outubro 12, 2017

Pontes e pontífices

Tudo bem sermos uma religião filosófica de mentes pensantes e espíritos livres, mas isso não significa que não precisamos de estrutura. Estrutura traz estabilidade e organização, o que é melhor que ter um caos. 

A ideia de ser livre não precisa nos fazer rejeitar qualquer tipo de autoridade, pois até mesmo pessoas unidas com um propósito é algo parecido com uma instituição. Uma comunidade é uma conexão, construída com paciência, planejamento e estrutura. Você não perde sua autonomia pessoal se procurar orientação de um grupo ou de uma pessoa mais experiente. Afinal, os outros só podem fazer isso: orientar; mas a decisão sobre o que fazer é só sua. 

Tem gente que acha bonito e rebelde afirmar que só os deuses podem lhe dizer o que fazer. Mas a questão é se essa pessoa tem o filtro certo para saber qual mensagem vem dos deuses e qual não vem. E a outra questão é: se você pretende ajudar os outros, precisa saber/aprender a ser ajudado e a deixar seu ego de lado. 

Para conseguir isso, precisamos reconhecer quando é melhor envolver outra pessoa. Estar todos no comando ao mesmo tempo ou não estar ninguém no comando normalmente não funciona. Podemos ter nossa individualidade e ao mesmo tempo servirmos os outros, sermos livres e ao mesmo tempo reconhecermos que outra pessoa tem melhor capacidade de nos ajudar a decidir. 

Nesses casos, a autoridade dos outros não está sobre a gente e sim sobre o objetivo que todos estamos querendo alcançar juntos. Sem isso em mente, não vamos conseguir realizar muita coisa. 

Xenócrates dizia que o Universo é composto de 3 partes: Sol com as estrelas, Terra com suas águas, e Lua com seus ares. A do Sol e estrelas seria o lugar onde os deuses habitam, a da Terra e suas águas seria o lugar onde os homens habitam, e a da Lua e ares lunares seria onde os daimones habitam, e estes são similares tanto aos deuses quanto aos homens em sua natureza. Sem os daimones, não haveria comunicação dos deuses com os humanos, assim como sem a lua o universo se desuniria. 

Ou seja, o terceiro elemento intermediário é necessário para essa comunicação. Zeus tinha Hermes como seu mensageiro, Hera tinha Íris. Perséfone é escoltada por Hécate ao sair e entrar do Hades. Hécate, aliás, é vista como tríplice exatamente por ser a deusa que intermedia dois outros elementos (reinos, mundos, seres etc). A fronteira é um terceiro elemento que une os outros dois e que possibilita - como uma membrana seletiva - que esses dois se comuniquem de forma efetiva. 

Também por isso Hécate esteja associada com a Lua. Dois séculos antes, quem era associada à Lua era Ártemis. E Selene era a lua em si. A Lua era uma estrela terrena ou uma terra estrelar, sendo assim um domínio de Hécate - que é tanto celeste quanto ctônica. 

Hécate é também a senhora e rainha dos daimones. Os daimones são espíritos imortais mas não divinos, que cuidam dos humanos. Eles tomam conta dos oráculos, comparecem aos ritos místicos, salvam os homens na guerra ou no mar, punem os transgressores, entre outras coisas. 

Mediadores são importantes. Recusar a ação deles para “não ter intermediários” não é rebeldia ou autonomia, é infantilidade e teimosia, sem falar em falta de humildade. Isso pode atrasar seu desenvolvimento em vez de demonstrar liberdade. 

Então vamos aceitar que somos limitados e aproveitar a disposição de quem pode nos ajudar a alcançar os objetivos que todos temos em comum. Não é vergonha nenhuma isso, e nem dependência ou insegurança, mas sim confiança, consideração e maturidade. 

Isso demonstra que você reconhece e é grato pelo trabalho do outro, seja ele um orientador, um deus ou um daimone. 

