junho 10, 2019

"A Feitiçaria na Atenas Clássica"

Há alguns meses terminei a leitura do livro "A Feitiçaria na Atenas Clássica" da Profª Drª Maria Regina Candido. Não posso me estender muito nos comentários para não revelar tudo do livro, mas tentarei fazer uma resenha e especialmente demonstrar como essa leitura só me confirmou ainda mais como é acertado que o reconstrucionismo não enverede por essa área da magia (ou do feitiço)

O livro foca nos katádesmoi, as tábuas de imprecação. Para começar, o fato de o uso dessas tabuletas aparecer na virada do século V para o IV AEC contextua muita coisa. Nesse período pós guerra do Peloponeso e de participação pelo voto, temos uma transição dos interesses públicos (to koinon) para os privados (to idion) e isso gerou um recuo da sophrosyne (o autocontrole, a justa medida). A sociedade que era de logos, tradição, coesão cívica, ritos ancestrais, começou a ceder espaço para práticas individuais, para relações com a morte e para o uso de maldições para "fazer mal ao inimigo". A magia, que era desviante, retorna como parte do cotidiano. Isso por que os atenienses ora seguros se deparam com situações imprevisíveis, inusitadas, incertezas e novidades que a comunidade da pólis não consegue responder. A crise das cidades atingiu as áreas econômicas, sociais, políticas, religiosas, intelectuais e artísticas, fazendo desse um período bem específico da história. 

As lâminas de chumbo estudadas no livro são de três tipos: as imprecações contra atividades de comerciantes, as testemunhas no tribunais, e os rivais de relações amorosas. O significado do termo katadesmoi remete aos sentidos de amarrar, prender, imobilizar alguém embaixo da terra, ou afundar, enterrar, ocultar alguém no submundo. Já o termo latino, defíxios, seria sinônimo de um tablete que pretende "fazer mal ao inimigo". 

Os nomes nas lâminas apontam para grupos sociais provenientes desde a Liga de Delos até o pós-guerra do Peloponeso, o que leva a autora a acreditar que os indivíduos que faziam uso dos katadesmoi pertenciam a segmentos sociais de prestígio político e/ou exerciam atividades econômicas consideráveis. Eles se sentiriam ameaçados (na sua riqueza, prestígio e honra), com o risco de perder seus recursos para concorrentes ou no tribunal, ou de serem difamados e terem sua atividade prejudicada. O prejuízo poderia ser moral, pecuniário ou mesmo de levar à morte. Por temer essas coisas, se recorria à magia para a imposição da vontade do usuário

Por mais que os princípios tradicionais permitissem "ajudar os amigos e prejudicar os inimigos" e legitimar a auto-defesa e a indenização, essa indignação do cidadão que se sentia lesado em seus direitos deveria ser levada para o contexto público do tribunal, enquanto que no contexto das lâminas havia uma violência privada, uma vingança de interesse individual, insubordinada às leis. Nem todos tinham o poder da oratória para vencer nos tribunais, então procurava-se outros meios. Nas tábuas estudadas, o solicitante objetivava tanto paralisar a ação do inimigo quanto exigir a destruição total do adversário, levando-o à morte, às vezes junto com a família e pessoas próximas. Platão cita em Fédon que o mal-olhado (baskanía) podia interromper a fala de um orador no momento decisivo da argumentação. O usuário das tábuas acreditava na eficácia de enviar essas maldições, e lemos em algumas tábuas ele solicitando que se paralisasse a voz, as mãos, os pés e a mente do adversário.

O problema se tornava ético quando a motivação do solicitante era a sua própria incapacidade pessoal, ou seja, por inveja (fthónos) e rancor acumulado diante do adversário bem-sucedido. Aristóteles, na Retórica, fala que a inveja tem por princípio a rivalidade de alguém que aspira as mesmas coisas que dão sucesso a outra, isto é, alguém possuir algo que prospera e o que invejoso não consegue alcançar por ser pessoalmente incapaz. Um político famoso por ser um invejoso especialista em calúnias era Aristogeiton. Ele buscava fatos que podiam ser transformados em recebimento de dividendos, e andava sempre acompanhado por testemunhas ímpias e más.

