dezembro 24, 2011

Um êxtase interior

No solstício de inverno do hemisfério norte, quando os dias são mais curtos e há menos luz, dizem que Apolo está na Hiperbórea e Dionísio fica em Delfos. É uma época em que precisamos refletir para aprender como manter a luz divina nos tempos mais escuros -- no mundo, na vida e na alma. 

Mesmo que você não siga o calendário da Hélade e queira sintonizar-se com o hemisfério sul onde mora, ainda assim temos um solstício, uma transição para uma estação onde luz e escuridão estão distribuídas de forma um tanto desigual no período de um dia. Nela, você não precisa regular seu ser interior a passar meio período ao sol das revelações e meio período ao escuro do mistério. Estar acordado é uma forma de consciência e sonhar é outra. Talvez você negue a existência de um outro estado de consciência, talvez você acredite mas coloque um como hierarquicamente superior ao outro, porém, ainda assim te digo que essa separação só está nas nossas cabeças. Nós não existimos separadamente nem do mundo físico nem do espiritual, participamos dos dois, e nossa liberdade/libertação acontece nos dois níveis. Assim como acaba não havendo muita diferença se neste fim de ano você celebra Dionísio ou Apolo.
"As bênçãos de ambos nos ajuda a entender como sermos plenamente nós mesmos, abrindo os olhos à nossa verdadeira natureza e com nossos corações livres de limitações. Desta forma, podemos atingir a 'areté'; podemos encontrar iluminação/esclarecimento." (Jess, da Hellenion, tradução minha)
Ambos os deuses te levam a um estado de consciência que poderíamos entender como o êxtase (o "ekstasis" dos gregos era quando a alma voava para fora do corpo). Só que o êxtase de Apolo é diferente do de Dionísio. Já mencionei aqui no blog sobre o êxtase do tipo dionisíaco (clique AQUI para ler), então agora vou falar do apolíneo.

Não há nada de selvagem ou perturbador no êxtase apolíneo. Este era intensamente particular, relacionado apenas ao individual (quase um "íns-tase" em vez de êxtase, rs). E acontece em tal silêncio, tranquilidade, imobilidade, que a pessoa do lado pode nem percebê-lo ou poderia até confundi-lo com alguma outra coisa. Mas é nessa calmaria que reside uma liberdade completa em um nível totalmente distinto. Nesse outro nível, a inexistência do espaço-e-tempo é simplesmente um fato, e acreditar ou duvidar disso não faz diferença. Esse é um estado em que se consegue entrar seja dormindo ou acordado, seja de olhos fechados ou abertos. É como estar acordado sem o estar e é como estar dormindo sem o estar também, é alguma coisa intermediária, para a qual não se incomodaram de encontrar um nome, porque todos sempre estiveram mais interessados na experiência do que na sua definição. É mais fácil falar o que ele não é do que o que ele é. Dizer que é um transe, um estado cataléptico, uma incubação, uma suspensão da mente, seria apenas atirar no escuro, pois esses são termos que falam mais do corpo físico do que do estado em si. A teoria não acompanhou a prática neste caso.
"Quem olhar para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda." (Carl Jung, psiquiatra)
"Sonhar é acordar-se para dentro." (Mário Quintana, poeta)
Os sacerdotes "iatromantis" (oráculos-curandeiros) de Apolo eram mestres nesse estado de consciência e, por experimentarem esse tipo de liberdade, eram chamados pelo que conhecemos em inglês de "skywalker", um caminhante do céu, termo que aparece igualzinho no oriente, em lugares como o Tibet e a Mongólia. Os antigos relatos gregos dizem que os iatromantis viajavam a longas distâncias para o norte e leste da Grécia, passando por áreas habitadas por tribos iranianas de cultura xamânica, assim como pela Sibéria e Ásia Central. Nessas horas pensamos como no fundo não existe diferença entre ocidente e oriente. Talvez por isso - e não apenas por morar perto do Equador - eu também não veja tanta diferença entre norte e sul. Acho até que na antiguidade se viajava a longas distâncias muito mais do que hoje, quando temos avião mas que já trouxemos todas as facilidades para perto a fim de não precisarmos viajar no mesmo.

Provavelmente você já deve estar visualizando o que você conhece de parecido com esse êxtase apolíneo, essa unidade indivisível que lemos em relatos e vemos em práticas paralelas - como as dos xamãs, as dos iogues, e outras. Isso é mais do que uma simples coincidência. O que era desenvolvido no oriente, era formalizado no ocidente. E o que era formal no oriente, era um mistério no ocidente. O estado intermediário entre se estar sonhando e acordado tinha seus próprios nomes em cada cultura.

Então, neste momento do ano, quer celebrando Dionísio ou Apolo, espero que, no seu êxtase, sua alma encontre o que precisa -- que pode não ser o que ela procurava, mas que vai ser mais curativo e pleno ainda se você deixar que os deuses te conduzam nesse voo (agora estranhamente sem acento), o qual é muito menos solo do que você imagina.

dezembro 09, 2011

o incômodo temporário e a busca permanente

Acredito que o conhecer-se a si mesmo inclui um processo de cura, um tratamento. O problema é como as pessoas entendem a cura. Para a maioria, o sentido é paliativo: se eu não sinto mais dor, estou curado; se estou confortável e me sinto protegido, é porque estou bem. Anestesiar-se da dor não resolve o problema que a causa. Apenas nos faz ficar pulando da tristeza à melancolia, da revolta ao desânimo. E o curioso é que normalmente aquilo do qual queremos nos livrar é o que vai nos curar, se aguentarmos o incômodo que ele traz em vez de nos entregarmos à depressão.

Se você chegou a um momento desses, quando não sabemos mais o que fazer, passe a pensar que você tem sorte! É chegando nas encruzilhadas que podemos perceber que todos os caminhos que tomarmos levam pro mesmo canto. Para algo que está lá fora. O que muda de verdade é o que você descobre dentro de si (e que provavelmente andou procurando no lugar errado). Quem não tem sorte, só chega numa encruzilhada dessas quando está perto da morte. Então, quem quiser crescer e se conhecer, vai precisar vislumbrar a morte antes do dia de morrer de fato. Vai ter que descobrir como fazer para se esgueirar por trás das cortinas e desaparecer misteriosamente do palco. É lá nos bastidores que tiramos a máscara e nos olhamos no espelho.

Na nossa cultura, se ensina o oposto: a aparecer. Todo mundo quer estar sendo olhado pelos outros, sem tempo para olhar para si, porque sente a necessidade de atrair a atenção e atender aos apelos do externo. Aí fica sentindo falta de algo e começa a procurar terapias orientais. Nada contra, mas não precisa ir tão longe. Nós somos do ocidente. Quando mais formos pro outro lado, mais estaremos nos separando e nos sentindo meio fora d'água. Viramos andarilhos sem pátria - o que às vezes acaba acrescentando mais um problema (o da falta de pertencimento) à nossa já difícil arte de se encontrar.

O espiritual é renegado às margens do social, é identificado com a Índia e o Tibet e a se isolar numa montanha e companhia, quando na verdade a raiz da civilização ocidental já é extremamente espiritual! Não havia separação. Tanto que não existia um equivalente grego para a palavra "religião". Vernant dizia que a religião grega era mais "uma prática, uma maneira de comportamento e uma atitude interna, do que um sistema de crenças e dogmas" (Myth and Society in Ancient Greece, 1980). Também por isso, não se fazia parte de uma "igreja", mas de um 'dēmos'; nem existia um "padre" para agir como intermediário, e sim um "sacerdote" ('hiereus', o que lida com os 'hiera' - os objetos sagrados guardados no templo).

Buscar remédios anestésicos/analgésicos (práticas alternativas de fim-de-semana) não vai resolver a causa da dor. Você toma um remédio, se sente bem melhor, mas um dia o efeito passa e você vai precisar tomá-lo de novo. O analgésico alivia a dor, não livra da dor. E a causa da dor está nessa separação. Está nesse colocar cada cubículo num quadrado fechado e distante um do outro, deixando a religião para aquele culto semanal em vez de incluí-la no seu dia-a-dia.

É como falarmos de economia (οἶκος + νόμος). Você consegue viver sem produzir, distribuir, consumir, seguir costumes, gerir um lar, administrar bens e serviços? Independente de você ser capitalista, socialista, comunista, libertário etc; tudo isso faz parte da sua vida, como o sagrado deveria fazer.

Ou, para ser mais grego, é como falarmos de política (πολιτεία, da pólis), da cidade onde moramos o tempo todo. Só que política hoje ganhou um sentido tão pejorativo e centralizado que as pessoas não conseguem se visualizar como seres políticos. E, mesmo com crise econômica por aí, penso que posso usar a economia como exemplo de algo com o qual não deixamos de nos envolver, direta ou indiretamente.

Nesse sentido, precisamos deixar de ser só estudiosos dos antigos, e tornarmo-nos mais semelhantes aos bons helenos, aos que verdadeiramente procuravam seguir a máxima do "conhece-te a ti mesmo", custasse a dor que custasse. Porque é por aí que a frase vai se completar: "e conhecerás o universo e os deuses". Quando a gente sabe explicar as coisas, elas deixam de nos incomodar. Começamos a entender a razão de elas serem assim. Sentimo-nos em comunhão com o mundo e com o divino. E aí não vai ter como essa dor voltar... Só se for para ela própria nos curar.

outubro 30, 2011

Hera 'wins' - e um mundo de Zeus

Tendo umas coisas para falar sobre Hera e outras sobre Zeus, resolvi fazer uma "hierogamia" colocando ambos textos em uma postagem só. Vamos começar pelas damas:

HERA

No mundo moderno, as representações de Hera normalmente são de algo no estilo Endora de 'A Feiticeira', madastra-má de conto de fadas, os olhos malvados no céu do seriado de Hércules etc. Para essas pessoas que a imaginam assim, Hera seria uma espécie de megera vingativa que vive enfernizando as/os amantes do marido. Olha, para mim isso é um grande equívoco; não um mero "mistake", mas um "BIG FAIL" mesmo. E não é só pelo fato de Hera ter tanto mais trocentos atributos além de rainha e de deusa dos compromissos (sim, porque não é só do casamento, até as sociedades entrariam aí).