Mas é bom lembrar que um dos nossos maiores princípios éticos é o equilíbrio (métron, a justa medida). Logo, também não podemos deixar as decisões nas mãos do outro, precisamos ser responsáveis. O outro só pode nos orientar, mas é a gente que resolve o que fazer e assume a responsabilidade sobre o que decidiu. 

Com os deuses, por exemplo, eles fazem o que a gente pede/decide, e a gente que lide com as consequências. Já dizia Pablo Neruda: “Você é livre para fazer suas escolhas, mas será sempre refém das suas consequências.”

Portanto, o melhor é ter alguém que nos ajude a pensar antes de escolher. E aceitar isso não desconfigura sermos de uma religião de liberdade, autonomia e inteligência. Não confie apenas no seu próprio julgamento, ele também pode falhar às vezes. 

julho 16, 2017

"Torna-te quem tu és." (Píndaro)


As teorias psicológicas geralmente carregam uma visão bem traumática dos primeiros anos de vida, tornando nossas lembranças e a narrativa da nossa história pessoal algo infiltrado por essa ideia, que nos faz pensar na infância como uma época de calamidades desnecessárias e causadas pelos outros, as quais teriam moldado nossa personalidade de forma errada. Mas nossas vidas são mais prejudicadas por essas ideias do que pelos traumas em si. Nossas vidas são determinadas não tanto por como foi nossa infância, mas por como aprendemos a imaginá-la. Olhamos para a vida como uma narrativa cronológica e sem um roteiro, transitando entre ressentimentos sobre o passado e ansiedades quanto ao futuro. 

Para sairmos dessa identidade de produto social determinado por eventos aleatórios e reações estranhas, precisamos buscar não o sentido da vida em geral, mas uma razão pessoal para estarmos aqui. A beleza, o mistério, a mitologia por trás da nossa vida em particular. As teorias que misturam genética e meio-ambiente, inato e aprendido, hereditário e social, se esquecem de falar sobre o que é aquela coisa específica que faz você ser você, que vai além de ser apenas um resultado entre essas duas forças. Quanto mais dissermos que somos produto dos nossos cromossomos aliado ao que nossos pais nos fizeram numa época que já passou há muito tempo, mais nossas biografias vão ser todas parecidas com a história de uma vítima e bastante acidental. Mesmo que depois você vire o outro lado da moeda da vítima, que é a do heroi que sobreviveu, venceu e "se fez sozinho".

O cronológico não importa tanto. Não importa qual pincelada o pintor deu primeiro, o que você vê já é a arte pronta. Você é uma imagem completa, no agora. Como disse Picasso, "eu não me desenvolvo, eu sou". Essa sua essência pode ser ignorada o quanto você quiser, mas um dia vai sair e te tomar. Às vezes sua essência não aparece quando criança, porque você não está pronto. Por exemplo, pode ser que você vá ser um escritor, mas que nunca sentiu urgência em escrever quando novo, porque antes de criar você precisava aprender, olhar, ler, sentir, cheirar, viver, para não escrever besteira. Mas podemos ter percepções disso desde a infância sim, então seria bom tentar lembrar mais dessas percepções do que dos eventos traumáticos dessa época. São dicas, intuições, sopros, impulsos, estranhezas, urgências, que perturbam a vida natural e que estranhamente rotulamos de sintomas. Mas, para brincar com a linguagem, esse "sim, toma" é um presente pra você. Há uma razão para essas coisas te escolherem. E o início da palavra sintoma vem do grego "sym" (combinação, conjunto). Não estamos sozinhos. 