O valor do comércio parece ter sido alimentado no período de Pisístratos, que incentivou as atividades comerciais na área urbana. Também houve a mudança da rota comercial no Mediterrâneo beneficiando Atenas por conta do porto de Pireu, que foi melhorado no tempo de Temístocles e no governo de Péricles. Após o conflito com os persas, Atenas tornou-se uma potência mercantil devido a sua posição hegemônica no mar Egeu. As pessoas migraram do campo para a cidade para trabalhar como artesãos e comerciantes, enriquecendo alguns setores da economia. Mas essa riqueza recente oriunda do comércio era considerada de má qualidade, os emergentes não seriam qualificados a participar da administração da pólis. Acreditava-se que a riqueza proveniente da agricultura era a mais adequada para a formação do cidadão-camponês-soldado. Xenofontes diz que através do cultivo da terra adquire-se status, prestígio e virtudes. 

A riqueza fomentava a hýbris, e a pobreza despertava a inveja. Ambas levavam os indivíduos a cometerem injustiças, transgressões e crimes. Uma das razões da magia dos katadesmoi estaria, então, na concorrência. Solicitava-se às potências sobrenaturais a ruína das atividades e a eliminação física do oponente, assim como a desarticulação da sua família, o que, fatalmente, prejudicaria a sua oficina. As dificuldades econômicas do momento redirecionam também as atividades femininas, levando as mulheres a deixarem a reclusão para atuar na garantia da sobrevivência da família. Também se inseriram no comércio os metecos (estrangeiros), aumentando a concorrência. A profissão de kapelikós (comércio de varejo) podia ser exercida por homens, mulheres e escravos. 

As tábuas eram executadas de maneira oculta e dissimulada, uma ação desviante à religião oficial da pólis, e eram específicas do espaço urbano. Algumas inclusive eram escritas invertidas, de trás para a frente, e com palavras incompreensíveis e indecodificáveis. Além disso, o solicitante contava com o sigilo, pois seu nome nunca constava na lâmina. A ágora era o espaço da palavra falada, dos debates, mas a palavra escrita pertencia aos templos e santuários, por isso também sua relação com a magia, pois a escrita dava sacralidade ao acordo, como uma forma de garantir que este seria cumprido. Além disso, as imprecações eram gravadas em materiais como chumbo e bronze - duráveis e indestrutíveis (o chumbo, por ser cinza e frio, também lembrava a morte). Elas eram depositadas nas poças, nos leitos de rio, nas sepulturas do cemitério e nas fendas dos santuários e templos de deuses ctônicos. Os verbos eram na primeira pessoa: eu enterro/afundo/amarro. E há cinco termos constantemente citados: 'enterro' 'sua casa' 'sua vida' 'corpo' 'ofício'. 

O mago que grafava nas lâminas para o solicitante deveria ser alguém capaz de grafar e imprecar da forma precisa e de acreditar na eficácia das lâminas. Esses 'magoi' faziam a 'goetía', a magia negativa de fazer mal ao inimigo, e divulgavam serem capazes de persuadir os deuses a serem seus servidores. Esses especialistas costumavam ser homens à margem da sociedade que surgiram no final do século V AEC entre os atenienses, desprezados por uns e procurados secretamente por outros. Sua clientela eram de insatisfeitos, amargurados e inconformados, e esses usuários preferiam manipular as almas que ainda não haviam chegado ao Hades.

Nos séculos IV e III, houve um acentuado esforço na realização de desejos e satisfação individual, e é quando vemos os katadesmoi amorosos, um pouco diferentes dos katadesmoi contra ofícios e os contra os processos. Nos amorosos, se citava no máximo duas ou três pessoas, e às vezes não se pretendia fazer mal ao adversário e sim ao ser amado. Quando não se conseguia despertar a sua adoração ou fidelidade, se recorria à sua destruição. O amor ou paixão não-correspondidos levava a vítima a agir como se estivesse acometida por uma doença. Nas obras de Eurípides, Fedra parece ser alguém vítima de uma imprecação (há três dias sem comer por conta de uma dor da paixão), assim como Medeia (que "jaz sem alimento, corpo dado às dores, debulhado em lágrimas"). Já no relato de Teócrito, Samanta não se conformou com o abandono e reagiu usando a magia ("assim como este ramo de louro arde em brasa, que arda também o corpo de Delfos", "se ele me desprezar, baterá na porta do Hades levado pelas Moiras e pela potência do meu veneno" e "quem se deitar com ele, homem ou mulher, será esquecido completamente, como Teseu esqueceu Ariadne"). Nos textos, Medeia e Samanta dão a entender que a mais grave atitude diante de uma vítima de desprezo e fracasso era o riso (ghélos), e somente a vingança da morte poderia reverter essa situação e trazer-lhes a vitória. 