Quando compreendi Hera e depois acompanhei a novela 'Caminho das Índias', identifiquei prontamente algumas características da personagem da atriz Christiane Torloni (Melissa Cadore) com ela - ao menos nessa questão de administrar a relação familiar. Por quê? Porque, mesmo descobrindo que o marido tem uma amante, não é a ele que ela ataca (afinal, ela não quer permitir que uma qualquer prejudique seu casamento), mas sim à talzinha atrevida que se intrometeu no caminho interferindo sua paz. Ao mesmo tempo, ela deixa o marido saber que ela sabe de tudo e que é superior, faz com que ele perceba que não vale a pena perdê-la por outra que nunca será tão admirável quanto ela. Na novela, isso acontece no fato de ela dar uma surra na amante do marido (que inventa que apanhou porque reagiu a um assalto), pega a jóia que ele tinha dado para a amante e usa-a diante dele, que fica atônito ao reconhecer o presente da outra sendo exibido pela esposa. Sagaz. Mostrou quem manda. À maneira da natureza, que faz o macho que vence a luta corporal ganhar a fêmea, na inversão dos gêneros a amante não deu nem pro cheiro, e o macho em questão ficou com a fêmea vencedora. Não é preciso se rebaixar a uma vingança mesquinha. Basta demonstrar sua magnanimidade régia para punir a insolência da "mortal" que teve a petulante hybris de se achar boa o bastante para ser a consorte do rei/deus do pedaço. Agora sim, "BIG WIN".



Sou fã de Hera. E nem precisa ser "dia de rock, baby!".



ZEUS

Um dia desses, tive um sonho com um deus nórdico loiro de cabelos lisos compridos e nome complicado. Estávamos eu e meus amigos em um ônibus (que nos meus sonhos costuma ser a representação da parte social da minha vida), quando ele apareceu. Eu lhe perguntei o nome e a que deus se reportava, e ele respondeu 'Zeus'. Então perguntei-lhe como um deus nórdico seguia a Zeus, grego; e ele dizia que agora todos os panteões eram regidos por Zeus.

Antes que comecem a pensar que foi uma puxação de sardinha pro nosso lado, deixa eu explicar o que eu realmente interpretei disso aí, simbolicamente falando. Zeus, para mim (e o sonho era meu), estaria ali representando a ordem, com uma administração que - ao mesmo tempo centralizada - é baseada no conceito de uma imensa família que se conhece e se entende e permanece junta apesar dos pesares. Isso é uma coisa que o mundo andava e ainda anda precisando e que - aos trancos e barrancos - me parece que vem acontecendo. As distâncias se encurtaram, as pessoas se aproximaram mesmo que virtualmente, sujeitos e grupos com filosofias parecidas se uniram, forças de trabalho foram recrutadas mais facilmente em meio a redes onde uma ilibada vida pessoal 'online' pode refletir numa oportunidade profissional, e tudo isso independente da crença ou do panteão. Há uma ordem que é universal, para a qual todos caminham ou inconscientemente buscam caminhar. Aquele equilíbrio que a maioria procura, mesmo quando por vias de desagregação para remontagem de si.

Esse tipo de condução funciona para muitas coisas. E acredito que funciona para a minha vida e para o caso do nosso grupo de crenças. Mas, claro, só posso falar por esse lado, afinal era um sonho meu no mundo que eu conheço, e por isso outros terão todo o direito de pensar diferente e de funcionar de outra forma. O meu jeito é o de Zeus e o de Atena. E, pelo princípio da xenia (hospitalidade, amizade convidativa), receberei bem qualquer nórdico ou outro visitante (independente de ser lindo e louro) que quiser se apresentar.

outubro 13, 2011

Aprender e Compartilhar

Outro dia dei uma olhada na novela que está acabando, das sete. O que era padre e deu um tempo na batina para tentar namorar ficou amargurado e a sua amada preferiu vê-lo feliz e livre do que com ela. Eu me identifiquei com a conversa que eles tiveram, sobre ele sentir falta das preces, do silêncio, da penumbra da igreja, e até da solidão, e sobre ela sentir que a missão dele era algo maior que as coisas do mundo, que ele não foi feito para amar uma só pessoa, mas toda a humanidade. É difícil explicar isso pros outros, a maioria não acredita que fico mais feliz sem dividir minha devoção com um ser humano e deixar de ter tempo para todos os outros que precisam. Mas é assim mesmo. Os estóicos acreditavam que os professores não deveriam se casar (e não era questão de ser celibatário, mas de 'casar' mesmo), porque as obrigações domésticas tomariam muito do tempo deles. (Hoje a gente tem outras alternativas, as coisas estão mais automatizadas e acaba sendo uma questão de organização e prioridades.) De qualquer forma, quando você abre de verdade seu coração para essa totalidade, quando deixa de se sentir separado do resto, ao mesmo tempo em que você deixa de ter necessidade de estar sempre junto, você deixa de se sentir sozinho.

Já vi muitos casos de peregrinos que chegaram em centros religiosos (seja na Índia, em Compostela, numa tribo afastada etc) procurando se sentir unida àquelas pessoas porque "não há um grupo na minha cidade e eu queria ver como se faz", e o seu orientador (seja guru, seja sacerdote, xamã etc) dizer algo do tipo "se você praticar de coração, seja onde estiver, você estará praticando com todos nós". Portanto, não se sinta vazio porque está inseguro de não ter alguém olhando para ver se você fez certo. Não se sinta menor porque fez as coisas sem uma sequência ou porque seu rito foi muito rápido. Não pense que os deuses não compareceram, se aborreceram com a simplicidade da sua oferta e preferiram ir pro rito de outro 'banbanbam' qualquer do helenismo. Se Eles só pudessem estar em um lugar e momento por vez, não seriam lá muito dignos desse título de 'deuses', não?

A gente sempre vai encontrar dificuldades e dúvidas quando busca fazer as coisas de forma genuína. Quando elas surgirem, não transforme-as em pedras que atravancam seu caminho como se fossem desculpas para não tentar de novo. Não seja orgulhoso demais em admitir as próprias falhas, mas procure entender quais foram, escute-as como se estivesse ouvindo algo de um professor de verdade (porque no fundo está). Não existe um tempo fixo para dizer "daqui a dois anos eu vou entender completamente disso". Em qualquer momento a gente pode fazer besteira. A questão é aceitar e acreditar que aquilo pode ser um presente para nos transformar e nos fazer acordar para algumas coisas que antes não enxergávamos. Não fique confuso com as curvas sinuosas do caminho, pense nelas como um tempo extra que você ganhou para estar na estrada com Eles - afinal, curvas são mais emocionantes e duradouras do que as retas monótonas e previsíveis. Ter fé, aqui, é ter força para continuar por essa estrada.

Agora entra um 'ponto-porém' aqui. Embora você possa fazer algo você-Eles e embora não precise estar fisicamente onde outros estão, ainda é necessário existir alguém/algo que te oriente, o que implica em uma aceitação paciente e amável do que quer que se apresente. Se a gente aprende a prestar atenção (perscrutar) e agradecer por cada coisa, cada presente inesperado, cada folhinha esvoaçante, cada ideia inspiradora, certamente não deveríamos negligenciar a orientação voluntária de um professor instruído, criterioso, informado. Cada coisa ou pessoa que vem à sua frente deveria ser tomada com um amor e devoção sinceros. Nossos 'mentores' são ligações importantes, são laços personificados com os caminhos divinos que vão se desdobrando em nossa direção, se revelando além das névoas do desconhecido. Não dá para achar sua cadeira no teatro desse espetáculo sem um lanterninha pra te guiar, e nem dá para encontrar um bom lanterninha se você não demonstrar a intenção de vislumbrar - admirado - o espetáculo.

Convém lembrar também que o lanterninha, o professor, o orientador, é um ser humano. Ele espera uma conexão. Você saberia responder o que ele acha mais importante no momento? Você pensa sobre as coisas que ele lhe apresenta? Você é honesto ao contar-lhes suas experiências e reflexões? Você se coloca no lugar dele e pensa também no que ele faria no seu lugar? Você agradece a ele? Você demonstra o que ele significa para você? O que você oferece em troca? Qual a sua contribuição nesse 'banquete'? Concentração, empatia e gratidão podem fortalecer e tornar as relações mais leves, mais alegres... Pra que esperar uma crise para precisar sentir a falta e tentar correr atrás de recuperar o perdido? Aproveite o tempo que você tem com os que se dispõem a caminhar com você. E pise com gentileza pela trilha. Valorize suas conexões. Todos podemos aprender uns com os outros -- ou, como pregaria Platão, ajudar a nos lembrarmos do que sempre soubemos.

Pensando nisso, o RHB está formando orientadores. No próximo ano civil eu espero que já os tenhamos mais disponíveis. A princípio eles já podem responder suas dúvidas e atuar como oráculos. Mas nossa intenção é ir além e ajudar cada vez mais, com organização e disciplina. Já ouvi falar que algumas pessoas se identificam mais com este ou com aquele outro, e acredito que essa afinidade ajuda na motivação. Assim, sugiro que vocês já vão conhecendo nossos queridos voluntários e criando seus laços com eles. Até porque eles irão formar outros. Ainda sonho com uma rede que não é corrente, com uma rede flexível e firme o bastante para não deixar ninguém se machucar ao dar um passo em falso no trapézio. É essa rede que eu espero formar para o nosso grupo. Uma rede com laços mas sem nós, mais resistente que metal de elo de corrente que machuca, e mais macia também.

Parece que comecei falando de uma coisa e fui puxando outra e acabei formando um texto-tricô, rsrs. Mas acho que no fim das contas o sentido dessa malha foi capturado e vai te ajudar a enfrentar o frio. Ao menos conto com isso. Porque a gente não é e nem está sozinho. 

;))

setembro 07, 2011

Hefesto e os caranguejos

Quando a gente fala de caranguejo pensando na mitologia grega, a maioria pensa direto no Karkinos que ajudou a Hidra na batalha contra Héracles em Lerna e que Hera transformou na constelação de Câncer (veja aqui). Mas há outra história com caranguejos (li neste livro), que me deixou feliz quando soube, pois quase todo fim de semana eu costumo saboreá-los.

O caranguejo está associado a Hefesto. Hesíquio dizia que os caranguejos eram filhos de Hefesto e de Cabiro (filha de Proteu, rei das focas). Vejam que tanto as focas (cultuadas em Rodes em relação com os Telquines) quanto os caranguejos (cultuados em Lemnos como os deuses Cabiros) têm um caminhar meio desajeitado como o do deus coxo, e o caranguejo - além de membros estranhos - têm uma ligação com a metalurgia por conta de seus tenazes (pinças, alicates). Tanto que karkínos também significa a tenaz do ferreiro, em grego.

Uma antologia palatina descreve o caranguejo como um "monstro de pernas retorcidas, de duas pinças, que se enfia sobre a areia, caminha recuando". Ou seja, ele anda enviesado. Aristóteles dizia que os animais se deslocam na diagonal, sendo o caranguejo o único que caminha de lado. Um provérbio grego diz "jamais farás um caranguejo andar reto". Suas patas são tortas e na frente da carapaça há duas pinças (que também não são iguais uma da outra). Ainda Aristóteles o descreve: "as pinças do caranguejo não servem para andar, mas para aprender a segurar, como fariam as mãos, e é por isso que as pinças se dobram no sentido contrário ao das patas; estas se dobram para dentro, as pinças se dobram para fora". Assim, ele possui duas orientações.

