente de ser em sangue, carne, leite de peito, espírito reencarnado, geologia, antropologia, nascimento, sentimento, deuses patronos, fé em comum, ou o que seja.

Este mês aconteceu algo curioso comigo, sonhei com alguém que mora em outro país e que nunca vi pessoalmente e que só tenho contato de interesses religiosos em comum, nunca fui de papear via e-mail ou programa de mensagem instantânea com ele. Ainda assim, meu sonho me mostrava ele incomodado com tomate e molho de tomate, e resolvi contatá-lo para contar o sonho. Qual não foi minha surpresa quando ele disse que ultimamente tem desenvolvido uma alergia a tomates e derivados. Não foi a primeira vez que experimentei essa espécie de conexão que me surge (brota?) sem explicações. Mas eu aprendi a falar dela sem medo, mesmo quando eu não a entendo. Normalmente vai fazer sentido para alguém ou vai me demorar a cair a ficha, mas ela existe, é válida, é um sinal dessa coisa que guardamos em comum com todo o resto do mundo. Se ela vem de antes, da antiguidade, dos ancestrais, o que mais nos une a eles é que fazemos as mesmas coisas: procurarmos por deidades que nos assistam e nos banqueteamos com elas, com os antepassados, com os amigos, e com os que ainda virão.

Memórias, lembranças, saudades, carinho... Isso podemos ter com todos. É só conseguirmos abrir um pouco mais os olhos da alma.



Participe!

outubro 07, 2010

Sonho com Hermes

Estes dias tivemos um rito para as Ninfas, Akhelous e Hermes. Para celebrar esses sacrifícios, que aconteciam na antiga Erchia, usei bonequinhas de ninfas em cima de um mapa dos Bálcãs (que inclui a Grécia, para lembrar o rio Akhelous) onde também estão algumas das minhas jardineiras de plantas (para lembrar também Gaia, com a terra), uma pedra cortada de interior de cristal para Hermes ('hermai') e uma vela de canela. Consagrei a chama à Héstia e fiz duas preces, uma para Akhelous e Hermes e outra para as ninfas e Gaia (veja as duas no site). Refleti um pouco sobre essas deidades e o aspecto mensageiro de Hermes, como deus das estradas e tudo o mais. Foi um rito super-rápido e eu fiquei meio sentida por não ter conseguido ir até um rio ou lagoa, porque estava muito cheio de carros perto quando passei por lá, então fiquei pensando se tinha valido algo tão simples.

Mas na noite seguinte ao rito, no meio de um sonho normal, vejo 'um cara' andando rápido entre as pessoas e reparei que era Hermes, pois estava com um capacete que parecia casco de tartaruga (pelo formato, mas era liso - sem aqueles desenhos geométricos), com asinhas na cabeça (não sei se na cabeça ou no capacete) e nos pés, e roupa vermelha grega. O curioso é que não era nem chiton nem himation nem exomis, era uma peça única leve e aberta, que ao acordar imaginei que fosse uma clâmide. Fui olhar no nosso site e não lembrava que a clâmide - além de ser roupa de soldado, com a abertura para deixar a mão da espada livre - era também roupa de mensageiro, porque deixa o braço livre para conduzir carruagem e entregar coisas. E ele era magro, provavelmente pela questão da agilidade.

Então, mesmo na sua típica pressa, ele encontrou uma forma de me mostrar que meu momento valeu a pena sim, que ele gostou da lembrança. E eu pela primeira vez o vi "em pessoa" assim tão claramente (ao menos o que dá para vermos de alguém que está passando no meio do povo... rsrs!).

Espero que isto sirva de reflexão para quem ainda acha que Eles não respondem ou não se importam...

setembro 28, 2010

É nós no friso!

A organização grega Thyrsos lançou a primeira edição de sua revista IDEON ANTRON, com 60 páginas, e nela vocês encontram uma entrevista de 5 páginas comigo, representando o RHB.

Pode-se ler em grego no site da revista clicando AQUI (páginas 8 a 12).
A entrevista original em inglês pode ser lida clicando AQUI.
E a tradução em português a partir do inglês está disponível clicando AQUI.

Espero que gostem!

setembro 19, 2010

Coisas que me dão raiva (parte 3)

(parte 1) e (parte 2)
Inspirado em (ou suscitado por): Depois da Dança - Aquilo que se pode ofertar

Para 'variar', a terceira coisa que me dá raiva é também relacionado a estupidezes de pessoas que com certeza Platão colocaria no grupo ou dos ignorantes ou dos opiniáticos. Mais provável que neste último, já que eles não admitem desconhecer as coisas e sim dão suas sentenças em cima delas, baseados apenas em seus conceitos, preconceitos e achismos.

Alguns desses seres criticam quem compra comida pronta para ritual, porque - segundo eles - você não fez um sacrifício, e os deuses 'passariam longe' do seu rito. Eu não sei se essas pessoas ganham dinheiro sem sacrifício ou acham que cozinhar é uma droga, porque o meu é suado e pra mim culinária é um prazer.

Eu costumo usar as coisas que os deuses me apontam (além de saber quais aromas, plantas, símbolos, cores etc agradam a cada um deles). Imagina se você sugere discretamente ao seu amigo uma coisa pronta que você acha linda, dando a dica de ele comprar para você, aí ele vai e faz uma imitação ele mesmo. Não é a mesma coisa, você queria a que viu e não a que ele fez só porque ele teve o "sacrifício" de fazer sozinho. E nem vou passar longe do presente que ele me compra se ele batalhou pela grana que pagou pelo produto.

Esta semana eu comprei uma tigela com banho de prata, com alças tipo ânfora, com figuras que pareciam sereias de navio (com asas) abaixo das alças, lindíssima. Ela apareceu por acaso quando fui comprar verniz numa loja de construção. Isso pra mim é como os deuses me dando uma dica de como retribuir as milhares de coisas que Eles fazem por mim, e eu fico feliz de poder ser grata de alguma forma, com algo que Eles gostem e colocam na minha frente. Nessas horas eu não ligo se foi caro ou se o preço compensou o tamanho. Acho ridículo medir esse tipo de coisa quando é para os deuses que merecem o melhor que eu posso dar.

E não estou me contradizendo ao falar que usamos coisas simples e compradas, se essas coisas compradas forem mais elaboradas. Os deuses sabem o que podemos dar e o que eles querem receber. O aparato apareceu pronto na minha frente, não foi um amigo falando "encontrei alguém que faz réplica de metal pra gente" ou "encontrei um manual de fundição e uma forja para alugar". Eles sabiam que eu podia pagar por aquilo (que nem foi tão caro assim), e ao mesmo tempo eu poderia escolher não comprar, já que estava acompanhada (o que às vezes parece um teste de disposição/serviço), e cada vez menos eu deixo passar oportunidades ou fico com vergonha de alguma coisa. Aliás, faz muito tempo que não deixo passar, e já venho falando muito mais da minha crença com pessoas aleatórias do que antes.

Não sou dos que acham que os deuses só aceitam oferta em taça de cristal lapidado, mas também acho que deve-se ter respeito pelo relacionamento que vocês (indivíduo e deidade) têm. Isso significa seguir o que Eles estão te mostrando (incluso coisas para comprar) e respeitar quando Eles mostram algo para outra pessoa (não querer ficar imitando). Isso inclui não ficar perguntando pro seu amigo quanto custou e qual tamanho tinha o que ele conseguiu (como se medindo se vale a pena você comprar também quando a coisa não veio para você, sem contar quando é ele que vai ter que fazer tal serviço por você que não mora na mesma cidade).