Em resumo, os katadesmoi têm sua elaboração relacionada a um contexto de crise, de incerteza, e da supremacia do interesse individual ao interesse coletivo. A autora diz que: "A crença na eficácia da magia se deve ao contexto de crise na organização da políade que deixou de atender as necessidades dos seus cidadãos. Estes não deixaram de reagir e buscaram nas práticas mágicas as respostas, os auxílios e as alternativas visando remover obstáculos e solucionar as disputas".

Vale ressaltar que não havia culpa nem tempo para o arrependimento, pois desfazer uma imprecação era muito difícil. 

Essa discussão me lembrou uma postagem do site do Patheos, "Bruxaria é política". Traduzo aqui resumidamente o que a autora (Scarlet Magdalene) diz: 
Hécate é uma deusa dos marginalizados e a bruxaria é uma ferramenta dos desprovidos de direitos. Hécate é um exemplo popular de um tópico e deidade que é terrivelmente mal-interpretada, mal-representada e normalmente ignorada por causa de sua popularidade ser vista como um incômodo e não como uma característica. Não só por ela ser uma deusa da bruxaria, mas por ser uma deusa de muitas funções e muitos epítetos. “Soteira” (Σώτειρα) significa “salvadora”, um de seus epítetos. Seu deipnon (ceia), durante a lua nova, não era apenas uma forma de lhe fazer ofertas, mas também de prover comida para os desabrigados e famintos. Ajudar os necessitados era uma forma de oferta a ela, por mais que alguns torçam o nariz. Sendo uma deusa de fronteiras e lugares limítrofes, faz sentido ela ser associada com os marginalizados, com a periferia. Aristófanes cita "Pergunte a Hécate se é melhor ser rico ou faminto; ela lhe dirá que os ricos lhe enviam uma refeição todo mês e que os pobres a fazem desaparecer antes mesmo de ser servida". Ela também era solicitada em questões de justiça e decisões em assuntos domésticos: "Um dia os atenienses acessariam a justiça em seus próprios lares, cada cidadão teria um pequeno tribunal construído em sua varanda, similar aos altares a Hécate (Hekataion) e haveria tal coisa diante de cada porta" (Aristófanes, 'As Vespas'). A deusa também tinha um culto onde se acreditava que os doentes mentais eram curados. Ela também é patrona de mulheres feiticeiras como Circe e Medeia. Recorria-se a Ela tanto para fazer quanto para se proteger de bruxaria. Hécate é descrita no Oxford Classical Dictionary como "mais em casa e arredores do que no centro do politeísmo grego. Intrinsecamente ambivalente e polimorfa, ela ultrapassa as fronteiras convencionais". Nos arredores é que estão os pobres, os doentes mentais, as mulheres, e outros que não eram admitidos na política. 

Como vemos do livro, os comerciantes mercantis também se encaixavam nesses "emergentes excluídos" que não eram virtuosos por não terem adquirido sua riqueza da agricultura. A procura pelas tábuas de imprecação emergiu de uma situação histórica/política de transição. E é nessa situação de incerteza e crise que se buscam os meios 'alternativos' e 'sobrenaturais' de se conseguir alcançar seus objetivos pessoais em detrimento do interesse comum.

Portanto, esse tipo de magia era mal-visto, pois sabemos que desejar - por interesse pessoal - que um adversário e sua família sejam paralisados ou mortos nunca se encaixará nos princípios de uma religião cívica de amizade (philía) e autocontrole (sophrosine).