A aparência física de Hefesto é descrita por três epítetos principais, que se relacionam à forma curva, o caráter mutilado e a dupla orientação em sentidos opostos. Hefesto Kyllopodion, o deus dos pés curvos, de membros tortos - sendo "kyllos" (visto em Aristófanes) uma designação tanto do coxo quanto de uma mão recurvada e pontiaguda, como uma pinça. Recurvar os dedos, torcendo-os para dentro, é "fazer uma mão de caranguejo" (karkinoún toús daktýlous), segundo Antífanes. Hefesto Kholós é o deus deformado, mutilado, estropiado. Antígono e Apolodoro falavam que Hefesto é mutilado nas duas pernas - isto é, não é coxo, já que se trata de ambos os membros mutilados. E o epíteto homérico de Hefesto Amphigyéeis lembra esse curvo nas duas pernas, o de direção dupla e divergente, com alguns vasos representando-o com um pé esquerdo para a frente e um pé direito torcido para trás.

Em certas sociedades australianas, germânicas, mongólicas e até entre as guerreiras Amazonas, parece ter existido a crença de uma relação entre a doença/mutilação e os ofícios de mágico/ferreiro. Por um lado essa mutilação servia como a 'desculpa' para eles ficarem forjando as armas em vez de irem para a guerra, mas, por outro, significa que somente um ser dotado de uma direção dupla é capaz de dominar coisas móveis, fluidas e polimorfas - como o fogo, o mineral e os ventos com que trabalha o ferreiro. E, fechando os quatro elementos, caranguejos e focas são seres marinhos, parte imersos em água.

Agora sempre que alguém fala em caranguejo me vem um sorriso nos lábios à lembrança de Hefesto, de sua capacidade de nos inspirar, de sua habilidade, de sua fluidez, e do quanto ele nos é querido quando nos permitimos conhecê-lo melhor. Assim, a exemplo de algumas crenças indígenas, espero adquirir as boas características dos seres dos quais me alimento e poder honrar Hefesto com toda essa tenacidade típica dele.


agosto 21, 2011

Mais sobre o patronato e afins

Após ler algumas postagens de blogs estrangeiros, resolvi trazer este assunto para cá. A questão dos patronos gera alguns problemas entre os helênicos:
# Alguns tomam o patronato longe demais e fazem dos deuses praticamente um camarada, companheiro de bebedeira, parceiro de truco (rs) etc, ou mesmo acham que possuem um destino cósmico extremamente grandioso por se acharem muito intimimamente ligados à deidade;
# Outros acham que precisam ter um patrono, como se não ter descoberto o seu fosse um sinal de desamparo ou deficiência ou indignidade por não ter recebido um 'toque' da deidade;
# Muitos confundem um interesse em uma deidade ou em algo que a deidade rege como se fosse um sinal de patronato (tipo: "eu gosto de amarelo e de poesia e de música, então devo ser de Apolo" - como se fosse simples assim);
# Há também os que se identificam tanto com uma deidade que se fecham para todos os outros deuses, e ficam até de briguinha com o suposto rival (por exemplo: apolíneos versus dionisíacos, seguidores de Atena versus de Poseidon, os de Hefesto e os de Ares etc), o que contradiz o politeísmo e transforma antigos mitos em posturas preconceituosas/prejudiciais e superficiais;
# Também são muitos os que escolhem e declaram seus próprios patronos porque acham que isso vai acrescentar algo 'legal/maneiro' à sua espiritualidade e lhe dar pontos de status na comunidade (e não sabem no que estão se metendo ao fazê-lo); e
# Outro engano comum é incluir um quê místico-cristão nas mensagens dos deuses, sentindo-se 'chamado' (como uma 'vocação' clerical), entendendo cada coincidência como um grande 'sinal' e todo sonho como uma 'visita' (sem distinguir os dois portões dos sonhos), quase em uma superstição exagerada (deisidaimonia).

Então vamos tentar esclarecer melhor essa relação, para tentar diminuir esses eventos:
Primeiro, são os patronos que começam esse relacionamento, não nós. Às vezes a gente nem se toca, mas eles são persistentes.
Segundo, nem todo mundo tem um patrono (já que isso envolve um interesse de ambas as partes), o que também não significa que ter um patrono seja alguma pretensão de achar que temos intimidade com um deus, afinal Eles se importam sim com a gente.
Terceiro, relacionamentos mudam, evoluem, terminam... E se isso já incomoda nas nossas relações humanas, fica ainda mais incômodo quando é a gente com Eles, porque Eles fazem mais falta quando os sentimos distantes, quando não nos pedem coisas para fazer com a mesma frequencia que antes, quando nos deixam confusos pensando se fizemos alguma coisa errada e não temos certeza do quê.

Com relação a essa transformação:

Quando isso acontece, a solução é 'perscrutar', procurar por algo que nos acenda um chama na memória/percepção, perguntar aos oráculos, refletir, meditar... Pode ser que sua relação com aquela deidade tivesse mesmo que ser temporária, ou que você mudou tanto que não 'combina' mais com Ele/a (muito semelhante ao que acontece quando mudamos de 'turma' devido à mudança de interesses), e aí o negócio é mesmo seguir em frente, "partir pra outra". No entanto, é importante manter sua prática devocional com aquele/a deus/a, na verdade até aumentá-la para não confirmar a possibilidade de que você perdeu a conexão por conta da sua própria negligência. Isso demonstrará interesse contínuo no deus/a, mesmo que você já não tenha tanta resposta direta. O mais importante é tentar não se angustiar e procurar ficar de coração aberto para ouvir o que Eles têm a dizer. Eu sei que muitas vezes é difícil distinguir o que vem deles no meio das nossas discussões internas, mas com o tempo a gente vai se educando. Tem coisas que são claras e a gente simplesmente bate o pé e teima em achar que não são.

Uma das situações que podem mudar é assimilarmos outro aspecto da mesma deidade e ficar querendo permanecer no anterior bem conhecido, com 'saudade' de um passado que já cumpriu sua função. E o que era fácil antes se transforma em um grande esforço e desafio quando insistimos em não deixar ir. Por exemplo, pode ser que na adolescência você adorasse suas aulas de teatro, seus acampamentos escoteiros no mato, sua roda de violão em volta da fogueira, os beijos ninfolépticos roubados de mênades carnívoras vestidas de oncinha; e hoje você tem a liberdade de ir aonde quer, aprecia vários tipos de vinho e têm crises de ansiedade e desespero seguidas de maravilhamentos arrebatadores e devotos. Aí você pensa que era mais legal a parte rural e teatral e bacante de Dionísio, que você nunca mais conseguiu ter, e se esquece que ele também é delírio divino, um deus libertador, embriagador e catártico. Ele quebra padrões, te lança para fora do corpo (ek-tasis). E justamente por Ele te amar é que Ele não vai querer te deixar preso/a naquela confortável orgia da juventude sem te sacudir e empurrar para a frente, para vencer desafios, sair correndo loucamente e crescer com isso. Se o teatro são máscaras, você precisaria conhecer as outras faces dEle, um que nem todo mundo vê e que te fará sentir-se mais perto de um ser completo/a. É algo que ao mesmo tempo em que te coloca no teu humilde lugar, te concede presentes incríveis.

Há deidades com as quais podemos inclusive experimentar extremos altos e baixos, nos deixando sem noção de quando começou, onde estamos e aonde vai parar. São como períodos em que se manifestam muito fortemente em nossas vidas, seguidos de outros em que quase não temos notícias dElas. Mas tudo bem, pois - enquanto isso - outras relações foram se desenvolvendo e se fortificando. Faz parte de ser politeísta. Enquanto nossas relações tomam seus rumos, vamos aos poucos descobrindo que seguiram seu curso natural, que não adianta tentar forçar coisas ou ignorar outras, pois os deuses vêem melhor e mais longe do que conseguimos ver.

Outras deidades possuem um relacionamento bem simples e aparentemente imutável conosco. Pode ser, por exemplo, que o único momento em que você se sente confortável com Apolo seja na hora de consultar oráculos, que você não saiba lidar bem com seu lado arqueiro-destruidor ou outro aspecto, e que isso não seja um 'ainda', mas algo que você já percebeu como aparentemente constante.

Há infinitas possibilidades de mudanças nesse tipo de relacionamento. Incluso alternância de deidades aparentemente opostas. Ter uma deidade de patrono não te impede de experimentar o suposto outro-lado-da-balança. Se Dioniso e Apolo se alternam em Delfos, se a cidade tem lugar para teatro e oráculo, por que nossa alma também não teria momentos de caos e de ordem?

Eu posso, por exemplo, ter contato com várias facetas de Dionísio, mesmo sendo expressivamente um ser racional de Atena, e lidar com apenas uns dois ou três aspectos de Apolo, servindo-lhe como oráculo, procurando-o em questões de saúde, e honrando-o no equilíbrio da beleza e da arte. Por mais que a afinidade de Atena pareça ser mais com o filosófico de Apolo, o lado meditativo transgressor do dionisíaco me é mais próximo do que a sobriedade apolínea. E não vejo nem sinto uma contradição nisso.

Hermes é um dos deuses que mais me confundem, o que pode ser típico de um trickster brincalhão. Ele consegue se mostrar uma hora como o deus dos terapeutas, portador do caduceu, mostrando os caminhos dos mistérios, conduzindo as almas, removendo obstáculos, dando rapidez aos processos... para, em outra hora, brincar com sua sorte, baixar sua reserva de ferro (Mercúrio), fazer coisas desaparecerem e te aturdir com palavras intrincadas no meio da comunicação. Ele não era muito de me exigir rituais, altares, preces, ele queria que eu lembrasse dele no trânsito, na rua, na minha aprendizagem de idiomas, na tecnologia, e que eu reorganizasse minhas crenças de forma a incluir o culto aos ancestrais que ele conduziu ao além quando me deixaram. Ele quase que serve como um laço meu com os outros, se mostrando pouco como Ele mesmo - às vezes porque ele passa tão rápido com suas asinhas que eu mal o percebo em meio à multidão, como aconteceu em um sonho no qual o vi passar de clâmide vermelha entre o povo.

Isso me lembra que nem toda deidade precisa de um altar dentro de casa. Alguns querem mesmo é te encontrar ali no mar, na árvore, no concreto da cidade. O importante é perceber onde você sente mais fortemente a presença de cada um.