Estava conversando com uma amiga sobre eu me irritar mais quando falam das pessoas que eu gosto do que de mim, então o post da Sarah e alguns comentários posteriores mexeram comigo a este ponto de vir falar aqui.

O que soa mais absurdo nisso tudo é pensar que esses sujeitos se acham uma espécie de "patrulha divina" e fica vendo foto dos ritos alheios para avaliar quem oferta o quê. Acredito que está na hora de eles olharem o seu, em vez de ficar 'curiando' os outros.

Essa postura de achar que um deus passa direto por uma oferta sem dar bola pro seu rito é ter uma visão muito servil (talvez resquício cristão) de deus, como se caso você não fizer direitinho você vai ter que se confessar e rezar tantas preces em penitência porque comprou a comida em vez de fazê-la. Nessas horas os deuses dessas pessoas não parecem os mesmos dos meus, porque os meus são pais, protetores, dedicados, orgulhosos donos dos 'bichinhos de estimação' que somos, que acham bonitinho quando você vai buscar o jornal e os chinelos deles, e não uma pessoa/deidade folgada sentada num trono observando e concedendo favores a alguém que fica ostentando (olha a hubris!) sua parafernália ritual em cristais dourados e dotes culinários excepcionalmente elaborados.


Piedade: amar a Ele (e não admirar a si mesmo).

Para os gregos (e tantas outras tradições), o certo é o métron, a justa medida, nada em excesso, a correção. Nisso constitui a virtude. O resto é vício. Então, nada de passar direto pelos sinais e fazer as coisas de qualquer jeito, mas também nada de achar que só vai "funcionar" se você fizer o que toma mais tempo e custa mais grana.

Com o tempo, você vai achando seu modo de saber onde é o ponto de equilíbrio da balança. Mas, para isso, como tudo na vida, a grande questão (e a grande resposta) é treinar. Só fazendo é que aprendemos a fazer, e isso requer prática constante, e não uma prática que fique esperando um dia que você tenha dinheiro e tempo para fazer. Lembrando os escoteiros, é preciso ficar "sempre alerta" e fazer uma 'boa ação' todos os dias...

setembro 12, 2010

Estado, política, eleições, cidadania, educação...

Como estamos em ano de eleição, resolvi comentar um pouco da reflexão que costumo fazer sobre a questão do Estado que Platão explicita em A República.

Sócrates dizia que formar um Estado não significava alcançar a felicidade de alguns, mas de todos, um cidade/unidade, e isso tem a ver com Princípios. Por isso, a Educação exerceria um papel fundamental, formando cidadãos íntegros, virtuosos, que respeitassem as leis, as regras, as normas, as tradições, os mais velhos etc. Um Estado perfeito deveria ter prudência, valor, temperança e justiça. E aí é preciso esclarecer o que cada um desses quatro princípios significa, já que precisamos definir as coisas antes de falar delas.

Prudência seria a sabedoria de acertar em suas deliberações, o que torna essa virtude essencial aos guardiões da cidade. Valor é a coragem e preservação de critérios sobre a natureza, uma virtude esperada nos guerreiros. Temperança é a harmonia, o equilíbrio, a ordem, o domínio das melhores partes sobre as inferiores (isso inclui dominar as paixões), virtude necessária à cidade inteira. Justiça é dar a cada um de acordo com sua natureza e merecimento, cada um fazer o que lhe compete por natureza e atos, ocupar-se do que é próprio, disciplinar-se, governar-se, ser amigo (e senhor) de si mesmo, harmonizar nous/psique/soma e sentir-se parte de uma unidade. A Justiça é uma virtude que todos e cada um deveriam seguir. Injustiça seria inverter os papéis, como esperar que um sapateiro vá para a guerra ou que um indivíduo irracional se transforme em líder.

Por essas coisas que imagino que hoje não temos um Estado. Para começar, os deputados não pensam no benefício de todos, cada um defende um segmento da sociedade o qual vota nele (professores, policiais, GLBT, evangélicos etc). Além disso, não temos uma educação de formação humana, e sim uma educação de formação intelectual/instrucional, na qual você só adquire conhecimento para passar em provas e entrar no mercado de trabalho; você não sai da escola uma pessoa melhor - boa, justa, equilibrada, virtuosa e tal. E o governo não demonstra ser justo, prudente, valoroso e com temperança.

Na Grécia Antiga (não em todas as pólis, mas na maioria delas), você precisava demonstrar por alguns anos o seu valor para poder receber o título de 'cidadão' (que pertence à 'cidade'), o que incluía o direito a votar. O que temos hoje é que qualquer pessoa que tire documento (certidão de nascimento) já passa a automaticamente a ser considerado cidadão, por mais vil que ela seja. E o voto, em vez de um direito concedido aos mais bem preparados, passou a ser obrigatório (um dever - nem sempre consciente) para todos.

Então eu sempre me entristeço ao ver o estado (sem Estado) em que nos encontramos. Para você ter uma ideia, os filhos dos guardiões do ideal platônico seriam considerados filhos de todos os guardiões, e criados por todos eles, assim evitar-se-ia o apego individualista; bem o contrário do tanto de nepotismo que temos hoje na política. Sócrates inclusive menciona que os ofícios não eram herdados, os filhos de guardiões sem aptidão eram deslocados a outros cargos e os filhos de outras classes poderiam se tornar guardiões. Muitas sociedades antigas tinham essa compreensão, de que cargo era questão de valor e não de parentesco.

Por isso também me irrito quando as pessoas pensam que o tempo melhora as coisas, que a modernidade é sinônimo de progresso. Nós melhoramos em tecnologia e talvez em tolerância, mas decaímos muito em humanidade e alma. Ainda assim, eu prefiro não acreditar no tal "bons tempos que não voltam mais" e imaginar que tudo é cíclico e um dia voltaremos a evoluir no que mais importa. Afinal, se o sonho do imperador Juliano não for só uma lenda, faltam apenas alguns séculos para a águia de Roma retornar do oriente e restituir-nos a cultura antiga do mediterrâneo...

julho 29, 2010

Direito (e dever) à vida

Em época de eleições e questões polêmicas, resolvi dar uma olhadinha em como eram essas questões pra 'nossa gente' da antiguidade. Fazendo tal pesquisa, confirmei que não havia proibição social na Grécia Antiga contra aborto, suicídio ou pena de morte, mas temos que lembrar que também não era proibida a escravidão, então não trata-se de simplesmente 'imitar' como era.

Com relação ao aborto, ele era legal, desde que o esposo ateniense desse o consentimento para a esposa fazer um. A proibição de Hipócrates contra usar um pessário (espécie de 'supositório' vaginal) para induzir o aborto não era por questões morais de se o feto era uma pessoa, mas sim uma preocupação com a mãe. Só existe uma evidência da religião falando contra o aborto: um santuário de Ártemis na Ásia Menor que proibia a entrada de mulheres que tivessem usado um pessário. Mas, mesmo assim, poderia ser algo mais a ver com miasma do que com crime ou transgressão.

O que podemos fazer hoje em dia é pesar os argumentos éticos dos lados envolvidos e deixar a consciência nos conduzir. Nesse caso, haverá diversas opiniões entre os helênicos. E é assim que eu advirto que o que virá a seguir é baseado no entendimento que tive de algumas leituras de escolas de mistério.

