novembro 29, 2010

O presente é um tempo desembrulhado.

Conheço uns quatro ou cinco caminhos diferentes para ir e para voltar do meu compromisso matutino que fica a 25 minutos de carro de onde moro. Sei onde vai dar se eu virar antes ou se eu me distrair e perder uma entrada, de modo que posso optar continuar por ali e chegar aonde quero do mesmo jeito. A ida normalmente me exige que eu vá pelo caminho de menos trânsito, porque saio meio em cima da hora. Quanto à volta, todo dia me treino na escolha de por onde vou retornar para casa.

Bom, eu sei que isso não é o típico da maioria das pessoas que escolhe algo pacífico e previsível, que você possa ligar seu piloto automático e pensar em outras coisas da sua vida. Mas eu gosto de treinar meu cérebro a mudar. E faço isso não só porque antes da minha virada de Saturno o meu sol em Touro morria de medo de mudanças. Faço isso porque a gente precisa aprender a se adaptar a novas situações. Por mais interminável que algo pareça, ele não será para sempre. Nem as alegrias nem as tristezas.

Dia desses uma amiga comentou aleatoriamente comigo que me acha alguém com uma capacidade enorme para se adaptar. Foi bom ler isso. Principalmente porque nem sempre foi assim, e hoje se tornou algo um tanto quanto natural de mim.

Penso na figura do guardião da "República" de Platão, que comia o que tinha e dormia onde dava. O desapego, a coragem, a paciência, a imperturbabilidade, são coisas que me atraem...

Enfim, o fato é que, a partir do período em que você começa a vencer certas coisas na sua vida que lhe prendiam à matéria, esse tipo de vontade por responder apenas ao momento presente aumenta. Lembro de Sócrates andando pelo mercado e observando de quanta coisa ele não precisa. Ando assim ultimamente. Enquanto alguns amigos se debatem por acumular pertences, eu anseio pelo dia de me livrar da maioria dos meus. Eu adoro dar presente, jogar coisa fora, ver espaços livres serem criados, reciclar transformando cacareco em arte para embelezar a vida...

Se eu só conhecesse um caminho para os destinos que traço, se eu me detesse a seguir apenas aquela rota, isso sim seria para mim um obstáculo, uma pedra, um atraso, cacos de vidro na trilha dos pneus, reforma na rodovia que altera o seu curso.

O meu caminho é aquele em que motoristas negligentes me obrigam a reagir rápido. É a minha forma de chegar sentindo que atravessei por um campo de batalha e alcancei o outro lado com honra, merecimento e dignidade. Os motoristas lentos ou descuidados são como aquele adversário que é também teu professor. Aquele que ensina você a permanecer alerta. Não o alerta da tensão, mas o alerta da consciência.

Porque meditação não é só sentar em silêncio e esvaziar a mente. Meditação é prestar atenção ao que você faz, como você faz, como o mundo é, o que as deidades lhe mostram, o que você pode aprender de cada minuto, como cada ato é uma manifestação sagrada, como assimilar os acontecimentos como forma de auxiliar na sua evolução e aumentar seu conhecimento de si, do universo e dos deuses.

É justo por causa dos obstáculos e da percepção das vias que posso escolher todos os dias que a vida vai se tornando mais plena de sentido, como um fractal que forma um belo colorido global.

Ao sabermos disso, cada dia se torna como aquele vento que de repente sopra mais doce. E toda a espera se torna um preparo para melhor enfrentar a travessia que virá. Pois um dia eu sei que ela vai vir... Conto com isso. Até lá, convém treinar. E depois que chegar, treinar em dobro, porque a ação já vai ser real e imediata.

Nessas horas penso em meu avô, que já morou com minha mãe até na fronteira com a Bolívia e de quem contavam que tinha sido salvo por São Jorge de uns "índios" perigosos dali. Vou um pouco mais além e penso nos meus pais de outra vida que passaram perrengues nada legais também. E penso como tudo um dia liga a gente a todo o resto. Nascer no 23 de abril e ainda pertencer a uma religião que evita o contato com aquilo que um dia já me matou, bem antes de saber dessas coisas, é só um exemplo.

Os motivos retornam. Os "motifs" (na literatura, elemento recorrente que têm um significância simbólica em uma narrativa; na arte visual, um elemento com tema padrão; na música, um fragmento sucessivo de notas; na tecelagem, aquele pedaço repetido que - unido - gera um trabalho maior). Enxergá-los nos ajuda a entender a nós mesmos.

Por isso é que eu decido não parar. Ainda há padrões a descobrir. Ainda há pedacinhos a encaixar. Quero e anseio por ver qual será o trabalho maior que se apresentará ao final, no tear. A agulha e a madeira muitas vezes me machucam, mas sem mim elas não trabalham, e é pelo bem do todo que elas o fazem. A gente só fica esperando estar preparado e ter feito o melhor de si, sem desfiar antes da hora...

Esse é um dos meus muitos jeitos de refletir.

novembro 04, 2010

Mulheres de Atena

₪₪₪ Esta postagem é inspirada em escritos (traduzidos, reescritos, resumidos e comentados) dos blogs da Ellen e da Glaux, bem como de um artigo de Lucy Corcoran, linkados ao final da mesma. Já os termos linkados no corpo do texto são para outras fontes de leitura (referências mitológicas e literárias). ₪₪₪

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Eis uma pergunta intrigante: "Se as mulheres eram inferiores em Atenas, por que eles tinham uma deusa como padroeira da cidade?"