Há deuses que preferem uma prece todos os dias antes de dormir do que um festival anual com procissão e bolo de mel com cevada aspergida no vinho misturado. E há outros deuses que sentem-se mais reconhecidos através de uma aproximação formal com data marcada do que um descuidado em chegar-se nele sem o apuro devido a alguém de tanta importância. É como certos membros da nossa família: mesmo que você os conheça desde pequeno/a, tem aquele com quem você mantém uma relação de respeito e aquele que te exige um tratamento brincalhão até quando você está a fim de falar a sério.

Aproximar-se de Poseidon ao limpar a praia, de Apolo ao purificar um miasma, de Asclépio ao cuidar de um doente, são coisas que fazem parte da rotina de um verdadeiro politeísta, sem ficar se perguntando se há um patronato envolvido nessa afinidade ou não, se a comunhão com o sagrado é por conta de uma escolha que um/a deus/a de você ser dele/a. Você pode ter algo profundo com uma deidade sem necessariamente ser algo permanente. Seja por que você mudou ou por que a vida teve um curso diferente ou por que aquilo só era necessário para uma determinada tarefa/missão.

Claro que também acontece existir um relacionamento com um/a deus/a que não só seja duradouro e permanente agora, como possa ter vindo de outra vida e se estender por outras mais que virão.

Existem inclusives deuses que se aproximam pelo simples fato de Eles próprios terem afinidade com a outra deidade com a qual você está criando um relacionamento. Nesse caso, seria comum perceber a presença conjunta de Deméter e Perséfone, de Eros e Psiquê, de Zeus e Hera, de Hermes e Hécate etc. Mas isso também depende do tipo de aproximação, talvez você se aproxime de Ártemis por conta de ela também ser arqueira como Apolo, mas não a sinta presente quando se achegar a Apolo por conta do seu lado oracular.

Os deuses podem se interessar por você por algo que vocês têm em comum - como Ares gostar de um lutador de artes marciais - ou justamente por algo que vocês não têm em comum - como Dioniso ficar a fim de chacoalhar as bases de alguém que ele achou muito rígido e preso a convenções.

De todas as coisas que pudemos pensar, percebemos que não só uma pessoa pode ter dinâmicas diferentes com deuses diferentes como essa dinâmica pode mudar com o tempo. É preciso ver se (e o que) está funcionando para ambas as partes.

Sentir-se fora de sincronia pode ser um sinal de mudança, e é preciso estar aberto a isso, sem impor suas vontades e julgamentos - e muito menos as vontades e julgamentos de outras pessoas. Vale a pena passar por essa rica experiência e aproximar-se a cada dia mais do "conhece-te a ti mesmo" através do que os deuses nos mostram e demonstram.

A nossa preocupação não deve ser com a dúvida que isso gera, e sim em nos manter íntegros e constantes em nossas práticas e na nossa dedicação a Eles. Como diz a sabedoria popular: "as ervas daninhas crescem pelo caminho onde ninguém passa"...


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Fontes:

agosto 07, 2011

Se a montanha não vem, vá até ela

Às vezes me perguntam onde eu encontro os objetos helênicos que tenho, ou como eu consegui 'adivinhar' (colocar em palavras) o que as pessoas andavam precisando ler/ouvir. Mesmo que sejamos instrumentos dos deuses, a gente tem que saber se colocar como tal. Precisamos mudar de cenário.

E, em se tratando de adivinhação, um dos métodos mais antigos é o de perscrutar, descobrir por observação, pela concentração, pela fixação do olhar em algo, como um cristal, uma chama, um espelho, uma pedra, qualquer coisa, libertando a consciência e acessando o mundo de lá. Em inglês o termo é "scrying", um ver claro, um escaneamento através de alguma coisa.

Então, tudo o que a gente realmente precisa é dos cinco sentidos funcionando. Ver, ouvir, cheirar, provar, tocar, são coisas que podemos fazer em qualquer lugar, sem precisar de acessórios como bola de cristal ou baralhos. Einstein dizia que não podemos solucionar os problemas se usarmos o mesmo tipo de pensamento que usamos ao criá-los. Não há como obtermos respostas sem 'trocarmos de estação'.

Por isso é que, se você quer resolver suas dúvidas e encontrar suas ferramentas, você precisa mudar de enquadramento e referência. Ontem eu estava procurando na internet um conjunto de símbolos que eu pudesse usar comigo, e nada me chamou a atenção. Então eu deixei pra lá e fui passear no shopping. Comprei uns DVDs e fui olhar uns anéis, porque o meu preferido (que sumiu por um ano e reapareceu) já sumiu novamente. E eis que, no meio dos anéis, encontro um pingente com motivos gregos e vários símbolos que significam diversas coisas para mim.

Os deuses estão em toda a parte. Se você quer ver coisas diferentes, vá dar uma caminhada. Mude seu pensamento de canal. A maioria das minhas estatuetas eu encontrei em feiras de artesanato quando fui comprar bijuteria ou lojas de decoração quando fui comprar uma vela colorida ou lojas de produtos light quando fui comprar cevada e incenso. Você esbarra com a imagem mais perfeita e não tem como não levar.

Eles - e os daimones que Os acompanham - estão ali, para serem vistos, ouvidos, cheirados, sentidos, acariciados, abraçados... ao vivo e há milênios. Estão enviando mensagens numa borboleta que cruza o seu caminho, em um peixinho que tremeluz aos raios de sol no laguinho da praça, em um galho retorcido de árvore que forma a figura de um sátiro, no padrão geométrico da calçada que lembra um motivo cretense. As respostas estão também nesses lugares. É só saber voltar o nosso olhar para onde iremos descobri-las.

Acredito que, mesmo quem mora em uma metrópole ainda tem como passar por árvores e corpos d'água e outros lugares onde podemos perscrutar. No começo, caminhe com vivacidade, deixando seu coração acelerar, respirando fundo e fazendo o oxigênio fluir ao cérebro. Mantenha-se atento/a, procure por formas aleatórias que possam fazer sentido. Se encontrar, pare e medite. Não ligue se vão lhe olhar e pensar no que você está fazendo parado ali. Quando voltar para casa, aproveite a caminhada para pensar no que viu, conclua sua 'adivinhação'/consulta, e renove sua confiança no conhecimento que lhe foi concedido.

Por vezes ajuda se você pensar em 'naipes' ou 'elementos', como no tarô. Por exemplo, se você está querendo uma resposta sobre coisas intelectuais (como seus estudos), que é um lado mais de 'espadas', do 'ar', você pode procurar as respostas nas formas das nuvens ou na fumaça do incenso. Se quer saber do financeiro, da 'terra', observe árvores, pedras, marcas no solo. Se a questão é sentimental, "leia" o movimento da água. Mas não fique preso/a ao elemento, a resposta pode vir de outro, talvez porque você precise resolver esse outro aspecto para chegar ao que você imagina ser o que está confuso. Normalmente a imagem salta na sua frente e o reconhecimento é imediato.

Se possível, tire uma foto ou faça um desenho do que viu. Guarde-o em seu diário. É legal olhar para trás e ver como os deuses vão nos orientando tão sabiamente. Muitas das coisas que vemos só vão revelar seu completo sentido mais tarde.

Pense na resposta como uma gentileza dos daimones e deidades daquela área específica. E retribua a gentileza deixando uma oferta em agradecimento para a ninfa da referida árvore, ainda que seja uma prece de coração ou a promessa de levar algo depois (lembre-se de cumpri-la). Os espíritos e deuses ficarão mais propensos a repetir o auxílio em lembrança à amizade que vocês desenvolveram e cultivaram.

Com o tempo, também você vai ficando mais 'desperto'. Confesso que vejo coisas novas até nos imutáveis padrões marmorizados dos azulejos do meu banheiro. A gente passa a reparar nos desvios de um gramado, nas rachaduras do granito, no canto trinado de um pássaro, no aroma repentino de um barro de cerâmica, na sensação de areia roçando nossos pés que estão bem longe da praia. Sim, porque não precisamos apenas ver coisas, podemos receber respostas através de todos os outros sentidos. Incluindo do sexto. E dos sonhos, que também é outra mudança de realidade(s).

Mantenha igualmente o bom senso. Cada vez vai ficando mais fácil saber se algo era mesmo um 'sinal' ou pura imaginação da sua cabeça. Mas não se torture demais em dúvidas - em último caso, lembre que também foram os deuses quem lhe infundiram imaginação em sua essência. Se o seu modo de ser inclui uma mente imaginativa, use isso da melhor forma que puder. No mais, confie no que recebeu e espere ter a compreensão correta de tal revelação. Como tudo na vida, a comunicação com Eles também se desenvolve através da prática e de muito treino. O que não pode é parar de se abrir e desistir antes de tentar.

agosto 06, 2011

Convite do grupo Thyrsos - Lua Cheia 13/08

Lua Cheia de Agosto

"Como em agosto do ano anterior, nós lembramos novamente cada Irmão e Irmã dos Antigos Caminhos a honrar a Estátua do Céu Noturno, Selene. Na noite de sábado, dia 13, reúnam-se em grupos ou com seus amados ou mesmo sozinhos, e realizem seus Ritos e Desejos com um coração admirável, direcionando suas mentes junto para as ofertas da Rainha Dourada.
Que todos nós, o povo das Tradições Nacionais e dos Antigos Caminhos, tenhamos a chance de nos unirmos em Espírito na noite mais brilhante do solstício.

Thyrsos - Ethnikoi Hellenes
"


(tradução minha)

agosto 03, 2011

Os 300 (250) de Guaxenduba

LinkNa manhã do dia 19 de novembro de 1614 (1+6+1+4=12), a Batalha de Guaxenduba efetivou a colonização portuguesa no Maranhão. A batalha se deu em um local estratégico próximo da Ilha, onde os portugueses poderiam se instalar para combater os franceses. As tropas acamparam numa praia de Icatu, na foz do rio Periá. De um lado, 400 franceses e 2.000 índios tupinambás; de outro, 170 portugueses e 80 índios tapuias. Apesar da minoridade numérica de quase um décimo de homens, os portugueses acometeram as linhas gaulesas, que debandaram. Morreram o comandante francês e 100 soldados (abatidos na luta ou afogados na fuga ou devorados por tubarões), enquanto que do lado português foram apenas 10 mortos e 30 feridos. Diz-se que o milagroso triunfo deveu-se ao auxílio da Nossa Senhora da Vitória, que teria transformado areia em pólvora e animado os combatentes durante toda a batalha. O poeta Humberto de Campos imortalizou a história em seu soneto 'O Milagre de Guaxenduba'.

Em agosto de 480 AEC (4+8+0=12), lá na antiga Hélade, também houve uma batalha perto do mar (nas Termópilas), cujo maior exército (milhões) foi vencido pelo de muito menor número (300 espartanos e mais uns 1.200 gregos), 'animado' pela Vitória (Nikê), façanha contada por um escritor (Heródoto de Helicarnasso).