Quero falar especificamente do suicídio, que é a única coisa que eu não me admitiria fazer gratuitamente em circunstância alguma. Por "gratuitamente" entenda-se uma situação em que eu não tivesse que escolher entre a minha vida e salvar a de alguém, na qual iria preferir salvar a da outra pessoa (inclusive para não passar o resto da minha pensando que poderia ter evitado aquilo). Fora isso, por mais sofrimento que eu enfrente aqui no mundo (que já não foi pouco), não me vejo no direito de decidir que/quando ele vá acabar por supressão da minha vida física.

Então eu encontrei um motivo pelo qual seguidores dos Mistérios gregos eram contra o suicídio. Eles baseavam-se no mito em que os Titãs desmembraram Dionísio.

Esse mito conta que os Titãs atraíram Dionísio/Baco distraindo-o com sua própria imagem em um espelho e o desmembraram em pedaços que foram fervidos na água e tostados, para serem comidos. Atena teria resgatado o coração do deus assassinado e reconstituído-o em toda a sua glória. Zeus então fulminou os Titãs com seu raio e dessas cinzas teriam surgido os seres humanos. Como os Titãs tinham devorado parte de Dionísio, seus corpos também continham um pouco da vida do deus. Portanto, os seres humanos eram feitos em parte da matéria mundana titânica e em parte da matéria divina dionisíaca.

Dessa forma, aquele que tenta se auto-destruir ergue sua mão contra a natureza divina que traz dentro de si, este corpo humano que é jazigo de um deus retalhado e que deve ser preservado com o maior cuidado.

E é assim que cada dia mais me vejo em consonância com o caminho que escolhi, pois o povo grego antigo partilha dos mesmos pensamentos e valores que desenvolvi das minhas percepções e entendimentos... da vida e do mundo.

julho 20, 2010

elefante, o elevante

Este texto não vai ter um começo decente nem um propósito muito específico. É simplesmente resultado de eu ter um elefantinho de pelúcia e gostar de Ganesha, o que me deu vontade de falar da simbologia do elefante como imagem de sabedoria.

Mesmo sendo grande, o elefante toma cuidado para não pisar na trilha das formigas. (As pessoas verdadeiramente grandes não pisam nas pequenas.)

Os olhos do elefante são pequenos e as orelhas são enormes. (As pessoas não deveriam ligar para o que vêem - a aparência ilusória - no mundo externo, mas compreender o que ouvem e saber ouvir.)

O elefante caminha pausadamente, mas, quando a manada chama, ele sai correndo e arrasando tudo pelo caminho. (Quando a voz da unidade com o universo nos convoca, não deve existir nada no mundo material que sirva de obstáculo para deter nossa corrida.)

Sua tromba demonstra a alta sensibilidade - e sensitividade - a cheiros/estímulos, abrindo-se a energias e mundos que, de outra forma, seriam inacessíveis. (Aliás, já escrevi neste blog sobre as propriedades do nariz como o lugar que interage o interior com o exterior, veja a postagem clicando AQUI.)

Geometricamente, o elefante é uma esfera sobre quatro pilares, que dizem ser similar à estrutura do cosmos. Além disso, suas orelhas são meio triangulares e sua tromba é um arco como a lua crescente.

A palavra "elefante" vem, claro, do grego (rsrsrs) ἐλέφας, que significa marfim.

Na Índia, existe Hastinapura - cidade (pura) dos elefantes (hastin) - que é chamada também de cidade da sabedoria. É ela que é disputada pelos exércitos dos Kuravas e Pandavas no Bhagavad Gita.

O elefante também era montaria de reis.

A ioga associa o elefante ao chakra muladhara, de elemento terra, a base, a raiz, o centro.

Quando eu era pequena, adorava a música do passo do elefantinho: "Quando ele nasce já é forte, mesmo grande é tão engraçadinho; é bom, traz sorte! Trate com carinho tudo aquilo! O fiozinho do seu cabelo é bastante para conduzi-lo. Veja como ele é bonitinho! Olha o pêlo dele como brilha! Lá vai, na trilha. Olha o passo do elefantinho! No circo em festa ou na floresta, ele é sempre o bicho mais bonzinho." E agora achei a musiquinha. Quem quiser ouvir, tem ela clicando AQUI.

Um elefante pode incomodar muita gente, como diz outra canção, mas a mim não. Sem contar que é infinito o número de elefantes que "se penduraram numa teia de aranha" e viram "que a teia resistiu" (outra musiquinha).

E é uma pena que um símbolo que ensina tanto seja considerado um xingamento no ocidente...

junho 29, 2010

Dipolieia/Bouphonia

Este domingo escolhi celebrar a Dipolieia/Bouphonia assistindo a uma apresentação de Boi (Bumbá) numa festa junina. Por quê? Bem, vamos ver o sentido:
DIPOLIEIA ("ao deus da cidade"): Festival em honra a Zeus Polieus (di - a zeus, polis - cidade). BOUPHONIA ("matança do boi"): Neste dia (parte do Dipolieia), algumas garotas buscam água para usar em ferramentas afiadas. Os afiadores afiam um machado com cabo e uma faca de açougueiro. Vários arados de boi são arrebanhados pelo pasto até um altar, onde cevada e trigo foram colocados. O primeiro boi que for ao altar está "consentindo" em ser sacrificado. Um homem mata o boi com o machado e outro corta sua garganta com a faca. Ambos soltam suas ferramentas e fogem. Depois o boi é retalhado e preparado para o banquete. Seu couro é estufado com palha e costurado, de forma que pareça vivo. Um julgamento então começa para determinar quem é o culpado pela morte do boi. As primeiras apontadas são as carregadoras de água. Elas culpam os afiadores, que, por sua vez, culpam os sacrificadores. Finalmente, os sacrificadores culpam o machado e a faca, que são declarados culpados e jogados ao mar. (O tema para refletir nesse festival parece ser o ato da reparação - alguém tem que pagar pelo que acontece - e de como nos livrarmos da culpa).

BUMBA-MEU-BOI: A origem dessa festa seria uma mistura, nas fazendas, de tradições africanas (como a do boi geroa) com européias (como as touradas) e alguns elementos indígenas. O enredo básico é o seguinte: um rico fazendeiro possui um boi muito bonito, que inclusive sabe dançar. Pai Chico, um trabalhador da fazenda, rouba o boi para satisfazer sua mulher Catirina (ou Catarina), que está grávida e sente uma forte vontade de comer a língua daquele boi. Os caboclos, junto com os índios e índias, procuram entre os vaqueiros quem fez isso, descobrem e prendem Chico. Quando o fazendeiro encontra o boi, ele está doente (ou morto). Os pajés curam a doença do boi (ou o ressuscitam) e descobrem a real intenção de Pai Chico. O fazendeiro o perdoa e celebra a saúde do boi com uma grande festividade.
RELAÇÃO: Como a Dipolieia caiu em junho (ela costuma cair entre o final de junho e começo de julho) e aqui tem várias apresentações de Boi nessa época, sinto que é inevitável pensar na semelhança por termos a questão de um boi sendo morto e vários personagens procurando um culpado (fuga e julgamento) que é, por fim, redimido da sua culpa; fora a parte em que tentavam fazer parecer que o boi está vivo e, no mito mais atual, ele realmente ressuscitar. Além disso, o Pai Chico usa um facão nas danças, que me lembra a faca afiada do Bouphonia, e tanto a língua (no Bumba-boi) quanto a garganta (no Bouphonia) são partes da boca.