A psicologia é sim uma ciência, mas seu nome começa com "psyche", "alma" em grego, então ela porta muito do que seria identificado como espiritual ou religioso. Dizer que "o coração tem razões", que "há algo de inconsciente nas nossas intenções", que "nada acontece por acaso" etc, tudo isso é convencional e aceitável. E quando pensamos que estamos aqui por um motivo que não nos deixa morrer quando caímos da escada ou quando nos enchemos de vírus e bactérias? Podemos chamar isso de instinto, de autopreservação, de sexto sentido, de consciência subliminar, de energia universal ou de anjo da guarda - todas essas coisas são invisíveis e as sentimos presentes. Mas a sociedade prefere que você compre a história do sobrevivente que se fez sozinho do que a história de que você é amado por uma providência que guia você e de que você está aqui por ser necessário no mundo. E não estou falando necessariamente de deus/es externo/s. 

No mundo atual parece que estamos mais distraídos do que motivados. Procuramos coisas para fazer para evitar pensar, e não coisas para nos inspirar a criar. Porque dá trabalho descobrir sua missão e cumprir as exigências que vem com ela. Estamos cada vez mais fugindo de ser responsáveis, por isso também a teoria de culpar a infância é bem cômoda. Ora, se a cada 7 anos todas as nossas células do corpo se renovam, por que eu vou deixar que me definam pelo que me aconteceu na infância? O que eu passei pode explicar muito do meu comportamento hoje, mas não mudou quem eu sou ou o que eu acredito que vim fazer no mundo. 

Em vez de sermos apenas "estudos de caso", deveríamos ler a história de cada um além do eixo biológico-social, talvez algo mais parecido com o filosófico ou antropológico, mas sem o etnocentrismo típico. Podíamos realizar nossa análise menos em estatísticas e diagnósticos e mais em imaginação e mito-poesia. Assim veríamos as perturbações na infância menos como problemas de desenvolvimento e mais como emblemas que revelam muito do chamado individual, da descoberta da importância que tem aquela vida em particular. O maior pecado da psicologia é ignorar a beleza, a apreciação estética de cada história de vida. Cada mudança de situação na vida tem um sentido e uma interpretação, mas também tem uma beleza. Falar apenas em estruturas cognitivas e afins não tem graça. E ver a beleza em algo nos faz amá-lo. Ficar apenas procurando "problemas" torna a todos ansiosos - terapeutas, pais, crianças, pesquisadores. 

A descoberta do nosso chamado é algo que ao mesmo tempo ancora lentamente e voa bem rápido. É como uma árvore que tanto cresce para cima quanto se enraíza mais fundo. Quanto mais nos afastamos dele, mais nos despersonalizamos e menos vivemos. Viramos estatística dentro de um grupo. Sei que é melhor ser sobrevivente do que ser vítima, mas melhor que sobreviver é viver plenamente. Além de me identificar com milhares de pessoas que passaram pelas mesmas coisas que eu, também posso encontrar o que me torna única

Essa busca pela diferenciação é o que talvez nos faz mudar coisas visíveis e aparentes, como fazer uma tatuagem, adotar um novo estilo de se vestir etc. São coisas externas que expressam a necessidade de algo interior que nos defina. Quem sou eu especificamente? Algo que vai muito além da minha genética e acontecimentos do passado e vivência social. Achar esse algo é que são elas. De qualquer forma, na sua procura pelo autoconhecimento (que é o mote tanto da terapia quanto do helenismo), é melhor ir por esse caminho atemporal do que percorrer mil vezes aquela narrativa cronológica sem roteiro, que pode trazer muitos avanços mas que raramente nos deixa satisfeitos. 

Como ensinava Píndaro, primeiro precisamos descobrir quem somos, para depois agirmos de acordo com o que descobrimos.