Cof.

"Guardadas as devidas proporções", não parece que o mundo vem sendo sempre uma reprodução de histórias e mitos gregos? rsrs

julho 11, 2011

De Olhos Bem Abertos

Antes de entrar no assunto da postagem propriamente dito, preciso conduzir vocês a algumas lembranças dionisíacas... Eis:

No começo parece um descanso, uma libertação (alguns dos epítetos de libertador dEle são Lísios, Liaios, Catársios). Seu corpo parece simplesmente um receptor de sensações. Sua alma está desprendida, alerta e sem senso de tempo, vivendo a eternidade em uma noite, vendo o infinito em coisas minuscularmente limitadas. Você se sente em êxtase. Para os gregos, "ekstasis" era quando a alma voava para fora do corpo. Para quem nunca experimentou esse tipo de êxtase, ele parece o máximo, legal, divertido, algo que a gente deveria tentar sempre que possível. Mas deixa eu te dizer: o êxtase dionisíaco não é uma coisa divertida. Sua alma é retalhada e chacoalhada até 'formigar', diluída no assombro do desconhecido. E, no dia seguinte, você volta à rotina sem ninguém notar nada, só você se lembra da noite que passou. E desejando ter alguém com quem compartilhar as sensações que teve, principalmente se for alguém que também 'esteve lá', em uma troca de maravilhamentos.

Tudo isso eu já comentei por aqui no Sofá, mas era necessário dar essa introdução relembrando essa questão, agora que pretendo falar sobre um aspecto de Dioniso ligado a visões e relacionado aos Mistérios de Eleusis. Aristóteles dizia que os mistérios eleusinos contavam com que o iniciado sofresse, sentisse, experimentasse, certas impressões e humores. Apesar de ser um mistério, uma das coisas que vários escritores antigos indicam - e que não era proibido contar - é que em Eleusis algo era VISTO no "telesterion" (salão de iniciação do santuário). A experiência incluía uma visão, a partir da qual o iniciado se tornava alguém que viu, um "epoptes" (επί - epi - sobre, em; οπτανομαι - optanomai - ver, fitar com os olhos bem abertos), uma espécie de testemunha ocular. Esse salão do templo não era adequado para apresentações teatrais, nem os registros marcavam a presença de atores ou material de palco no local. Ou seja, os iniciados não assistiam a uma peça, e sim presenciavam aparições. E tampouco tratava-se de truques; afinal, pessoas extremamente inteligentes como o poeta Píndaro e o dramaturgo Sófocles estiveram lá e confirmaram o sobrepujante valor daquilo que se era visto em Eleusis. Autores modernos acreditam que se tratava da própria Perséfone acompanhada pelo filho (Dioniso). Sendo ou não, o que se relatava era a existência de sintomas físicos acompanhando as visões, reações que não são típicas de uma audiência teatral ou cerimonial, e sim de uma visão mística:
"...medo, tremor nos membros, vertigem, náusea, e um suor frio. Então vinha a visão, uma aparição em meio a uma aura de luz brilhante que repentinamente tremeluzia através da câmara escurecida. Olhos nunca haviam visto antes tal coisa, e, além da proibição formal sobre se contar o que tinha acontecido, a experiência por si só era incomunicável, pois não havia palavras adequadas para descrevê-la." ("The Road to Eleusis - Unveiling the Secret of the Mysteries", 2008, por R.Gordon Wasson, Albert Hofmann e Carl A. P. Ruck, tradução minha.)
Estes dias ando lendo uma ficção sobre Kassandra (que, por sinal, é 'apelido' de Alexandra, Ale-ksandra), a de Tróia. As visões transcendendo espaço e tempo descritas pela autora do livro se assemelhavam bastante a algumas experiências que já vivi ou ouvi contar. Às vezes as pessoas pensam que reconstrucionistas são sérios e teóricos demais para viver coisas racionalmente inexplicáveis. Mas isso não é verdade. Ao menos não entre todos nós. E nem é algo exclusivo dos seguidores de Dioniso. Sequer é exclusivo da época do calendário onde se relembram os Mistérios. Não é algo que se programe na folhinha, só acontece. E não necessariamente tem a ver com práticas 'xamânicas', seja lá como se entenda/defina o xamanismo.

O que eu gostaria de desmitificar é a ideia de um helenismo sem emoção, sem arrebatamento. Basta lembrar as imagens representando o rapto de Perséfone e a ascensão de Psiquê, por exemplo. Há sim um transbordamento incapaz de ser contido no físico, uma elevação espiritual ao indescritível, um mistério extático que nos toma sem cerimônias. Mas, como foi no caso de Perséfone e Psiquê, é uma captura que pode te tornar uma rainha ctônica ou te elevar ao reino dos deuses.

Uma vez eu li de uma politeísta americana, a Nykti, que "Eles vão te levar a lugares que você não queria ir, e te fazer ver coisas que você nunca quis ver, mas não tenha medo, pois Eles estão lá com você, para o que der e vier." Portanto, não há o que temer quando o lugar tão desconhecido para onde somos levados foi providenciado por meios sagrados. Quando o aceitamos, mesmo tendo que sofrer separações (como Perséfone de sua mãe) e provas (como as árduas tarefas de Psiquê), a recompensa final é sempre por um propósito maior do que nós mesmos. Estaremos cumprindo ao que viemos e caminhando na direção de conhecermos quem verdadeiramente somos.

Se negarmos um ato dos Deuses por receio de parecer 'pouco helênico' e 'muito místico', aí sim estaremos desacreditando naquilo que Eles tanto nos mostram (visualmente e repetidamente) e deixando de experimentar todos os níveis de um pertencimento religioso. Negar seus dons é como recusar um presente, e - pior - desperdiçar a oportunidade de fazer deles algo útil ao crescimento da humanidade como um todo. Em suas preces, é aconselhável pedir que as deidades lhe ajudem a discernir o que vem delas, que lhe orientem ao melhor direcionamento das experiências vivificadoras nas quais lhe colocam, e de que forma vocês poderiam estabelecer a 'kharis' (reciprocidade, troca) do dom com a oferta do mesmo.

Se os iniciados são chamados em grego de "mystai", e eles eram epoptes, então é perfeitamente concebível que as visões, os mistérios e as experiências místicas façam parte da vida 'religiosa' dos gregos.

junho 26, 2011

"Quando Ela Roda..."

Depois de ver uma pergunta sobre superstições ligadas à lua e de me pedirem no MSN para falar sobre os daimones, resolvi juntar um pouco de cada coisa nesta postagem, visto que são assuntos que estão em parte relacionados. Haveria muito o que falar sobre os daimones, então vamos nos restringir aqui ao papel deles dentro dessa questão lunar.

A lua, para Platão, era uma entidade mediadora entre o Mundo Inteligível (o das ideias) e o Mundo Sensível (o material). No mito das almas gêmeas, ele compara o Sol com o masculino, a Terra com o feminino e a Lua com o bissexual ou o hermafrodita, enfim, algo que participaria dos dois pólos.
Xenócrates dividia o Universo em três, uma parte para o Sol e as estrelas, outra para a Terra e as águas e uma intermediária para a Lua e o ar lunar. A parte solar seria habitada pelos deuses, a terrestre pelos humanos, e a lunar pelos daimones - que possuem uma natureza similar à dos deuses e humanos. Já daí pensaríamos na associação comum (mais moderna) que se faz da palavra daimone com demônio e consequentemente o temor pela lua. Mas vamos ver mais alguns autores...
Para Hipócrates, o médico, a lua tinha uma localização central, como o diafragma do corpo.
Plutarco, um tanto semelhante a Platão, via a lua como bissexual, acreditando que ela era preenchida pelo Sol e que era ela quem semeava na Terra - como hoje percebemos que a luz do sol que reflete na lua e esta influencia nas águas. Quando o Sol semeasse novas mentes na Lua, a Lua criaria novas almas e as semearia na Terra, que forneceria a "mobília" do corpo físico. O corpo era visto como algo impotente, a mente como algo incapaz de sofrer, e a alma seria algo intermediário, a mistura dessas duas coisas.

Os antigos em geral pensavam também na lua como uma estrela similar à terra ou uma terra similar a uma estrela, e a chamavam de "território de Hécate, que é tão celeste quanto terrena", afirmando também que Hécate era a rainha dos daimones, visto que sem os daimones não existe comunicação entre deuses e homens, assim como, sem a lua, o universo se desuniria. E Hécate, como sabemos, é comumente associada com as bruxas, o que também justifica a superstição que existe do 'não olhar fixo para a lua' para não se tornar um 'lunático'.

Hécate possui muitos aspectos, mas como aqui estamos focando essa relação com os daimones, vamos especificar um pouco mais: Hécate era senhora dos 'fantásmata', que poderiam ser, por exemplo, as almas sem descanso a quem foi negado entrar no Hades por falta de um enterro apropriado, as almas daqueles que morreram antes da hora ('áoroi'), as almas daqueles que morreram violentamente ('biaiothánatoi'), ou mesmo os daimones dos ancestrais. "Uma multitude de almas habita dentro de Hécate".

Outra coisa em que muitos deles acreditavam era que a Lua possuía três fendas: o Golfo de Hécate (onde havia punições), os Portões do Céu (os Campos Elísios) e os Portões da Terra (a casa lunar de Perséfone). Quando alguém morresse, primeiro a alma se separaria do corpo na Terra (reino de Deméter) e depois se separaria da mente na Lua (reino de Perséfone). Pensar nesses fins, que lembram o pós-morte, pode ter sido também associado a algo ruim que gerou superstições com a lua.

E, por falar na relação com Perséfone e da morte como um fim, outro sincretismo que se fazia com Hécate era o de equacioná-la, na antiguidade remota, às Moiras/Destinos (que eram a "Alma do Cosmos"). Plutarco relata um mito em que um daimon conta a Timarchus que existem quatro regiões dentro do universo, atadas por três 'links'. As regiões seriam a Vida, o Movimento, o Nascimento, e a Deterioração. A vida e o movimento seriam ligados por uma unidade no invisível, na superfície da esfera celestial; o movimento e o nascimento seriam ligados pela mente no sol; e o nascimento e a deterioração seriam liagdos pela natureza na lua. Cada uma dos Destinos presidiria sobre um desses laços: Atropos pelo da Esfera, Clotho pelo do Sol e Lachesis pelo da Lua.

O curioso é que parece que a lua só foi associada a Hécate no século I da Era Comum (quando já existia o cristianismo e os seus 'medos' naturais). Três séculos antes, ela era associada a Ártemis. Até porque pensamos em Ártemis como a lua crescente e Selene como a lua cheia (Hécate seria exatamente a ausência de lua, a lua nova ou 'lua negra', o finalzinho da fase minguante).