[ Nota: Curiosamente, sem saber qual grupo iria se apresentar naquele horário, assisti ao Boi de Teodoro, sendo que Teodoro vem do grego, "presente de deus", embora não tenha sido esse o motivo do nome do grupo que ali estava (que o batizou pelo seu fundador). Além disso, eles eram de Brasília, onde fui criada. Para mim, tudo foi um sinal, ou melhor, um aval.
Nota 2: Aliás, se formos mais longe, veremos que essas cerimônias com a ressurreição de um boi começaram no Egito, no culto a Ápis, no Nilo.
]

A lenda "demonstra sempre o contraste entre a fragilidade do homem e a força de um boi" (wikipedia). É uma festa que acontece no país inteiro, só muda o nome:
"...no Maranhão, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí é chamado bumba-meu-boi, no Pará e Amazonas é boi-bumbá ou pavulagem; em Pernambuco é boi-calemba ou bumbá; no Ceará é boi-de-reis, boi-surubim e boi-zumbi; na Bahia é boi-janeiro, boi-estrela-do-mar, dromedário e mulinha-de-ouro; no Paraná, em Santa Catarina, é boi-de-mourão ou boi-de-mamão; em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Cabo Frio e Macaé é bumba ou folguedo-do-boi; no Espírito Santo é boi-de-reis; no Rio Grande do Sul é bumba, boizinho, ou boi-mamão; em São Paulo é boi-de-jacá e dança-do-boi."

Então, onde quer que você more, fica a sugestão de alternativa para a sua celebração da Bouphonia na Dipolieia dos próximos anos.

junho 23, 2010

Skirophoria

Sexta-feira teremos o seguinte festival:
O Skirophoria (também conhecido como Skira) ocorre na época do corte e debulhamento do grão. A Sacerdotisa de Atena, o Sacerdote de Poseidon e o Sacerdote de Hélio vão para o Skiron, um lugar sagrado para Deméter, Koré, Atena Skiras e Poseidon Pater, pois lá foi onde Atenas e Elêusis se reconciliaram. Atena e Poseidon representam a vida da cidade, e Deméter e Koré representam a agricultura; Hélio testemunha Seus juramentos (como Ele testemunhou o rapto de Koré). O Skiron é onde, de acordo com a tradição, a primeira semeadura aconteceu. Um grande e branco dossel (chamado de skiron) é carregado sobre as cabeças dos sacerdotes e sacerdotisas durante a procissão. É um escudo que simboliza a proteção dos campos, fazendas e pessoas do calor escaldante, evitando a queimada e a seca. A Skirophoria é celebrada principalmente por mulheres (enquanto os homens dominam a Cidade Dionísia - ver mês de Elaphebolion). Para trazer fertilidade, elas se abstém do intercurso neste dia, e para este fim elas comem alho para manter os homens afastados. Elas também jogam ofertas dentro das megara - cavernas sagradas de Deméter: bolos em forma de cobra, falos e leitõezinhos. (Eles se tornam os Thesmoi - coisas deitadas ao chão - que são removidas na Thesmophoria, no mês de Pyanepsion). Essa cerimônia relembra o guardador de porcos Eubouleus que foi engolido/tragado com seus porcos quando Perséfone foi raptada para dentro do submundo por Hades. Os homens têm uma corrida na qual eles carregam ramos de videira do santuário de Dionísio até o templo de Atena em Skiras. O vencedor ganha a Pentaploa (Taça Quíntupla), contendo vinho, mel, queijo, algum milho e óleo de oliva. Só a ele é permitido compartilhar essa bebida com a Deusa, para quem uma libação é vertida para que Ela abençoe esses frutos da estação.
http://sites.google.com/site/helenismo/Home/festivais/skirophorion-loios
Como podemos celebrar hoje?

Na rua: se você morar na cidade, visite o campo. Se morar no campo, visite a cidade. Torne isso uma espécie de descoberta e apreciação do novo. Leve algo branco para Atena, azul para Poseidon, verde para Deméter, vermelho para Perséfone e dourado para Hélio. Se houver cinco pessoas, cada uma pode estar usando essas cores. Os homens podem fazer uma corrida levando ramos de videira.

Em casa: Faça dois altares ou divida o altar em uma parte rural (com marrom/verde) para Deméter e Koré e outra parte urbana (com cinza) para Atena e Poseidon, decorando-os com suas ofertas votivas e imagens que tiver associadas a essas deidades. Entre as duas partes, coloque algo dourado que represente Hélio e, diante desse centro, uma tigela contendo o Pentaploa: uma mistura de vinho, mel, queijo, grãos e azeite. Se possível, faça um dossel branco por cima de tudo.

Rito: Primeiro dirija suas preces e ofertas para Atena, em agradecimento por as pessoas da cidade terem a oportunidade de se alimentar dos frutos do campo. Depois dirija-as a Poseidon, agradecendo os frutos do mar que nos alimentam sem pedir quase nada em troca. Volte-se então para Deméter, comprometendo-se a manter a terra limpa para termos abundância em sua honra e que ela nos conceda uma divisão justa de seus frutos. Em seguida, agradeça a Perséfone por guardar os pensamentos e a cultura, a memória e os mistérios. Peça a Hélio para testemunhar as intenções de que os deuses mencionados protejam uns aos outros, e que Eles e nós estejamos em harmonia trabalhando pela mesma causa. Verta libações do Pentaploa esperando bênçãos de Atena aos frutos da estação e ofereça os Thesmoi (bolos em forma de cobra, falos, porcos) para Deméter. Conclua o ritual como estiver acostumado/a.

junho 09, 2010

Kallynteria e Plynteria

- imagem: detalhe de estátua em Corinto: coruja na mão de Atena -
Esta semana tivemos os festivais da Kallynteria e da Plynteria, ambos em honra a Atena.

No primeiro, que é o festival da varredura, fiz apenas uma limpeza nas ofertas votivas a ela e no altar onde elas ficam, acendendo um incenso em seguida.

No segundo, acordei pensando em como eu iria fazer para arrumar tempo para ofertar-lhe figo na praia, porque antigamente se ofertava doce de figo no litoral onde a estátua da deusa era banhada e recebia um novo vestido. Esse era também um dia 'desafortunado' pelo fato de a estátua estar fora da cidade, produzindo uma ruptura na ordem das coisas. (Quem quiser saber mais sobre ambos festivais, clique AQUI.)

Enfim, eu teria um dia cheio, mas teria que dar um jeito. E Atena providenciou esse jeito para mim.

Pois bem, fui para a minha obrigação matinal e qual não foi a minha surpresa ao perceber que terminamos tudo às 9 horas da manhã e não às 11:50 como de costume! Consegui tempo para ir ao supermercado atrás dos figos, os quais só achei enlatado e em calda, o que me fez ter que comprar um abridor de latas para não ter que voltar em casa e pegar um. Chegando na avenida, estacionei, abri a lata e a levei para uma escadaria onde costumava haver uma espécie de 'templo', umas colunas gregas que hoje estão cobertas de vegetação. No meio dessas plantas, um caminho de areia até a praia e ao mar. Foi ali na escadinha mesmo que pronunciei o "lambane anathema mou" (aceite minha oferta) enquanto entregava-lhe o doce, o qual melou um pouco minha mão e eu provei, estava bem gostoso, embora eu nunca tenha sido fã confessa de figos.

Já à noite, sozinha em casa, fui concluir meu ritual, fazendo uma mini-procissão pelos cômodos com o incenso aceso no incensário (a começar da frente da imagem de Atena que está na porta do meu armário), e tentando me lembrar de algo que fosse semelhante ao que se espera que digamos, que seria mais ou menos assim:

Hoje relembramos o festival no qual a estátua da deusa Atena era levada de seu santuário para ser banhada e receber um novo vestido. É um dia em que o véu entre os mundos fica mais tênue, não sendo um tempo propício para se honrar os mortos e sim para agradar os espíritos malignos que possam estar por perto agora que Atena se ausentou da cidade para ser lavada. É pelo exercício da Xenia (hospitalidade) que começamos a nos proteger de tais espíritos.