Independente do nome que você lhe dá (gênio, daimon, anjo da guarda, ochema, fortuna, sorte, jinn, ka, ba, animal de poder, eu-superior, self, chi, ruah, pneuma etc), já pensou um pouco sobre qual o seu chamado?

abril 17, 2017

Ortopraxia e Pagus/Polis

Um ponto que volta e meia andamos lendo nas redes sociais é a questão do "livro sagrado". Não, o helenismo não tem um livro sagrado como a bíblia cristã ou os vedas hindus ou o alcorão islâmico ou o torá judaico. A literatura de Homero e Hesíodo, a história de Heródoto e Tucídides, a filosofia de Sócrates e Platão, o teatro de Eurípides e Sófocles etc, tudo isso é literatura, história, filosofia e teatro, não é doutrina religiosa. Nem mesmo os mitos são essencialmente literais. Esses livros dos gregos apenas dão uma ideia de como os antigos envolviam os deuses em suas vidas, e não era uma coisa tal como uma religião separada. Como dizia Tales de Mileto, "o mundo está cheio de deuses", não fazia sentido limitá-los a uma espécie de manual. Eles faziam parte de todas as parcelas e momentos da vida.

Um texto com um código moral seria como uma "razão correta" (ortodoxia) a se seguir, e os helenos estão mais interessados na "prática correta" (ortopraxia). Não adianta conhecer um reto pensar sem um reto agir, ou - como diriam os cristãos - uma "fé sem obras". Quando Aristóteles orienta sobre a virtude ser um meio termo entre dois vícios, nós sabemos ilustrar o que ele está falando, nós conseguimos pensar em exemplos, é algo bem prático. A virtude da coragem está entre o vício do medo e o vício da temeridade/inconsequência. Não se pode nem se paralisar e nem se jogar sem pensar nas coisas. Ele também salienta que a busca pela "excelência na virtude" (areté) é adquirida com a prática. E esse seria o nosso objetivo, sermos o mais virtuosos possíveis.

Então, quando alguém comenta que não tem feito festivais, rituais, libações etc, como se não estivesse estabelecendo contato com o sagrado, essa pessoa precisa pensar que o mais importante são as ofertas atitudinais. Preservar a natureza em honra a Ártemis, fazer um curso em honra a Atena, praticar música dedicando-a a Apolo, chamar por Hermes no trânsito ou por Asclépio na doença, entre outras coisas, também são forma de exercer sua conexão.

Aprendemos com Salústio que os deuses não precisam de nada, que "O divino em si mesmo não possui necessidades e a adoração é feita para o nosso próprio benefício. A providência dos deuses chega a todo lugar e precisa apenas de alguma congruência para a sua recepção. Toda a congruência é alcançada através de representação e similitude [...]. De todas essas coisas os deuses não ganham nada; o que um deus poderia ganhar? É nós que ganhamos alguma comunhão com eles. Acerca de sacrifícios e outras adorações, porque beneficiamos o homem com elas, e não os deuses." ('Sobre os deuses e o cosmo', trechos 27 e 28) Ou seja, as ofertas comuns e as ofertas votivas - como as estátuas - são para nos lembrar e nos fazer sentir conectados com o sagrado, não são uma necessidade de conquistar um divino que se afete com coisas humanas. 

Assim, quando alguém igualmente diz que precisa estar na natureza para se sentir conectado às deidades, que não acredita em um politeísmo urbano, essa é uma questão bem mais pessoal de 'o que é que te ressoa mais ao coração' do que uma questão doutrinária do helenismo como religião da pólis que se "oponha" ao paganismo do pagus. E, como vimos no início, doutrinas e ideologias não cabem muito no nosso caso em que não somos orientados por textos sagrados. 

Ótimo se você encontrou na natureza uma forma de se sentir mais elevado espiritualmente, mas nada é regra. Há muita idiossincrasia numa prática, o que nos unifica é mais o objetivo, a busca da excelência e de sermos pessoas melhores. E o caminho para isso é parte pelo autoconhecimento ("conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses") e parte pelo equilíbrio da justa medida, o métron (do "nada em excesso"). Nada impede de você se sentir neopagão ou 'neopolita', o que vale é chegarmos ao mesmo lugar através daquilo que nos faz sentir melhor, do que nos deixa bem e com a sensação de dever cumprido. 

Há espaço para tudo e a natureza também não está aquém da intervenção humana. A cidade também a inclui e está inclusa nela. Vamos tentar apenas ser melhores humanos onde quer que nos inserimos.