No mito de Er, citado em "A República", de Platão, a alma de Er fica dias reunindo informações, com ele aparentemente morto, e nesse tempo ele vê a Fortuna (Tyche) com sua Roda do Destino, decidindo sobre as novas encarnações das almas.

Então, se Hécate tem o papel de escoltar as almas e era igualada às Moiras, e se os deuses gregos eram retratados como jovens (como já mencionei em outro momento aqui no blog), faz todo o sentido a letra da música composta pelo Renato Rocha pro MPB4, sobre a lua: "A Lua, quando ela roda, é Nova" e "mente quem diz que a lua é velha".

Fica o vídeo para quem nunca ouviu ou quer lembrar:



Referência para o texto:
"Hekate Soteira: A Study of Hekate's Roles in
the Chaldean Oracles and Related Literature",
por Sarah Iles Johnston, 1990 (Parte I, Cap. 3).

maio 29, 2011

Presença constante

Às vezes a gente pensa nos deuses e fica encontrando desculpas para continuarmos afastados, do tipo 'Eles têm mais o que fazer do que cuidar dos meus afetos, faz tempo que não faço um ritual decente, meu trabalho é muito mundano e reflete pouco o ideal helênico, tenho pouca leitura e conhecimento de como manter uma prática correta' etc. A mente vive inventando motivos... Mas felizmente a alma segue no caminho oposto. Algo dentro de nós anseia pela intimidade com o sagrado, pela percepção do divino no mundo material, pelo sentido manifesto por trás das coisas mais simples. Somos atraídos de uma maneira irresistível à beleza, nos enlevamos ao ouvir os sons da harmonia, mergulhamos fundo nas sábias palavras que lemos dos antigos, rimos com alegria das 'coincidências' fortuitas que aparecem nos nossos dias.

Dizem que conseguimos esquecer o que as pessoas nos dizem e até o que nos fazem, mas nunca esquecemos como nos fizeram sentir. Não parece ser muito diferente neste caso: grande parte do que lemos nós não assimilamos, vários ritos que realizamos não vão sair igualzinho, mas sempre vamos saber contar sobre aquela vez que percebemos os deuses agindo em nós e em nossas vidas. Principalmente porque, com Eles, ficamos imersos em uma sensação de plenitude, um sentimento de paz, uma impressão de pureza, entre outras inspirações elevadas.

E, quando pensamos em agradecer por caminharmos protegidos por Eles, imagino-Os sorrindo satisfeitos em nos ver atentos ao quanto Eles nos têm feito diariamente. É quase como se, no desejo de agradá-lOs, nos esquecêssemos que também Eles buscam sempre maneiras de nos agradar, em nome simplesmente do que são.

Uma vez li um textinho (acho que era de uma música) que dizia "Mesmo que suas mãos estejam tremendo e que sua fé esteja partida, mesmo que seus olhos estejam se fechando; diga, com um coração plenamente aberto, diga o que precisa dizer" (John Mayer). Então, mesmo quando um dia atarefado me impede de fazer algo mais 'visual' pra Eles, aquelas preces ditas de coração antes de dormir, aquelas que me fazem vir lágrimas nos olhos, dão ao meu espírito a calma necessária para adormecer na segurança de Seus braços e me preparar para mais uma jornada de maravilhas que Eles me concedem.

Por isso, hoje gostaria de terminar esta postagem com a tradução que fiz de um poema do sufi Hafiz. Segue:

"Há diferentes poços dentro do nosso coração
Alguns se enchem com cada boa chuva,
Outros são profundos demais para isso.

Em um poço
Você tem só algumas preciosas taças de água,

Aquele 'amor' é literalmente algo que vem de você mesmo,
Ele pode crescer tão devagar quanto um diamante
Se ele estiver perdido.

Seu amor
Não deveria nunca ser oferecido à boca de um
Estranho,

Apenas a aqueles
Que tenham o valor e a ousadia
De cortar pedaços de suas almas com uma faca

E então costurá-los em um cobertor
Para te proteger.

Há diferentes poços dentro do nosso coração
Alguns se enchem com cada boa chuva,
Outros são profundos, fundos demais
Para isso."

abril 20, 2011

Tira-dúvidas 3: 'Ativar! Forma de...'

Alguém comentou numa rede social sobre ter lido por aí que Hécate supostamente teria 30 metros de altura (!). OK, vamos refletir juntos sobre esse negócio de antropomorfismo e afins.

Nos textos antigos, os deuses eram descritos como jovens, altos, belos e imortais - tudo o que se imagina de um 'ideal' (lógico!). Certo, então vamos começar de trás para frente: Por "imortais" não significa que todos eram "eternos", ou seja, eles não eram deuses que existiram sempre desde o início, pois eles nasceram um dia, tiveram um começo, embora não morram mais. Por "belos" entendemos da harmonia e do conceito de belo que vai além de gosto/preferência estética (como dizia Safo, "Quem é belo é belo aos olhos e basta, mas quem é bom é subitamente belo"). Esse "altos" já se esclarecia nos textos de que não significa que eles sejam descomunais (como os gigantes), e sim apenas seres de estatura elevada. E esse "jovens" refuta a imagem que se faz de deuses idosos, como se todo sábio tivesse que ser um velhinho numa montanha.

As imagens antigas de Zeus adulto o traz barbado, mas jovem. Héstia no helenismo não era uma anciã, era uma jovem. Os sincretismos de hoje que o transformaram num "deus pai" e ela numa "velha sábia" foi que influenciaram em novas representações que não existiam antes. Os deuses da Hélade eram pintados/moldados/descritos como em pleno vigor físico e mental, e não como idosos que poderiam lembrar enfraquecimento e esquecimento.

O contrário também se considera. Apesar de termos representações dos deuses bebês - porque um dia eles foram mesmo crianças -, todos cresceram. O Eros grego chegou a ser um adolescente moreno, em oposição ao romano Cupido que era um bebê loirinho, e o próprio Eros depois teria amadurecido ainda mais ao encontrar o amor de Psiquê e diminuir a sua dependência em relação à mãe Afrodite.


Nos mitos, vemos os deuses se metamorfosearem em animais (cisne, touro, urso...), plantas (jacinto, loureiro...), fenômenos atmosféricos (chuva de ouro, nuvem...) e outros seres humanos (como o marido que foi para a guerra...). E, se eles podem assumir outras formas, esse é mais um motivo para não vê-los como uma imagem fixa.


Ou seja, tudo isso são ferramentas de aproximação para podermos ter para onde olhar ao falar com eles, para termos uma ideia no que pensar, e não para levar as descrições ao pé da letra. Não é para - como aconteceu em outra rede social - discutirmos a cor do cabelo de Apolo se o tipo físico dos gregos é de serem morenos e os hinos chamam o deus de loiro por seu aspecto solar. Meu Apolo e o de muita gente vai ser pintado de loiro, quer você queira ou não. Esse tipo de coisa não invalida o meu culto. O que seria estranho era se eu oferecesse uma coisa da qual ele não gosta ou o representasse com um símbolo de uma coisa que ele não é. Mesmo as supostas 'inimizades' divinas das quais já falamos em outro momento são controversas. Se um dia Poseidon e Atena disputaram o patronato da capital da Grécia, convém lembrar que: enquanto ele é o deus dos mares, ela inventou o navio; enquanto ele é o deus dos cavalos, ela inventou as rédeas.

Agora, voltando ao início do 'post', acho que o que comentamos em outra postagem dava o suficiente para nos fazer pensar que Hécate pode tanto estar em algo tão microscópico como uma membrana celular quanto em algo tão macrocósmico como uma barreira intergaláctica. Então acredito que deve ser complicado afirmar que ela tem exatos 30 metros de altura. (Seria até difícil segurar as chaves das coisas sendo assim, rsrs.)

Portanto, cuidado com coisas rígidas demais. Apesar da nossa fama de certinhos, isso não se aplica a esquecermos o métron, o equilíbrio, a justa medida, o "nada em excesso", o evitar os exageros tanto para mais quanto para menos. Sejamos sensatos e procuremos as coisas que façam sentido. Nem tudo o que está escrito em livros é verossímil...

abril 04, 2011

Tira-dúvidas 2: Cidade?

Vamos pelo método socrático de definir as coisas antes de falar delas. Aqui escolhi usar um pouco da definição de um teórico que não é da antiguidade para a expressão "religião cívica" - até porque na antiguidade provavelmente não se falava nesses termos. Rousseau, em 'O Contrato Social', define religião cívica como um cimento social que unifica o estado e o provém de uma autoridade sacra. Isso incluiria deidades, vida após a morte, recompensa da virtude e punição do vício, e exclusão da intolerância religiosa.

Tendo definido isso, vejamos por que falamos do helenismo como uma religião cívica.

Quando tratamos da religião grega antiga, podemos abordá-la de duas formas: pelas suas origens ou pelo seu caráter cultural, de comunidade cívica. Os estudiosos dizem que a religião helênica foi estrutura junto com a pólis. Tudo o que havia antes (da pólis) foi reinterpretado e traduzido para caber no esquema das cidades.

Eis algumas coisas que demonstram essa interação:
₪ As procissões religiosas da época incluíam funcionários públicos de diversas categorias da sociedade, para que todos ficassem representados;
₪ As peças do festival da Dionísia eram compostas de temas civis ou com mitos de deuses da cidade onde estavam sendo encenadas;
₪ O fogo de Héstia da cidade ficava no prutaneion (escritório) do magistrado, e diante desse fogo é que o Conselho recebia os embaixadores estrangeiros, seguindo o princípio da xenia (hospitalidade);
₪ A refeição que conselheiros e embaixadores compartilhavam incluía uma thusia (sacrifício) e estabelecia - no 'comer junto' - laços entre os mortais e com os deuses;
₪ O Tesouro não era público, desde o ano 447 ele ficava no Parthenon, sob proteção e posse de Atena.
₪ A Justiça não era só uma alegoria (uma moça vendada com a balança para representar imparcialidade e equilíbrio), e sim algo que era cobrado por Zeus, que não deixava uma injustiça impune;
₪ ...entre outros exemplos possíveis.

Enfim, a religião não era centrada na 'alma individual', mas na corporação cívica chamada 'pólis'. Tanto era assim que cada pólis tinha seu calendário com seus festivais religiosos próprios.

Nas nossas inclusões modernas, temos ritos aos deuses da cidade em dia de Independência do Brasil, Proclamação da República e ano novo civil. E nas adaptações ao modo urbano de ser e celebrar, consideramos a 'colheita' representada pelo recebimento do salário ou qualquer outra renda que entre como resultado do fruto do nosso trabalho.