Usamos a água lustral esperando que a sabedoria flua como água dentro de nós. Acendemos o fogo sagrado, esperando que seu poder queime dentro de nós. Que a oliveira sagrada cresça também dentro de nós. Que, ao nos purificarmos, afastemos - de nós e deste lugar - todo o mal.

Titãs, deuses primordiais, respeitamos suas forças e prestamos-lhes nossas honras. Éris, deusa da discórdia, respeitamos seu poder de destruir o que não se mantém firme e prestamos-lhe nossas honras. E todos os outros que possuem uma poderosa lei ou que presidem questões de justiça, respeitamos vosso poder e prestamos-lhe nossas honras para que não nos causem problemas. Aceitem estas ofertas e não cruzem nossas fronteiras.

Ninfas, sátiros, mênades, dríades, naiades, oceânides e outros daimones da natureza, pedimos a vossa proteção e cuidado enquanto Atena está fora. Deuses e deusas, observem-nos enquanto executamos os ritos sagrados para Atena e não deixem o mal chegar até nós.

Agradecemos aos Destinos por nos trazerem até este dia e esperamos que teçam um belo futuro para nós. Agradecemos a Zeus por suas bênçãos e esperamos por seus favores futuros. Agradecemos a Gaia, mãe de tudo, a mais antiga, que nutre a terra e tudo o que há nela.

Atena, que, com a fumaça deste incenso, nossas preces subam a ti nas asas das corujas e nas vozes do vento. Aceite-as e abra os nossos corações às tuas bênçãos!

Prometemos trabalhar com nossos amigos para honrar os deuses, buscando a verdade (aletheia), a virtude (areté), a justiça (dikê) e a sabedoria (sofia), com alegria em nossas almas, desejando que os deuses nos abençõem a fim de que nos tornemos mais fortes e alertas às necessidades uns dos outros.

Athena, kharin echomen soi. / Atena, nós te agradecemos
Daimoni, kharin echomen hymin. / Espíritos, vos agradecemos.
Panes theon, kharin echomen hymin. / Todos os deuses, vos agradecemos.

Fizemos como nossos ancestrais nos ensinaram e como esperamos que nossos filhos um dia façam, para que os deuses nos sejam favoráveis!

Ésto! (Assim seja!)

E o seu dia, como foi?

maio 27, 2010

Os bisavós do mar

No Mounykhion 21 (dia 6 de maio deste ano) tivemos o sacrifício aos Tritopatores, espíritos ancestrais benevolentes. Queria ter postado sobre eles no dia, mas sempre é bom não deixar passar as coisas e ainda poder aproveitá-las nos próximos anos, então resolvi falar assim mesmo.

Os Patroios/Patroia são os deuses que recebem culto em uma nação ou família desde a época de seus antepassados ou, algumas vezes, tratam-se dos próprios ancestrais1. Zeus era, portanto, um "theos patrôios" em Atenas e também entre os heróis que traçavam sua genealogia com Ele fazendo parte de sua origem2.

Havia um santuário aos misteriosos Tritopatores/Tritopatreis (que pode significar 'bisavós' - três vezes pais), do lado de fora dos portões Dipylon da Acrópolis, ao lado do riacho Eridano, onde se eram feitas preces pedindo pelas crianças da família. Esse lugar era dedicado provavelmente aos espíritos ancestrais cultuados pelos atenienses ou aos espíritos do vento citados no mito órfico. Outra interpretação possível do nome dos Tritopatores seria 'aqueles que têm Tritão como pai', ou seja, os "sereios" (o masculino de 'sereia' é 'tritão'), conectando-os também a Atena, que era conhecida por Homero como Tritogenia (nascida de Tritão). De qualquer forma, eles estariam associados com a água, já que seu santuário ficava perto de um riacho, e há especulações sobre terem formas serpentinas - lembrando Erictônio/Ericteu/Cécrops, um homem com cauda de serpente. Os Tritopatores eram benevolentes e eram frequentes nos cultos menores com fortes raízes locais que floresceram na antiguidade3.

Você pode fazer uma prece aos Tritopatores se lembrando de como tem sido sua relação com seus antepassados e suas terras. Li uma bem bonita sobre o mar e um ancestral marinheiro/pescador, que continha um trecho o qual traduzo aqui:

Eu me dirijo a ele (ou ela) como posso, linha após linha, canção após canção; mas meu jeito de pensar nas coisas nunca é exatamente o jeito que tudo acontece, tão arrebatador é o som das coisas mais úmidas, tão ressonante é a voz de minha mãe perto do mar chamando alto meu nome. [...] Teu seja o trovão, a pesca que trago na mão; possa o meu caminho errante em bom senso e decência ser a quilha pela qual tu ainda navegas.4

~~~

1 Luciano de Samósata - A Morte do Peregrino, 36 - "Então ele pediu incenso para jogar no fogo, [...] e -fitando o sul, disse: 'Espíritos de minha mãe e meu pai, recebam-me favoravelmente'."
2 Apolodoros - A Biblioteca, 2.8.4 - "...eles fizeram três altares para Zeus Paterno, e sacrificaram neles".
3 John Pollard - Seers Shrines and Sirens: The Greek Religious Revolution in the Sixth Century BC - traduzido e adaptado.
4 Brendan MacOdrum, 2 de novembro de 2006 - Prayer to Tritopatores - Ver completa em inglês clicando AQUI.

maio 09, 2010

Miasma e Catarse

Sugeriram-me falar sobre o Miasma, já que muitos ainda confundem tanto ele quanto a Hybris com uma noção de "pecado" que não cabe nesses conceitos, visto que o miasma é um termo sem peso moral, algo bem mais metafisicamente complexo do que uma transgressão que gera "culpa" - como entendemos o pecado. Miasma é uma poluição, contaminação, mas essa "poluição" a que o miasma se refere não necessariamente tem a ver com "sujeira", assim como "purificar-se" não é exatamente "se limpar".

Portanto, reunindo leituras que fiz de postagens da Eleuthera (2), do Ruadhan e outras fontes (livros e companhia), fiz um apanhado breve e geral aqui para vocês.

Antes de tudo, convém lembrarmos que há vários tipos de miasma: o do corpo (como doenças e morte), o da alma (como impiedade, vícios, crimes e a hybris), o da casa (como misérias, desgraças, calamidades), o da cidade (como pragas, injustiça, desastres naturais), o do planeta (como febres, epidemias).

Há também diversas causas do miasma, todas referentes à perturbação da lei natural e a mudanças da ordem da vida na Terra: contato com agentes estranhos (espíritos de gente assassinada, espíritos de pessoas que morreram com miasma, almas que não receberam os ritos fúnebres); contato com o nascimento ou com a morte natural; contato com certas ações criminosas ou injustas; contato com lugares que passaram por eventos trágicos ou violentos ou sacrílegos; ou resultado de ações que desagradaram aos deuses.

A lei natural é representada por Themis. Sempre que ela é transgredida, aparece Nemesis, sua antítese. As filhas de Nemesis - Erínias - são as agentes do miasma, trazendo consigo a ira.

Isso acontece porque é preciso haver justiça, ou seja, se existem ações criminosas, elas devem gerar reações recíprocas para o equilíbrio e a equidade. Então, realizamos a Catarse (purificação) para nos reconciliar com os agentes sobrenaturais que poderiam nos punir, assim como para nos purificar dos efeitos físicos que o miasma provoca.

A Catarse [Katharsis] pode acontecer através de: purificações menores e anteriores às preces/ritos (como lavar as mãos e rosto, tornar a água lustral etc); purificações após o contato com o parto ou a morte de alguém; purificação da atmosfera de algum lugar; expulsão de agentes de miasma; purificação através de curas e remédios; purificação da alma em forma de música e dança; purificação de uma casa e seus membros; purificação de uma vítima de crime violento; purificação de alguém que matou sem intenção; purificação da alma para fins de culto; rituais específicos de purificação (Diasia, Thargelia etc).

Vamos ver então miasmas e catarses específicos de cada caso:

1) Morte natural - os olhos e boca do cadáver ficam fechados e o corpo dele é lavado com água do mar ou salgada (se houver feridas de morte violenta, elas devem ser limpas e cobertas); os parentes do morto devem ser purificados antes dos ritos fúnebres e depois que o período de luto passar (mulheres grávidas não podem ter contato com o corpo do morto); visitantes devem se purificar após sair do velório (lavando suas mãos em água salubre ou lustral que esteja do lado de fora da porta da casa); a casa deve ser purificada com água do mar três dias depois da morte; o suprimento de água da casa deve ser trocado e o fogo do altar deve ficar apagado e só será aceso novamente no terceiro dia de catarse; o morto pode receber ovos e comidas no túmulo (ovos têm enxofre, que é bom para expulsar miasma).

2) Parto - nem a mãe nem o bebê são fontes de miasma, e sim o ato de nascer é que tem tais propriedades, então o lugar onde ele ocorre é tratado da mesma forma como o do caso acima, com algumas diferenças: a casa é purificada no quinto, no décimo e no quadragésimo dia após o nascimento; as pessoas que tiverem contato com a mãe nos cinco primeiros dias também precisarão se purificar.

3) Intercurso Sexual - esse é um miasma de natureza menor e costumava se relacionar mais aos fluidos masculinos do que aos femininos. Deve-se tomar banho antes de se apresentar diante dos deuses para preces/ofertas/ritos. No caso de crimes sexuais, cujo miasma era maior, o ritual era outro, com detalhes ainda desconhecidos, mas acredita-se que consistia de sacrifícios no templo de Apolo.

4) Assassinato - o pior dos miasmas, que não vinha apenas como punição ao assassino, mas também à sua família, descendentes e até à cidade de residência dele. É por isso que assassinos eram exilados, pois o contato com ele poderia levar à infertilidade das pessoas, animais e plantações. Com relação ao local do crime, temos o exemplo de quando Odisseu limpa sua casa (com enxofre e fogo) do miasma de ter matado os pretendentes de Penélope. Outra forma de purificação é pelo sacrifício ritual de um Pharmakos (bode-expiatório). Neste caso, a catarse tinha dois momentos: primeiro o assassino teria que ser liberto dos desejos de vingança da alma do assassinato, depois teria que ser purificado do miasma do próprio crime.

5) Lar - como o miasma afetava famílias e gerações e atraía coisas ruins para o lar, e como às vezes o parto e a morte aconteciam na casa, esta precisava ser purificada.

6) Terra/Água/Atmosfera - os helenos se preocupavam com a harmonia entre alma, corpo e meio-ambiente, então as condições sanitárias da cidade e do planeta também nos importam. Acreditava-se que certos lamaçais, brejos e pântanos continham propriedades de miasma e causavam febre nas pessoas dali, assim como se acreditava que usar a mesma água usada por alguém com miasma poluiria a outra pessoa também. Pragas e epidemias eram resultado de miasma na atmosfera, então se deveria acender fogueiras com unguentos de cheiro doce e coroas de flores para purificar o ar.

[ Abrindo um parênteses aqui, é bom ressaltar que menstruação NÃO é miasma, a quantidade de sangue presente num fluxo (que combina mais pedaços de tecido e mucos do que sangue) às vezes é maior que o sangue que sai de um corte acidental no dedo. Essa ideia de impureza relacionada a coisas femininas veio de séculos de influência judaico-cristã, que não estavam presentes no helenismo. O que recomenda-se é: no caso de cortar o dedo, lave a ferida, faça preces a Asclépio, bote um band-aid e esqueça; no caso de menstruação, tome um banho relaxante, troque seu absorvente/tampão/toalhinha, faça preces a Higéia e Réia e esqueça. Siga então para o seu ritual tranquila. ]

É verdade que os partos no mundo antigo não eram tão esterilizados como hoje, assim como os ritos fúnebres não deveriam ser muito higiênicos e que, em compensação, hoje a gente provavelmente polui muito mais o meio-ambiente. No entanto, miasma não significa falta de higiene e catarse não significa limpeza do corpo.

Ainda assim, não há razão para se apavorar com a questão do miasma a ponto de achar que não pode fazer nada e tem que parar com todos seus rituais por medo de estar impuro. Tente olhar pelo lado da saúde, do equilíbrio e da justiça, de uma forma bem prática.

Para cada tipo de miasma há uma maneira de se realizar catarse, e não existe nenhuma pessoa ou crime que não possa ser purificado.

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PS.: A Sarinha já falou dos pensamentos dela sobre o miasma, clique AQUI para ler.

abril 26, 2010

Xrónia Pollá