Claro que os estudiosos proporiam várias maneiras de responder a isso, e uma delas é a possibilidade de que os gregos aceitassem mais o conselho bélico de uma mulher do que de um parceiro (essa é a visão de Wilamowitz, citado em Otto, 1979). Mas vamos lá voltar um pouquinho nessa concepção de Atena como deusa do masculino por conta de ela nascer diretamente do pai e por conta do que Ésquilo, um escritor (homem) da literatura antiga, coloca em sua divina boca para defender Orestes.

Esse evento pode ser interpretado como uma demonstração de que as mulheres podem ter uma amizade verdadeira com homens (e com mulheres também) sem ter que configurá-la em algo "colorido"/sexual, mas uma amizade mental, intelectual, de companheirismo, camaradagem, de projetos em comum. E Atena tinha isso com Orestes, Odisseu, Perseu, Aquiles, Diomedes, Tydeus, e tantos outros. O que não significa que ela não tivesse esse tipo de amizade com mulheres também!

Ademais, mesmo que no caso de Orestes ela tivesse ido contra a mãe dele, pode-se ver que, em vários outros casos dos homens que ela protegia, ela o fazia de uma forma que prejudicava outros homens: como ir contra Heitor para ajudar Aquiles, auxiliar Odisseus a enfrentar 300 homens, e até atirar uma pedra no pescoço de Ares para defender Diomedes. Mas a intenção deste texto é falar sobre da relação de Atena com as mulheres, então voltemos às suas amigas.

Ela era tão amiga/irmã/querida companheira de Pallas na infância que depois acabou incorporando seu nome (tudo bem que Atena matou Pallas acidentalmente enquanto simulava uma luta com ela, mas lembre-se que Zeus semelhantemente 'devorou' Métis, se formos pensar por esse lado). Ela também foi amiga de Perséfone e Ártemis, com quem ela brinca no Hino Homérico a Deméter (verso 424). Foi amiga de Khariklo (mãe de Tirésias), a quem concedeu presentes, no poema de Calímaco. Quando Cassandra procurou refúgio no santuário de Atena durante o cerco de Tróia e foi arrastada e violentada por Ajax, Atena fica furiosa e persegue o herói até matá-lo partindo seu navio com um raio emprestado de Zeus. E, mesmo tendo de punir Medusa transformando-a em monstro, ao final ela incorpora a cabeça da górgona ao seu escudo como um emblema.

A história de Aracne também precisa de uma observação, colocando-a em um prato de balança oposto ao de Penélope. A esposa de Odisseu recebe de Atena os dons da tecelagem, da astúcia, da narração de histórias... "Athena a dotou mais do que às outras mulheres com o conhecimento de trabalhos manuais e um coração compreensivo" (Antinoos, na Odisséia de Homero, c.2 - v.115). A artimanha de Penélope é uma forma de usar a arte da tecelagem dada por Atena como uma verdadeira estratégia militar - também domínio da deusa. Já Aracne, esta usurpa e usa de forma errada a arte tecelã. Ela se gaba de seu trabalho ser melhor que o de Atena e aceita o desafio de uma competição tipicamente arrogante e insolente. Enquanto Atena tece sua imagem majestosa, Aracne retrata casos escandalosos dos deuses. Por isso sua tapeçaria é rasgada, ela é punida e transformada em uma aranha.

O curioso é que, tanto no caso da Medusa quanto no de Aracne, o relato passa a impressão de "ciúmes", que para os escritores antigos como o romano Ovídio, seria a emoção mais feminina que há. Ou seja, não combina com a ideia de uma deusa tão amplamente vista como sendo de um campo exclusivamente masculino. Parece que a relação de Atena com as mulheres passava por características dos dois gêneros, enquanto nas suas conexões com os homens não entraria essa pitada de rivalidade que é vista como típica no caso de duas mulheres.

De qualquer forma, reduzir Atena a uma deusa dominada pelo masculino num mundo em que imperaria o patriarcado é realizar um verdadeiro desserviço a ela. E a questão de ser chamada de virgem e mãe (de Erictonios) - ao mesmo tempo - talvez seja porque esse "virgem" é no antigo sentido da palavra, aquele que caracteriza uma mulher que não pertence a homem algum (e não no sentido de alguém que renega sua feminilidade). Quando homens e mulheres são iguais, não há posse, e esse reconhecimento de igualdade que estamos tentando viver nos tempos atuais só nos conclama a honrar mais ainda Atena de uma forma que vai além da tal ideia de uma filha casta.

O que ela é, é sim uma figura complexa, e todos os que a têm como padroeira das universidades, da sabedoria, do poder feminino, com certeza irão defendê-la nesse ponto (e nos outros). Em sua obra The Homeric Gods, Walter Otto chama Atena de 'deusa sempre-próxima' ("ever-near"). Ele diz que Atena é "a consumação", "o presente imediato", "a ação aqui-e-agora", "a presença espiritual redentora", "a ação veloz", "a sempre perto".

Uma das mulheres de quem ela hoje é patrona a definiu uma vez como:
"a paz solene da neblina cinzenta da manhã, espalhando seu orvalho em todas as coisas vivas [...]. Ela é o livro exato que você acaba lendo no momento perfeito. Ela é o estado meditativo que acompanha a criação de toda arte. É bom procurar por Atena, mas é melhor saber que Ela já está com você. Ela é verdadeiramente a deusa que está sempre perto." (Glaux, tradução minha)
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Fontes:
http://www.mythphile.com/2010/10/the-goddess-athena-feminist-or-misogynist/
http://glauxnest.blogspot.com/2010/04/virgin-athena.html
http://glauxnest.blogspot.com/2010/04/ever-near-goddess.html
http://www.ucd.ie/pages/99/articles/corcoran.pdf