Imagem: detalhe de "Grateful Hellas" (Hélade Agradecida) - Theodoros Vryzakis, 1858.

O que difere da ideia de um estado religioso de hoje - quando esperamos mais o estado laico, que no nosso caso é melhor - é que naquela época não existia isso de a religião atrapalhar a cidade em prol de um grupo dominante (hoje os 'cristãos'); o que existia era uma religião que reunia as classes sociais em torno de um culto local comum. Além disso, se mesmo em Rousseau (que é mais 'atual') se incluía a questão da "exclusão da intolerância religiosa", parece que os antigos faziam isso com mais propriedade do que os modernos.

É interessante aproveitar para lembrar que esse é um dos motivos de nós não estarmos tentando reconstruir a sociedade grega, apenas a sua cultura. Tentar fazer as coisas serem como eram antes é algo muito mais do revivalismo do que do reconstrucionismo - que considera o fato de sermos pessoas diferentes em época diferente com todo um outro "zeitgeist" (espírito de época) por trás das modificações. Uma casa ou um vaso reconstruído nunca vai ser igual ao original e nem tem como (seria quase como fantasiar 'psicoticamente' que é o mesmo vaso e a mesmíssima casa).

No entanto, se agora não podemos atuar numa pólis inteira, ainda assim temos o dever de tentar tornar ao menos o nosso oikos (lar) semelhante ao modo virtuoso de trazer os deuses para nossos assuntos civis: celebrando com eles nossa fartura doméstica (a 'colheita'), recebendo bem nossos convidados (hospitalidade), mantendo uma chama acesa para Héstia, promovendo a justiça, compartilhando refeições que incluam ofertas, selecionando as peças/filmes que vamos assistir, praticando algo pelo bem comum, combatendo preconceitos, acolhendo tudo o que possa elevar o nosso dia comum para mais perto do sagrado.

Quem sabe de oikos em oikos um dia não reconstruímos um demos e quiçá uma nova pólis?

março 29, 2011

Tira-dúvidas 1: Neo...?

Ontem perguntaram para a Tanakht do Kemetismo Ortodoxo (Reconstrucionismo Egípcio) se eles eram neopagãos. Ela respondeu que, por definição, não. Então perguntaram-lhe se nós também não éramos, e ela veio confirmar comigo. Como ainda tem gente que se confunde, porque há a permissão de cada pessoa se autodenominar como quiser e porque há a participação de reconstrucionistas - kemets, helênicos, druidas etc - em encontros neopagãos, talvez seja importante (re)explicar nossos motivos.

O primeiro deles - e o mais conhecido - é que 'pagão' vem do latim 'pagus' que se refere a um distrito rural, o campo, enquanto a religião grega é mais de 'pólis', cidade, razão pela qual alguns anglófonos brincam que não são 'pagan', mas 'urban'.

Essa etimologia latina é do tempo do romano Virgílio, mas os motivos não pararam por aí. Na época de Tertuliano e Prudêncio, da Galícia, "pagão" era sinônimo de pessoa corrompida e impura - por não ser batizada no cristianismo, como muitos romanos e outros que se mantinham na religião antiga. Então, para não ficarem associados a essa carga negativa/pejorativa de "pagão" ("pagan"), os judeus passaram a ser chamados de "gentios" ("heathens") - termo que vocês podem notar aparecendo no filme Ágora, de 2010.

Só que os cultos não-galícios eram muito diversos: judaísmo, budismo, mitraísmo, helenismo etc, e ficaria complicado colocar todos sob o mesmo 'guarda-chuva' lexical. Foi aí que o imperador Juliano, o apóstata, remetendo-se a Iamblikhos (século IV), renomeou o sistema de crenças que não era nem galileu, nem judeu, nem pagão, nem romano, chamando-o de Hellenismos. Assim não estaríamos associados nem a pessoas impuras, nem ao campo, nem a gentios, nem a quaisquer outras crenças diversas.

No entanto, se você acha que ser "neopagão" é algo completamente diverso das denominações originais do que era ser "pagão", no seu contexto e proposta, então você tem todo o direito de se considerar neopagão. (Ou você pode entrar na nossa brincadeira gringa de "urban pagan", rsrs.)


Seja qual for a 'etiqueta' que escolhamos, o importante é saber explicar a sua escolha, saber definir o que você entende pelo nome que você adota, e não simplesmente se autodenominar de um jeito só porque todo mundo se chama assim. Uma coisa é escolher conscientemente, outra é seguir cegamente uma turma sem saber o que está fazendo, sem conhecer os motivos, pois isso seria agir com ignorância ou - o que seria ainda pior (segundo Platão) - agir por opinião (achismo).

O filósofo Epiteto dizia para conhecermos a nós mesmos e só então nos vestirmos de acordo. Portanto, saiba a sua verdade antes de vestir a camisa de um grupo que não ressoe a essência do que existe em você.

Selo Iluminador

O Diego/Déllion do Deluxed Edition nos deu este selo criado por Arthemise para ofertar "aos Blogueiros e Blogueiras que nos inspiram e iluminam nossos dias com textos e pedacinhos de sabedoria e sonhos":

A regra é simples:
-Cite 5 coisas que iluminam o seu dia.
-Presenteie com o selo 3 blogs (ou mais) que te iluminam citando-os em sua blogagem.
Divirtam-se e iluminem-se!
Agradeço-lhe a indicação e repasso minhas respostas abaixo. Não incluí os blogs que ele já indicou.

O que ilumina meus dias:
1 - meus amigos/família (com os deuses entre eles);
2 - meus sonhos e 'insights' (percepção interior);
3 - folhear meus livros e assistir meus DVDs;
4 - a beleza (do mundo, da natureza, da arte, dos sentimentos etc);
5 - cada exemplo que vejo da vitória da virtude ('areté') sobre os vícios.

Indicados:
# Kemetismo Ortodoxo, da Tanakht
# Alma Rubra, da Iony
# Sementes da Romã, da Roberta

março 21, 2011

Pandia




Neste pôr-do-sol, além de termos o último dia da Dionísia Urbana, teremos o festival helênico da Pandia, quando honra-se Zeus Pandios (brilhante deus dos céus) e sua filha com Selene (a lua cheia), chamada Pandias ou Pandeia ("Toda-Divina" ou "Toda-Brilhante"). O festival político da Pandia foi estabelecido pelo rei de Atenas, Pandion, mas apenas um demos de Atenas, o Plótheia, o celebrava. O curioso é que encontrei algo mais sobre ele justo em um livro sobre Dionísio em sua relação com a Índia, onde "Pandia" é também o nome de uma dinastia vinda da Lua:

"Segundo o mito cretense, Lampros, esposo de Galatéia, cujos filhos eram bissexuais, era ele mesmo filho de Pandion, descendente das dinastias do Sol e da Lua. O festival ático do Pandia era celebrado com a lua cheia. O festival, cujo nome advinha de Pandion, epônimo da tribo de Pandionis, era em honra a Zeus." (R.F. Willets, Cretan Cults and Festivals, p.178)
Deve-se observar que Pandia é o nome de uma dinastia dravidiana oriunda da Lua que, desde tempos imemoriais, reinou na Índia e que também é mencionada no grande poema épico tâmul, o Shilappadikaram. Os pandavas, filhos de Pandu (o branco), eram membros da dinastia que se opôs aos arianos na guerra do Maabárata.
(Alain Daniélou, Shiva e Dioniso - 'A Religião da Natureza e do Eros', p.30)
Para quem não lembra ou não leu o Mahabharata hindu, os Pandavas lutavam contra os Kauravas, o que muitos estudiosos interpretam simbolicamente como as virtudes enfrentando os vícios. Outros dirão que os Pandavas representam o Dharma - o caminho da justiça, que se parece com a realização do nosso daimon - e os Kauravas sendo o Adharma - tudo aquilo que impede os humanos de alcançar o divino, o sagrado.

Nós podemos pensar nessa união do Sol com a Lua como uma união de opostos que traz o equilíbrio. As virtudes, para os gregos, eram exatamente esse meio termo entre dois vícios. Por exemplo, a virtude da paciência seria o equilíbrio entre o extremo do "pavio-curto" e o extremo da leniência (quando se permite/aceita tudo), os quais seriam vícios. Por conta disso, há muito mais vícios do que virtudes, assim como no Mahabharata encontramos cem Kauravas para apenas cinco Pandavas. Também podemos pensar que as virtudes nos aproximam dos deuses, da Toda-Divina, enquanto os vícios vão nos impossibilitando de alcançar esse divino.

Fica, então, a sugestão para - durante tal festival - refletirmos sobre como vencermos nossos vícios e nos aproximarmos do sagrado.

março 12, 2011

Religião, Ciência, Psicologia

"Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses."

Tudo, em toda a parte, possui uma ordem, uma lógica, que nos faz interligados. Hermes Trismegisto já dizia que o que está em cima é como o que está embaixo e vice-versa. Muitos já observaram como o átomo e o sistema solar são semelhantes - em termos de massa proporcional do núcleo/sol em relação aos elétrons/planetas e em termos de suas órbitas, por exemplo. E, quando estudamos a psicologia/filosofia (si-mesmo), a ciência/natureza (universo) e a religião/mitologia (deuses), essa máxima délfica acima demonstra cada vez mais a sua veracidade.

Bem ou mal, nosso limite é o sistema solar. A gente sabe pouco lá de fora dele. Sim, houve o telescópio Hubble como pioneiro (que existe apenas há quase 21 anos e que será desativado daqui a mais uns 4) e existiram algumas sondas que mais mandaram informação lá para fora do que trouxeram, mas uma das historinhas curiosas com relação a isso, que me fez pensar, foi a de uma sonda posterior que atingiu uma região de choque, uma camada turbulenta, ao se aproximar dos confins do sistema solar, bem ali perto de Netuno. Os antigos já falavam sobre existir uma espécie de barreira intergaláctica, e Netuno (Poseidon) é o deus responsável pelos terremotos e turbulências. Sempre que a gente chega numa situação limite, também ficamos 'balançados', 'sacudidos'. Universo, deuses, si mesmo, funcionam parecido. Conhecendo um, alcançamos a compreensão dos outros. E o que mais temos para observar, onde quer que vamos, somos nós, e em seguida a natureza.

A religião antiga se aproxima mais da ciência do que da religião moderna. Principalmente porque a religião antiga era centrada em conhecimento, não em dogmatismos como acontece na religião estabelecida pelos cristãos. Antigamente, o culto ao sagrado era uma questão de lógica, de evidência, de racionalidade, de fazer sentido. Inclusive você era justo com o próximo porque isso era parte de uma virtude racional e não porque um messias lhe ensinou a ser assim. Para os gregos, a religião ("theôn timaí" = 'veneração dos deuses') não era tanto uma questão de fé (pistis), sobre a qual não existe nenhum mito (o que existia era ser 'temente aos deuses', o "theoudés" da Odisseia, como uma virtude que garantia as outras), apenas os romanos é que começaram a trazer a noção de fé (fides). O verbo grego pistestai significa algo como "convencer, deixar-se convencer, seguir", e eles não precisavam ser convencidos nem convencer ninguém da existência dos deuses.