Sexta-feira 23 foi meu aniversário. Logo, resolvi postar sobre os motivos de como nós (seres humanos) costumamos comemorar essa data.

A crença de que a fumaça era uma boa forma de fazer suas preces subirem aos céus e o aroma do incenso ou da comida ofertada ao fogo agradaria aos deuses pode ter dado origem à tradição de acender velas sobre o bolo de aniversário. Talvez daí também venha o ato de se fazer um pedido antes de soprá-las, afinal, a fumaça só surge quando as apagamos.

Apesar de o bolo com velas ser registrado como algo que surgiu na Alemanha do século XIII, nas festas infantis (kinderfeste), sua origem - como tudo, claro, rsrsrs - é da Grécia Antiga. O bolo em si foi evolução de um preparado de mel com pão que os devotos de Ártemis levavam para ela em Éfeso. O bolo era redondo como a lua (Ártemis é uma deusa lunar) e as velas simbolizavam o luar que ilumina a terra. Ártemis também é a deusa dos nascimentos, partos, crianças, então é natural que os bolos de aniversário sejam mais frequentes nas festas infantis.

Agora, sem ter lido nada parecido em lugar algum, eu arrisco dizer que a história de o aniversariante dar o primeiro pedaço a quem lhe é mais caro lembra-me demais Héstia, a quem os helenos ofertavam sempre o primeiro e o último de tudo o que comiam e bebiam, além de fazer libações ao Agathos Daimon (o Bom Espírito). Assim, a gente escolhe se perguntar quem seria o Bom Espírito (ou a boa alma) que merece uma homenagem nossa no corrente ano.

Portanto, de hoje em diante, quando vocês estiverem presentes em um aniversário, lembrem-se dos gregos, lembrem-se de Ártemis, lembrem-se de elevarem seus pensamentos e preces aos deuses na hora em que as velas se apagam, e não se esqueçam de dar a Héstia a sua devida porção. Quando assim fazemos, qualquer mínima refeição pode virar um belo de um Banquete...

abril 05, 2010

De Volta para o Futuro



Difícil para uma nômade falar de lugar preferido, pois cada cidade tem aquele cantinho que eu não deixo de visitar toda vez que passo por ela, ou aquele recanto que tenho vontade de conhecer na primeira vez que chego em uma. E - para falar a verdade - eu normalmente visito mais pessoas do que lugares. É o lugar no coração delas que eu vou lá para cuidar e não deixar que ela esqueça que me tem dentro. Afinal de contas, o melhor lugar do mundo é aquele em que estamos em boa companhia, seja de outros ou de nós mesmos com o sagrado.

Mas tudo bem, vamos escolher lugares físicos...

Eu poderia falar de lugares que me trazem lembranças, como o rio onde eu pescava com meu avô, ou a cidade onde eu tinha fãs e professores que diziam que eu tinha futuro na música (um futuro que eu deixei pra trás). Poderia também falar de lugares bonitos ou experiências malucas, os acampamentos, as aventuras arriscadas. Ou poderia falar dos lugares imaginários pra onde me reporto quando preciso tirar férias do mundo real. Também poderia falar do meu Mundo Xamânico. Ou poderia dizer que o melhor lugar do mundo - aquele em que podem me deixar largada e trancada por horas lá dentro - ainda é uma biblioteca. Porém, não vou falar de nada disso. (E também não vou falar que é a Grécia, rsrs!)

De qualquer forma, já que é difícil escolher, vamos nos ater ao texto que seguia o tema.

A pergunta da proposta era para onde meu pensamento foge, para onde tenho vontade de ir quando desejo largar tudo. E, quando se trata de largar tudo, eu com certeza não iria para um lugar de memórias do passado, porque largar tudo - para uma taurina com gêmeos e outras doidices no mapa - é largar TUDO mesmo. Tirando as horas em que a vontade é deixar o corpo e ir ao Hades ou onde for que me esperem no além, o lugar que eu amo é aquele em que eu vou estar sozinha e feliz no meu futuro. Sim, eu amo 'estar sozinha', e isso não tem nada a ver com 'ser solitária'. Ao contrário, eu quero exatamente estar num lugar que seja superpovoado, onde eu possa sentar em uma praça pública e observar as pessoas. Onde eu possa dizer bom-dia para desconhecidos, pedir informações na rua (mais para fazer alguém me olhar do que propriamente por estar perdida) e estender a conversa com uma alma de energia boa que vier falar comigo. E poder me despedir e sair dali, ir e voltar quando eu quiser, sem ter que fazer relato nem perguntar ou responder nada. (Depois, eu tranquilamente iria me afastar do mundo para meditar e pensar nele.)

E quero que esse lugar tenha borboletas. Pra mim, um lugar sem borboletas é um lugar sem alma.

O lugar (espaço) que eu amo fica no futuro (tempo). O lugar que eu amo é na quarta dimensão. Minha ágora (comércio, matéria) é agora, e meu templo (sagrado, espírito) é em outro tempo. Um dia eu vou pra lá, eu vou por lá, e nesse dia estarei amando esse lugar. Até encontrar uma outra estrada virtual para saltar...


Participe!

Beam me up, Scotty!

março 31, 2010

Coisas que me dão raiva (parte 2)

Continuando o post de 16.12.09 - Coisas que me dão raiva (parte 1).

Dia desses me pediram para ver um blog comunitário e li nele uma postagem que se baseava em autores (entre aqueles que eu já não recomendo) falando coisas que não é a primeira vez que vejo dizerem sobre os helênicos. Para muitas pessoas (ditas pagãs), como para quem escreveu no blog a que me refiro, os mitos gregos são 'uma maneira tosca' de desviar a atenção do culto à "Grande Mãe". Elas acreditam que os gregos - como uma espécie de 'ataque amedrontado para se defender' - tornaram as mulheres e deusas da mitologia helênica submissas às figuras masculinas e reduzidas a figuras relacionadas com a fertilidade.

Ora, para começar, a própria ideia de que os cultos que celebravam colheitas e partos eram uma "redução" feita ao feminino já é um preconceito de colocar a fertilidade como algo inferior, quando na verdade é ela quem cria a vida, sendo tão importante quanto os outros aspectos da existência natural e humana. Segundo que os escritos dessas pessoas, como observa uma amiga minha, sempre nos dão a impressão de que "era uma vez a 'Deusa Fofa', aí veio Zeus e acabou com tudo". Como se o fato de Zeus ser masculino representasse um patriarcado nocivo, opressor e misógino, que não é necessariamente o caso.

Depois essas pessoas citam Atena, que uma das maiores mulheres da mitologia é colocada nascendo da cabeça do pai, e não como uma suposta deidade sem pai ('filha da mãe'?) anterior, como se isso reforçasse o tom machista com que eles cantam a visão de mitologia grega que têm. O que aparenta é que elas não leram a história toda, ou que leram uma história diferente da que lemos. Zeus engoliu Métis por causa da profecia de que o rebento que ele teria com ela tomaria seu trono, mas de nada adiantou, pois Atena saiu da cabeça de Zeus já adulta e armada, quando Hefesto abriu o crânio do cronida. Veja: não foi um homem, mas uma mulher que veio com o poder suficiente para destronar o pai; uma mulher forte e guerreira e que nunca se casou, não uma semeadora fértil (o que já mostra que a teoria desse pessoal da "Deusa Fofa" se contradiz). Além disso, há na mitologia deidades sem pai aparente, por partenogênese da mãe, que é como Hera teria gerado Tífon, Ares e o próprio Hefesto. Mas os poucos deuses que saem do corpo de Zeus (Atena e Dionísio), ambos tinham uma mãe (Métis e Semele).

Somariam-se a isso outras evidências que poderiam nos levar é justamente ao contrário, a ver o poder que as mulheres tinham nos relatos mitológicos. E tudo sem contar o fato de os autores-fontes de onde essas pessoas bebem se referirem à mitologia grega falando sempre e apenas da dinastia de Zeus, desconsiderando todas as outras anteriores.

É claro que tudo acabaria sendo questão de como você lê; afinal, já dizem que "o diabo pode converter toda a bíblia a seu favor". Porém, aproveitando os recentes comentários feitos sobre o julgamento do caso Isabella: testemunhas podem mentir, evidências não. E é por essas e outras que no helenismo enfatizamos que mais valem os ritos e a práxis do que os mitos. Já que elas gostam de autores, que tal um dos nossos maiores estudiosos da religião grega? Ele diz que os ritos são mais importantes e mais instrutivos para a compreensão das religiões antigas do que os mitos que mudam tanto: “rituals are more important and more instructive for the understanding of ancient religions than are changeable myths” (Walter Burkert, ‘Greek Religion’, 54).

Então, antes de ouvir/ler as impressões que um autor (neopagão-novaera-autoajuda-etc) tem a dizer de algo, por que esse povo não lê artigos de arqueologia e de filologia, por que não se intera das descobertas relativas às práticas de culto? Sabe, acabamos caindo naquela questão de leitura crítica, de saber que nem tudo o que está escrito e impresso é verdadeiro, buscar mais coisas, mais pesquisas que corroborem o que você entendeu, e que no final faça sentido com todo o intertexto que carregamos de visões que se complementam entre si.

(E não vou nem entrar na questão de essas pessoas andarem precisando fazer as pazes com o masculino. Aliás, aproveito para indicar um blog ótimo que fala dessa questão das masculinidades, escrito por uma amigona minha: o Curiosa Identidade.)

Enfim, e só pra lembrar: se não fosse por Zeus, as pessoas provavelmente sequer teriam um mundo organizado no qual buscar esses livros que lêem...

março 15, 2010

grão de outono é semente de primavera


Às vezes as pessoas acham que seguimos o calendário ao contrário, por estarmos no hemisfério sul. Mas pense como ele também faz sentido pra gente! Nas próximas duas semanas, as últimas de março, teremos a Elaphebolia de Ártemis, a Asclepieia e a Dionísia Urbana, com o outono chegando.

Outono...

Vem Dionísio, fornecedor da vinha, portador do tirso, enriquecendo-nos de frutos deliciosos, sementes de êxtase, brotos de liberdade; trazendo o mistério atrás das máscaras, o primeiro beijo que aquecerá o inverno, a fantasia em meio a colheita...

Vem Ártemis, caçadora, da lua crescente, que cuida da juventude, com toda a graça das folhas que caem e não das flores que nascem (como seria com Perséfone); é o momento da colheita das frutas, e Ártemis é deusa do nascimento, trazendo nova vida ao mundo; a Kourotrophos, que era procurada junto a Asclépio ao se pedir por um bom parto...

As cores do outono em muito combinam com as da lua crescente.
Os grãos do outono são as sementes da primavera.
A vida é algo que nunca morre, apenas se reencena - como o deus do teatro, renascido duas vezes - e uma coisa completa a outra.

Nas raízes, nos ventres, nas sombras, tudo onde só vemos o escuro e o escondido, no fundo está repleto de vida, uma vida que se prepara para nascer.
É fechando os olhos físicos que costumamos enxergar mais além.

E era assim que Asclépio curava, durante o sono, no sonho, na companhia da serpente - tão ctônica. Com ele, espera-nos alguém para nos acompanhar. Alguém que depois descobrimos ser nós mesmos. Nosso outro lado, quiçá o de dentro; aquele sábio que completa o tolo, e que se libera de sua racionalidade para vir dançar conosco nas sombras, na luz, na chuva. E ele traz a solução para os nossos males da alma e enfermidades do corpo.

Como um serpentino de Asclépio, o corpo entra na dança e o espírito entra em transe. Das árvores caem as folhas, mas da terra se erguem as forças de renovação.

Se eu sigo a pólis ou o equinócio, é o de menos. O que eu sigo mesmo é o movimento dos deuses...

março 13, 2010

Aithaloeis Hephaestos

Há uma coisa que eu penso e, como diz uma amiga: EU penso, opinião MINHA, desta pessoa que aqui vos escreve, e não algo oficial ou documentado. Nem sei se chega a ser propriamente uma UPG. Mas, enfim, eu acho que Hefesto tem traços de negro. Nem que não seja na cor da pele, mas por ele oficialmente ter olhos e cabelos escuros e seu nariz não ser dos mais finos.

Isso vem primeiro de quando li em "Casa Grande e Senzala" sobre as habilidades que certos africanos tinham com os metais. Depois do fato de acharem, no mito, que ele era "feio" só porque era diferente. Junta-se a isso o seu epíteto de "Aithaloeis Theos (deus coberto de fuligem)" e o fato de - por acaso - "ferreiro" em inglês ser "[black] smith". Aliás, Aithaloeis é traduzido em inglês por "sooty", que significa *"1 fuliginoso, coberto de fuligem. 2 preto, escuro.", segundo o Dicionário Michaelis. No grego moderno, temos termos do tipo:
# aitháli (αιθάλη) = fuligem;
# aíthalon (αίθαλον) = bistre, ou seja, da cor marrom-escura do corante feito de fuligem, como a sépia das fotografias;
# aithalódis (αιθαλώδης) = "sooty"*;
# aithalomíxli (αιθαλομίχλη) = uma fumaça com neblina, como a que se vê em centros urbanos.

Hefesto. Seu nome é de origem desconhecida, pré-helênica, mas dizem que pode vir de 'hemera phaestos' - o que brilha de dia. (Engraçado, porque descobri que os angolanos dizem que brilham, enquanto acham os congoleses baços, os namibianos cinzentos e os guineenses quase azuis.) Seria mais um indício?

Aí um belo dia eu vou assistir "O Ladrão de Raios" e aparece no Olimpo um deus interpretado por um ator afro-americano: Conrad Coates. Quem era? Hefesto! Achei muita coincidência, considerando que não sou nada afeita ao que fizeram no filme (não só com relação aos deuses, mas principalmente por não ser nada como o livro) e do escritor da série ser um cristão carola. Se bem que não sei quem definiu que Hefesto seria negro ali. E que - às vezes - os deuses escrevem certo por 'autores' tortos.

Além das descrições de que ele era coxo, Homero diz, na Ilíada (18), que Hefesto tinha um pescoço massivo e pêlo no peito. No mais, só podemos observar as representações dos artistas. Reparem nos traços destas; uma do século V AEC, uma da Roma Imperial e uma moderna (clique para ver maior):


Hoje foi dia de libação a ele, então voltei a pensar nessas minhas questões. Será que elas têm alguma razão de ser?...

março 03, 2010

Blogagem Coletiva: 8 de março

Participe!




As 130 mulheres que morreram naquela fábrica de tecidos de algodão e indústria têxtil em 1857, homeageadas com um Dia Internacional da Mulher a partir de 1910, eram tecelãs que marcharam por melhores condições de trabalho, diminuição da carga horária e igualdade de direitos.

Isso me faz lembrar das Moiras, as deusas do Destino, que fiam, tecem e arrematam as vidas de todos, e me faz pensar que uma das coisas a comemorarmos neste 8 de março é o fato de hoje termos mais oportunidades de sermos agentes nos próprios destinos, fazendo as nossas escolhas que geram as consequências as quais formam as imagens da tapeçaria no tear das deusas, e não mais deixando que alguém apresente um modelo formado e estabelecido para uma classe - a das mulheres.

E não eram só os homens que faziam isso, muitas mulheres mesmo tinham a atitude de perpetuar sua dependência e os valores que internalizaram sem questionar, que aprendiam e transmitiam sem jugar sua validade. O grande lance não é sair de casa, deixar de acompanhar o crescimento dos filhos, precisar trabalhar fora para se sustentar etc, mas sim ter o direito ao livre-arbítrio, o de escolher ficar em casa, e não ser obrigada a ficar em casa porque nasceu-se biologicamente mulher. Aliás, isso expande-se ao direito do homem também ser um pai menos ausente e um marido com menos responsabilidade por pessoas que lhe seriam totalmente dependentes (principalmente em termos financeiros).

Quando paramos de comprar telas pintadas nas quais costuramos ou bordamos em cima de um desenho pré-fabricado (e com as cores também já determinadas) e resolvemos criar a partir de um novelo cru em uma tela branca, damos às mulheres mais chances de conhecer o mundo e damos aos homens mais chances de conviver com sua família, entre outras oportunidades que criamos para ambos ao deixá-los escolher que desenho de tapete irá mostrar quando Átropos cortar nosso fio. Cloto tece-o, Láquesis puxa-o e enrola-o, mas a direção e a forma dos pontos dados cabe apenas a nós. E cada vez cabe mais a nós do que aos outros.

Pode parecer mais fácil deixar de fazer escolhas, esperar que alguém nos diga o que fazer, em quem votar, para que time torcer, em que deus acreditar, qual profissão seguir, não ter culpa pelos resultados das escolhas erradas e tudo o mais. Só que ao fazermos isso, não vivemos nossa vida, vivemos a vida de outro. E desperdiçar uma vida inteira é muito tempo perdido e inutilizado, quando poderíamos estar realizando o nosso daimone, aquilo para o qual viemos ao mundo, o que viemos fazer, a nossa missão e talento.

Então neste 8 de março de 2010 eu escolho comemorar a ampliação da nossa oportunidade de fazer escolhas.

E que, em homenagens a aquelas tecelãs do passado, possamos criar imagens cada vez mais belas e significativas no tear dos Destinos!