Quando nós - reconstrucionistas helênicos - estudamos (e somos tidos como nerds por isso) com a intenção de usar a teoria para orientar a nossa prática, mesmo sem querer acabamos encontrando evidências que nos maravilham e fortalecem nossa identificação com a cultura e os valores helênicos. Se você ler sobre os 3 Logos dos quais fala a filosofia, ler sobre os 3 fogos mencionados no oráculo caldeu, e pensar na estrutura de uma célula demonstrada pela ciência, vai conseguir relacionar essas coisas entre si, e mais uma vez confirmar a máxima délfica. Tanto a filosofia (si-mesmo) quanto o oráculo (deuses) e a célula (universo), falam de algo que cria, de onde partem as coisas; de algo que organiza as informações; e de algo que realiza essa inteligência no mundo sensível, dando-lhe inclusive uma forma física. Você pensa em fazer um copo, você reúne o que precisa para construí-lo e então efetivamente o faz. Existe uma inteligência criadora/organizadora, ela delimita o que vai usar como mensagem, e apresenta esta mensagem ao mundo. Você tem o DNA do núcleo, um meio circulante do citoplasma, e uma membrana que dá forma e permite trocas com o meio. O oráculo caldeu inclusive diz que quem fica nos limites de tudo, como intermediária, guardiã das chaves, senhora das fronteiras, é Hécate. Ela conduz as almas do mundo de lá para o de cá e vice-versa. Ela escolta Perséfone nas suas vindas e idas do submundo à Terra. Eis uma revelação divina que pode ser descoberta através de reflexões filosóficas e observações do universo, sem precisar simplesmente 'acreditar' num mito ou epíteto de Hécate.


Na maioria das vezes, o que nos falta é conhecer esse si-mesmo. Não somos nossos corpos, nosso trabalho, nossa personalidade, nossas habilidades, formações e gostos. O verdadeiro Ser que compartilhamos é outro 'esquema', outro 'lance'. Por isso acredito ser importante que se leia o trabalho dos filósofos e dos cientistas para se entender os deuses, em vez de se ler apenas mitologia e achar que aquilo é história literal. Se os mitos fossem a soma do que deveríamos acatar como verdade, os gregos teriam um livro sagrado reunindo esses mitos, coisa que eles não têm. Não existe um manual; o que você precisa é olhar para si e olhar em volta. Só assim vai perceber os deuses em tudo isso que há por aí, inclusive em você e no outro.

fevereiro 26, 2011

Divulgando

Ajude-nos a salvar o Altar Sagrado dos Doze Deuses!

Recentemente, durante construções na rede ferroviária de Atenas, um tesouro magnífico da história grega foi descoberto, uma obra-prima da cultura helênica: o Altar Sagrado aos 12 Deuses, construído em 552 AEC. Era nele que os devotos iam, no centro da cidade, fazer suas preces. Segundo os arqueólogos, é um tesouro tão precioso quanto a estátua de ouro e marfim da deusa Atena. Esse altar está ameaçado por conta da falta de interesse do Estado grego e da decisão da companhia ferroviária de enterrá-lo o mais rápido possível.

Nosso altar sagrado aos 12 Deuses não pode ficar nas mãos dos lucros da Companhia Ferroviária, do silêncio da mídia e do desinteresse do Ministro da "Cultura" grego. Trata-se de um local sagrado e, agora que reapareceu, devemos defendê-lo. Informe a todos sobre a questão e una suas forças conosco: envie um e-mail para o Ministro da Cultura (grplk@culture.gr) e para a Estação de Trem ISAP (pro@isap.gr) em protesto!

Thyrsos - Hellenes Ethnikoi:
Pela pesquisa, estudo e divulgação da Antiga Cultura Helênica.

http://www.thyrsos.gr


fevereiro 20, 2011

"Família... janta junto todo dia!"

Prolongando um pouco as postagens nas quais falei das maneiras de vermos os deuses, como seus "pets" ou como seus "amores", desta vez vim defender nossa visão como família.

Não sei vocês, mas dentro da minha família há pessoas que me fizeram muito mal, e já vi alguns parentes entrarem em pé de guerra uns contra os outros, com histórias de trapaças e até embates corpo a corpo. E, no final das contas, estamos todos lá juntos e declaradamente irmãos, primos, tios, sobrinhos etc. (Até os monstros da família Addams ficam unidos.) Se nós - com toda a nossa herança titânica de vileza e animalidade - conseguimos deixar o passado para trás e separar as coisas, por que tantos insistem de que esta e aquela deidade "não se dão bem" e não podem ser colocados juntos no mesmo espaço?

Além de a mitologia lidar com símbolos, o fato de os deuses efetivamente tomarem partido de um lado e outro na Guerra de Tróia há milênios atrás não quer dizer que eles tomaram birra, fizeram beicinho e emburraram metade de cada lado do mundo e do Olimpo pelo resto das eras. E, mesmo no mito, quando Hefesto tenta violentar Atena e o sêmen cai na terra, Atena considera o filho de Gaia como sendo dela própria com ele. Se Páris escolhe Afrodite em detrimento de Atena e Hera, é ele o abestado de ficar dividido, não acho que três DEUSAS iriam ficar de frescurinha para sempre por conta da decisão de um pastor que há muito já morreu.

É engraçado como uma hora falam tanto de opostos complementares que se equilibram e em outra fazem questão de inimizar deidades baseando-se em algum recorte da história sem considerar todo o resto. Dionísio é um que costumam opor a Hera, sendo que foi ele que a ajudou no rolo que estava dando com Hefesto. E também não acredito que seja por acaso que a planta de Dionísio se chame "hera" em português. O próprio Héracles a quem a deusa teria tanto perseguido carrega no nome uma homenagem à própria. E, falando de imposição de tarefas, se Afrodite não tivesse exigido-as de Psiquê, esta não teria evoluído a ponto de merecer ser deificada e nem Eros teria crescido e adquirido a maturidade necessária para sair da casa da mãe. E que irmão nunca pegou o brinquedo do outro como Hermes roubou as 'pelúcias' (ovelhas) de Apolo?

Uma vez eu estava conversando sobre isso com o Jota e ele me lembrou que Otto fala das divindades não serem invejosas entre si, que eles apenas não admitiriam serem subestimados. É como sempre procuro reforçar com relação ao métron (justa medida): o "nada em excesso"; então é claro que não se trata nem de algo do tipo 'todo mundo é feliz, vamos dar as mãos e abraçar a criação', mas também não é algo do tipo 'sou teimoso e guardo rancor igual adolescente'. Fui então dar uma checada no Otto, e eis algumas coisas que eu trouxe de lá (com negritos meus):
"A divindade grega [...] não faz destacar-se a sua personalidade com base no ciúme de outros deuses. Ela não espera que o homem viva para servi-la, nem que realize suas melhores ações para glorificar sua pessoa. O culto que para si reivindica não é de tal ordem que ao lado dele nenhum outro possa ser admitido. Ela se alegra com a liberdade do espírito e requer da vida humana muito mais sentido e inteligência que a fidelidade a determinadas fórmulas, atos e objetivações." (Walter Friedrich Otto, 'Os Deuses da Grécia', pag. 231)

"Atena [...] por certo exige, como qualquer outro deus, que seu poder e sua sabedoria sejam reconhecidos e que o herói não se julgue capaz de prescindir de sua ajuda. Mas nem por isso ela faz depender seu auxílio de que a pessoa se dedique a seu serviço com fervor ou mesmo com exclusividade. [...] De sua própria boca ouvimos que é a coragem do valoroso que a atrai, não a boa vontade ou a dedicação à sua pessoa. [...] Em seu famoso diálogo com Odisseu (Odisséia 13, 287 e seguintes) [...], ela lhe diz diretamente que é o seu espírito superior que a agrada e o liga solidamente a ela". (Walter Friedrich Otto, 'Os Deuses da Grécia', pag. 214)
Aliás, Atena é uma que o povo gosta de rivalizar com Ares. Isso é uma coisa que nunca entrou na minha cabeça, eu inclusive os colocava no mesmo altar de guerra. Nesse quesito Otto parece concordar com a visão fechada da guerra como algo nocivo e diz que Ares - que teria "eterno amor a contendas, guerras e batalhas", sendo um "destruidor" de homens - não se daria com o espírito grego da temperança. Eu não entendo assim, eu acredito que uma das demonstrações de temperança é saber o momento certo para cada coisa, e, no meio da guerra - no calor da batalha -, há de se ter mesmo sangue frio. Quando Otto aponta o fato de Ares não se importar com de que lado está lutando, desde que a guerra continue, eu vejo certo preconceito do autor (que inclusive diz que Ares muda de lado só para se "refestelar" com o combate). Para mim, isso é mais questão de ser um soldado e guerreiro do que de ser inconstante ou volúvel; um soldado que apóia todos os soldados, independente de sob qual comando estão. Quem não pode mudar de lado é Atena, porque ela sim é a general, a estratégia, o mental, a que precisa ser racional e coerente. Ares é o fogo, ele vai duelar, pelejar, batalhar, com quem tiver para lutar com ele; é como se ele estivesse em um constante exercício de alerta. E não consigo ver um exército feito só por soldados ou só por generais, essas duas figuras têm que trabalhar juntas, têm que cultivar um bom relacionamento, têm que se complementar.

Por falar nisso, acho que nem preciso me demorar neste texto relembrando a oposição que Nietzsche coloca para Apolo e Dionísio, porque esta - além de didática - sempre foi de complementaridade mesmo.

Só espero que mais uma vez isto ajude a desfazer fórmulas pré-concebidas que as pessoas não têm o costume de questionar. A religião dos gregos antigos era extremamente racional, não se podia acreditar em uma coisa sem antes investigá-la ao máximo, até que ela fizesse algum sentido. Por isso me entristece ver pessoas repetindo o que outras dizem só por lhes terem um crédito de confiança e não sabendo argumentar quando alguém aponta reflexões contrárias que possuem toda uma lógica sustentando-as. É por isso que, quando nós (reconstrucionistas) insistimos em trazer textos e teoria, é apenas para fundamentar a nossa prática e termos certeza do que estamos fazendo, e não para exibir um conhecimento não-refletido e que não encontra ressonância na realidade cotidiana...

Mas lembrem-se: sem rivalidades, pois na nossa família somos "tutti buona gente"!